27 março 2023

Dia Mundial do Teatro: mensagem de Arthur Miller (1963)


© Associated Press, 1959


INSTITUTO INTERNACIONAL DO TEATRO
DIA MUNDIAL DO TEATRO – 27 DE MARÇO DE 1963
MENSAGEM INTERNACIONAL DE ARTHUR MILLER

Ao contrário de outras tentativas de celebrar, à escala internacional, uma determinada instituição, este reconhecimento do teatro em tantos países, no mesmo dia, corresponde a uma realidade precisa. É certo, com efeito, que o teatro tem sido quase sempre internacional. Por isso, numa ocasião como esta, regista-se uma verdade já existente, e não apenas uma simples aspiração. O único factor novo, a meu ver, reside no seguinte: enquanto noutros tempos uma peça russa, representada (por exemplo) nos Estados Unidos, pouca repercussão teria para além das portas do respectivo teatro, hoje, como em quase tudo o que fazemos, a questão da sobrevivência ou da destruição do Homem está de certo modo posta em causa. Num tempo em que a diplomacia e a política dispõem de braços tragicamente tão curtos e tão fracos, o alcance subtil (mas por vezes longo) da arte terá de suportar a responsabilidade de manter unida toda a comunidade humana. Tudo o que possa mostrar-nos que pertencemos ainda à mesma espécie é uma coisa humanamente preciosa. É precioso que, neste momento, dezenas de milhares de pessoas, talvez milhões, interrompam a sua procura de entretenimento, ou, como seria para desejar, de uma experiência mais profunda, e reconheçam que neste imenso palco planetário o maior elenco da História precisa de encontrar uma verdadeira catarse, uma libertação do medo que nos oprime através de uma redentora tomada de consciência — pois de contrário a catástrofe desabará sobre nós. O dramaturgo anónimo que nos distribuiu os papéis que desempenhamos, esse grande ironista, esse extraordinário humorista, fez do palco o nosso Mundo. O incremento da ciência transformou-nos a todos em actores: já não há público para o grande silêncio que ameaça envolver-nos a todos no seu manto fúnebre.
Falo, evidentemente, do problema da guerra; mas implícito em todas as peças de algum significado está, e sempre esteve, o destino do Homem. A única diferença que agora existe, mas que é fundamental, é que somos nós, e não já um herói isolado, que teremos de encontrar a solução — ou perecer. A suprema ironia é que, enquanto nos sentirmos dominados por impiedosas forças destrutivas, não poderemos alcançar o que sempre exigimos aos nossos heróis trágicos: um lugar de reconciliação, um momento de aceitação, se é que não de resignação, um estilhaço de segundo em que reconheçamos que o nosso destino não está inscrito nos astros, mas em nós próprios. Quantos de entre nós, no decurso destes anos, ainda que por vezes encarando o temor real de destruição, terão sido capazes de repetir, com Shakespeare, que a falta não está nos astros, mas sim em nós próprios?
É por isso que precisamos do teatro; pois, acima de tudo, o teatro coloca o homem no centro do Mundo. Necessitamos de um lugar de quietude precária, de onde seja possível presenciar a tempestade e testemunhar a eterna luta do Homem que desafia Deus na edificação do seu próprio destino.
O teatro vivo é singularmente apto para esse efeito. Um homem e uma lâmpada bastam para fazer uma peça. É hoje evidente que o cinema e a televisão têm de esforçar-se por atingir a nudez e a simplicidade que, desde sempre, são apanágio da arte dramática. Como todas as máquinas, como a própria ciência, a visão do Homem que esses meios oferecem amplifica a sua natureza material, o seu meio ambiente, os poros da sua pele, mas na medida em que engrandecem e sublinham os seus elementos perecíveis afastam-se da sua essência, que é invisível. Na verdade, é precisamente a revelação gradual do que não se vê e do que não se pode ver que constitui a matriz oculta da própria arte dramática. O valor de uma peça não está no que ela mostra, mas nas suas revelações, subjacentes, e as peças que perduram ao longo dos tempos são exactamente aquelas que revelam o que há de universal no Homem, os elementos da sua natureza que são, de facto, comuns a todos os homens, seja qual for o lugar onde vivem.
É um facto curioso que hoje, enquanto o Mundo se nos apresenta politicamente dividido, a Arte — e muito em especial o teatro — demonstra com toda a clareza que a sua vocação mais profunda é universal. As peças que obtêm sucesso num país (e isto é cada vez mais evidente) depressa se tornam conhecidas nos outros. Sempre as culturas dos vários países estiveram interligadas, mas hoje desenvolvem-se conjuntamente com maior evidência. E, no entanto, no que respeita às questões vitais defrontamo-nos uns aos outros como criaturas de planetas diferentes. Involuntariamente, e decerto sem intenção consciente, o teatro deu-nos a prova de que a espécie humana, apesar da enorme variedade de tradições e culturas, é profundamente una. Julgo que em nenhuma outra época as peças contemporâneas foram tão rapidamente compreendidas em todas as partes do Mundo. Uma estreia importante em Nova York repete-se logo a seguir em Berlim, Tóquio, Londres, ou Atenas. E se a minha experiência pessoal pode servir de exemplo, o acolhimento não difere muito de uns países para os outros. Também neste sentido a metáfora se tornou real — o Mundo inteiro é hoje um palco. O Mundo inteiro, e ao mesmo tempo.
E é bom que o teatro, porventura mais do que as outras formas de comunicação através da arte, seja o instrumento escolhido. Pois, sobre as tábuas do palco o homem deve agir ante um pano de fundo de valores humanos. Nestes tempos em que a futilidade afogou o espírito, em que uma inacção mortal o ameaça, é bom dispormos de uma forma artística de cuja própria existência é inseparável a acção. E se, nos últimos anos, o chamado antiteatro, bem como o teatro do absurdo, parecem contradizer o papel fundamental da arte dramática, não devemos ver aí uma contradição, mas apenas um paradoxo. A dramaturgia que recusa uma acção significante reflecte o impasse internacional, a descrença generalizada no poder do Homem sobre o seu próprio destino, a rejeição de todo e qualquer sentido além da ironia. É uma dramaturgia que encara o Homem à beira do seu túmulo, inevitavelmente derrotado por si próprio; que nos oferece a imagem do Homem desorientado, aturdido pela derrocada dos vários sistemas em que, uns após outros, acreditara. São peças que nos convencem inteiramente se forem representadas na véspera de o Mundo acabar. E ainda mais no dia seguinte. Mas as longas carreiras que têm alcançado significam que o público encontra prazer nelas — talvez o prazer de indirectamente confirmarem a suspeita generalizada de que nada do que sabemos é, na verdade, absolutamente real.
E assim, também através destas peças o teatro denuncia a inacção, a ausência de sentido — pois se elas recusam a acção, essa mesma recusa constitui um desafio, para alguns de nós pelo menos; um desafio para descobrirmos uma ordem interior que reflicta, não apenas a morte que há na vida e a ironia de toda a acção, mas a presença da vida até na morte: uma ordem, ou antes, um novo tipo de teatro capaz de oferecer ao Homem uma esperança de identidade e liberdade que não seja inferior à que a física contemporânea concede à matéria. Os cientistas sabem hoje que já não há observadores; que ao observar um fenómeno estão já a transformá-lo. Semelhantemente, o dramaturgo que observa o desespero transforma-o — que mais não seja ao fazer-nos tomar consciência dele. E se a contemplação do desespero nem sempre transforma o dramaturgo, o público é que não pode deixar de ser transformado por via dela. Ao contemplarmos o desespero no palco, através das formas dramáticas que ele assumiu no nosso tempo, temos o direito (direito, aliás, cientificamente legítimo) de exclamar: «Muito bem; mas eu, que sou um dos átomos que o dramaturgo observou, mediu e pesou, devo dizer, agora que a cortina dos seus olhos desceu, que sou já um pouco diferente do que era quando o dramaturgo me viu pela última vez. Como os outros átomos, eu sou, ainda que tenuemente, um ser livre».
O que significa não estar porventura longe o tempo de um teatro da vontade, cuja raiz é essa ténue, precária liberdade que, apesar de tudo, realiza na terra os sonhos do Homem, lhe permite assenhorear-se dos astros e fazer com que nos reunamos hoje, nesta e em tantas outras cidades, compartilhando uma esperança comum no Homem.

               ARTHUR MILLER (trad. Luiz Francisco Rebello,
                               dramaturgo, tradutor, ensaísta, crítico
                               e historiador de teatro)


Escrito pouco tempo (algumas semanas ou escassos meses) após a crise dos mísseis de Cuba, quando a Guerra Fria atingiu o seu auge e o confronto entre as duas superpotências atómicas de então, os Estados Unidos da América e a União Soviética, esteve iminente, este primoroso texto do insigne dramaturgo nova-iorquino Arthur Miller parece ter sido redigido de propósito para o Dia Mundial do Teatro de 2023. Sinal de que, volvidas seis décadas, os impulsos mais instintivos e animalescos do homo sapiens se têm sobreposto (estão a sobrepor) ao pensamento mais lúcido e ponderado, como o do ilustre autor de "As Bruxas de Salem", que preconizava (preconiza) a concórdia e a fraternidade entre todos os povos da Terra, possível de se alcançar pela fruição das artes, e muito especialmente do teatro. Seria bom que os poderosos senhores da guerra e da política de hoje, cuja visão parece toldada pelo insano desejo de vãs vitórias, dispensassem alguns minutos a ler, com a máxima atenção, a avisada mensagem de Arthur Miller, pois ajudá-los-ia a ver claro e longe. Mas não somente eles o deviam ler (e isto é muito importante!): também os cidadãos dos países beligerantes e, bem assim, os de todos os outros cujos governos apoiam algum dos beligerantes – porque a intervenção cívica dos povos a favor da paz é essencial e fundamental para se evitar que a Humanidade caia no precipício...

A empresa Rádio e Televisão de Portugal tem à sua guarda o mais substancial e importante acervo de teatro radiofónico e televisivo de produção nacional e, muito provavelmente, de todo o mundo de língua portuguesa. Mas é confrangedor constatar que não tem sido suficientemente valorizado e explorado (no bom sentido do termo, bem entendido). Na RTP-Memória é bastante raro aparecer uma peça (nem sequer no Dia Mundial do Teatro – pasme-se! – isso tem acontecido nos últimos anos). Quanto à rádio, só no programa "Ecos da Ribalta", da Antena 2, graças ao mui louvável cuidado de João Pereira Bastos, os amantes da arte de Talma têm a possibilidade de ouvir, de vez em quando, uma das muitas e boas produções dos tempos áureos do teatro do imaginário. Importa, portanto, que nas grelhas da RTP-Memória e da Antena 2 (pelos menos) passe a existir um espaço regular, de periodicidade semanal, reservado à divulgação dos valiosíssimos arquivos de teatro televisivo e radiofónico, respectivamente. Escusado será acrescentar que a existência de tais espaços não deve obstar à disponibilização online dos acervos completos daquelas duas modalidades de teatro. No caso do radiofónico, verificamos que na plataforma RTP-Arquivos muitas peças ainda não constam. Damos apenas três exemplos, de que guardamos gratíssima memória auditiva: "Deus lhe Pague", de Joracy Camargo; "Yerma", de Federico García Lorca; e "A Cotovia", de Jean Anouilh.

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21 março 2023

Natália Correia: "A Casa do Poeta", por Afonso Dias


Natália Correia, "Auto-Retrato", 1956, Óleo sobre tela, 92,5 x 72,5 cm, Museu Carlos Machado, Ponta Delgada [MCM 6930]
Fotografia – António Ferreira Pacheco


Natália Correia viveu quase toda a sua vida em Lisboa, cidade angular de toda a sua existência.
Na capital escolheu a sua residência numa zona de confluência de várias camadas sociais. À distância ficava-lhe o Rato (espaço aristocrático), ao cimo o Marquês de Pombal (área burguesa) e, defronte, a Avenida da Liberdade (zona cosmopolita).
Corriam os anos 50, quando a escritora, então em início da sua fulgurante carreira, descobriu, casualmente, um 5.º andar na Rua Rodrigues Sampaio. «Um dia vim aqui visitar uns amigos e a atmosfera da casa atraiu-me logo. Eles mudaram-se e este apartamento esteve muito tempo devoluto, como que à espera que eu casasse e o alugasse».
Situava-se num edifício sólido e elegante, discreto e requintado com, no rés-do-chão, uma das melhores pastelarias-restaurantes da cidade. Natália Correia passou a habitar o último piso após o seu casamento, em 1953, com Alfredo Lage Machado. «Ele foi o grande amor da sua vida», confidencia-nos Helena Cantos (protagonista feminina do filme "Santo Antero"), e amiga íntima durante décadas.
Com invulgar bom gosto, a poetisa decorou-o. Na entrada, dispôs sobre numa credência um busto seu da autoria de Martins Correia. No salão principal instalou a biblioteca composta por milhares de volumes, um auto-retrato [>> imagem supra], um óleo de Cesariny, uma escultura de Júlio de Sousa e uma máscara de Eça de Queiroz. Em posição de destaque, uma gigantesca mesa-secretária, estilo império, com tampo de mármore escuro e pés dourados, cadeiras Luís XVI, porcelanas chinesas (herdadas da mãe), peças de artesanato e um tabuleiro de xadrez; numa sala anexa, vários quadros contemporâneos, um canapé, um par de 'bergeres' e um bar de estilo renascença.
Durante duas décadas a casa tornou-se um dos mais pujantes salões literários de Lisboa, onde se reuniam, pelas noites fora, escritores, pintores e políticos.
«Natália Correia e o seu marido cederam a sua elegante residência», descreve um jornal da época, «para a representação da peça de Jean-Paul Sartre, "Huis Clos", inédita entre nós. Foi interpretada por Natália Correia, Maria Ferreira, Castro Freire e Manuel Lima».
O espectáculo, encenado por Carlos Wallenstein (açoriano), teve entre a assistência Isabel da Nóbrega, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, João Gaspar Simões, Fernando Amado e Almada Negreiros.
Numa noite, em 1960, Henry Miller bate à porta de Natália que fica espantada. Ele entra, senta-se e discute com os presentes, entre os quais David Mourão-Ferreira e Delfim Santos, o tema do amor. Ao sair, o romancista norte-americano exclamará: «Aqui sentimo-nos ou no século XVIII ou no ano 2000. Foi preciso vir a Portugal para encontrar uma verdadeira pitonisa».
Entre outros vultos universais que a frequentaram, destacam-se Ionesco, Claude Roi e Michaux.

ANTÓNIO BRÁS (in https://www.modaemoda.pt/)


A casa de Natália Correia (à rua Rodrigues Sampaio) e, muito especialmente, a sala de estar onde trabalhava depois do almoço e recebia os amigos à noite, também foi, ela mesma, objecto do seu labor poético, designadamente no poema, em oito estrofes (quadras), intitulado precisamente "A Casa do Poeta". Metaforicamente, a casa do poeta é a sua poesia e, nessa medida, podem frequentá-la sempre todos os que precisam dela para o seu sustento espiritual. Neste Dia Mundial da Poesia, que acontece no ano do centenário do nascimento da autora d' "A Mosca Iluminada", acolhemo-nos em sua casa, guiados por Afonso Dias, e tornamo-nos convivas e comensais do lauto banquete que a generosa anfitriã pôs à disposição de quem quis dar-lhe a honra de visitá-la. Porque a poesia é para comer e em sua casa não há lugar para subalimentados do sonho! Bom apetite e melhor proveito!

E como se tem comportado a estação pública de radiodifusão neste dia que a UNESCO instituiu para celebrar «a diversidade do diálogo, a livre criação de ideias através das palavras, a criatividade e a inovação»?
Na Antena 2, cumpre-nos mencionar João Chambers que, por antecipação, devotou a edição de domingo passado do seu programa "Musica Aeterna" à poesia de Goethe, em tradução do próprio João Chambers e do Prof. Paulo Quintela, dita por Carla Aranha [>> RTP-Play]. Hoje, logo de manhã, pela mão de Paulo Alves Guerra, houve poesia de Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto Jorge. E Luís Caetano, assinalando o 10.º aniversário (parabéns!) da sua rubrica "A Vida Breve", presenteou-nos com a "Pedra Filosofal", de e por António Gedeão [>> RTP-Play]. Ao fim da tarde, a partir das 19h:00, foi transmitida a gravação do recital "O Poema Ensina a Cair", que se havia realizado a 1 de Março passado no auditório do Museu do Oriente, preenchido com poemas de um bom rol de autores contemporâneos de língua portuguesa (alguns bem pouco conhecidos) escolhidos e lidos por Raquel Marinho, com o acompanhamento e interligação musical do pianista João Paulo Esteves da Silva [>> RTP.PT/Antena2]. Desta vez, a Antena 2 esteve bem!
E o que fizeram as outras duas antenas nacionais? Apenas lográmos ouvir algo na Antena 1, no programa "Uma Noite em Forma de Assim", de Jorge Afonso, pela voz de dois jovens autores. Nada mais nos constou de poesia dita/recitada nas Antenas 1 e 3, visitando as 'homepages' e fazendo incursões periódicas às respectivas emissões! Perguntamos: será que Nuno Galopim e Nuno Reis, que aparentemente não gostam de poesia, julgam que os ouvintes dos canais que estão sob a sua direcção também não suportam as palavras dos poetas? Ou tratou-se de mera e simples inércia?



A CASA DO POETA



Poema de Natália Correia (in "A Mosca Iluminada", Colecção Poesia, vol. 3, Lisboa: Quadrante, 1972 – p. 26-28; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 428-429; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 319-320)
Recitado por Afonso Dias* (in CD "Poesia de Natália Correia", col. Selecta, Música XXI, 2007)


Pelo meu acto de inventar amigos
como quem lá de cima vê Lisboa
a acusar-se numa fotografia
tirada de um avião e lhe perdoa

minha propriedade vertical
levanto como quem na hora extrema
se salva a tempo como quem ao inimigo
oferece a face esquerda do poema.

Ó pedreiros do meu amor de sempre
fazendo a minha casa com a alegria
de quem se escolhe a morrer pelos outros
deita uma lágrima e merece o dia!

Casa que não se esconde atrás das portas
endereço de guerra redimida
roupa de amor a pingar sobre quem passa
renda que pago em sofrimento à vida

minha casa ingénua de armistício
assinado entre mim e os descrentes
casa de versos que escrevo na brancura
da cal que empalidece pelos ausentes.

No acalento da sala que é de estar
entre algodões porque é sala de ser
esperamos que o elefante solitário
da tarde se afaste para morrer

e a noite com alcoólicos gorjeios
de pássaros de gim dentro dos copos
mata a sede de sermos um infinito
animal em lacerados corpos.

Plural solidão de casa muita
espaçoso afago casa substância
de amigos que encontramos no futuro
dançando o que nos resta de crianças.


* Afonso Dias – voz
Organização, selecção e apresentação – Afonso Dias
Captação de som, mistura e masterização – Adriano St. Aubyn
URL: https://www.facebook.com/afonso.dias.31
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Dias
https://www.youtube.com/@afonsodias4584/videos
https://music.youtube.com/channel/UCChoajupsYfGsG5uIGj8XMA



Capa da 1.ª edição do livro "A Mosca Iluminada", de Natália Correia (Colecção Poesia, vol. 3, Lisboa: Quadrante, 1972)
Concepção – Cidália de Brito Pressler



Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999)



Capa do CD "Poesia de Natália Correia", de Afonso Dias, com a colaboração de Isabel Afonso Dias, Meguy, Rita Neves, Tânia Silva e Telma Veríssimo (col. Selecta, Música XXI, 2007)

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Outros artigos com poesia de Natália Correia:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Poesia na rádio (II)
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia
Ana Moura: "Creio" (Natália Correia)
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
A Natalidade de Natália

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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Arte e poesia
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
João Villaret: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Em memória de Guilherme de Melo (1931-2013)
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Celebrando Agostinho da Silva
Camões recitado e cantado (II)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Camões recitado e cantado (III)
Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Camões recitado e cantado (IV)
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Miguel Torga: "Natividade"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Fernando Namora: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado (V)
Miguel Torga: "A um Negrilho"
Camões recitado e cantado (VI)
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Camões recitado e cantado (VII)
Maria Teresa Horta: "Mulher-Poetisa"
Florbela Espanca: "À Morte", por Eunice Muñoz
Camões recitado e cantado (VIII)
Eugénio de Andrade por João Perry

20 março 2023

Celina da Piedade: "Primavera"


Fotografia extraída do blogue "Portugal +"


No ramalhete de espécimes musicais alusivos à estação das flores e do renascimento, já objecto de destaque no blogue "A Nossa Rádio", ainda não constava a jovial e animada "Primavera", de Celina da Piedade. Não houve outra razão de não ter entrado antes que não fosse a nossa preocupação de dar prioridade a repertório menos conhecido. Fazemos-lhe hoje a devida justiça, assinalando o começo da Primavera de 2023 (no hemisfério norte, bem entendido), que se deseja se não inteiramente feliz ao menos esperançosa em dias menos aflitivos e conturbados. Boa escuta!

Além de ter integrado (ou integrar) projectos colectivos, como os grupos Modas à Margem do Tempo, Uxu Kalhus e Os Tais Quais, todos eles com álbuns publicados, Celina da Piedade já editou quatro discos em nome próprio: "Em Casa" (2012), "O Cante das Ervas" (2014), "Sol" (2016) e "Ao Vivo na Casinha" (2021). Trabalhos que incluem pérolas de alto quilate, mas que têm sido sonegadas a quem sintoniza a Antena 1 nos períodos em que roda a 'playlist', cujo somatório deve ultrapassar 80% do tempo de difusão musical do canal. Como explicar tamanha anormalidade?



Primavera



Letra e música: Celina da Piedade e Alex Gaspar
Intérprete: Celina da Piedade* (in CD "Festival da Canção 2017", RTP Edições/Sony Music, 2017)




[instrumental]

Se o fim é um começo
Voltamos sempre a lutar:
Já lá vem outro Abril,
É tempo de semear!

Da espera faz-se a luz
Da primavera a nascer:
Um fruto é como um filho
Do querer!

Dois, três, e...

[instrumental]

A tudo o que aprendemos,
Beijado ao calor do Verão,
Esquecemos neste Inverno...
Faltou-nos uma canção!

Cantar p'ra não esquecer
Que unidos não estamos sós!
Que temos liberdade
Na voz!

É Primavera quando chegas!
Sou andorinha p'ra te ver
E as flores que trazes são vermelhas:
Há sempre esperança a renascer!

[coro / instrumental]

É Primavera quando chegas!
Sou andorinha p'ra te ver
E as flores que trazes são vermelhas:
Há sempre esperança a renascer!

É Primavera quando chegas!
Sou andorinha p'ra te ver
E as flores que trazes são vermelhas:
Há sempre esperança a renascer!


* Celina da Piedade – voz e acordeão
Ricardo Silva – guitarra portuguesa e coros
Catarina Cardoso – viola campaniça e coros
Nilson Dourado – guitarra eléctrica e coros
Sofia Neide – contrabaixo
Sebastião Santos – bateria e coros
Mistura e masterização – Vasco Ribeiro Casais
URL: http://www.celinadapiedade.com/
https://www.facebook.com/celinadapiedadeoficial/
https://www.youtube.com/@CelinadaPiedadeoficial/videos
https://music.youtube.com/channel/UC1MgQco-wBolL1IObenoA5Q



Capa do CD "Festival da Canção 2017" (RTP Edições/Sony Music, 2017)

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Outros artigos com repertório alusivo à Primavera:
Cantos d'Aurora: "Primavera"
Roda Pé: "Primavera Alentejana"
Grupo Coral "Os Ceifeiros de Cuba": "No Tempo da Primavera"
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Francisco Filipe Martins: "Canção da Primavera"
Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração: "É Lindo na Primavera"

16 março 2023

A Natalidade de Natália


Natália Correia, "Auto-Retrato", s/d [1956], Óleo sobre platex, 38 x 30 cm, Museu Carlos Machado, Ponta Delgada [MCM 6913]
Fotografia – António Ferreira Pacheco


A Natalidade de Natália

Por: Fernando Dacosta (jornalista e escritor)



Natália Correia está hoje numa espécie de limbo. Limbo é o local onde repousam as almas dos grandes inocentes e dos grandes perversos, ou seja das crianças e dos criadores – que ela era, até ao excesso.
Não se tornava fácil compreendê-la. Nem amá-la. Fazê-lo, exigia sentimentos, disponibilidades especiais. Era um ser tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos sentimentos.
Os que a não aguentavam combatiam-na não pelas ideias mas pelos tiques, não pela criação mas pela distracção, tentando reduzida a anedotários de efeitos fáceis e falsos.
Ao mesmo tempo forte e desprotegida, imponente e indefesa, egoísta e generosa, arguta e ingénua, dissimulada e frontal, sentia-se, ante as coisas rasteiras (e as pessoas, e as acções), perdida; só as grandes a tocavam, galvanizando-a. Então toda ela ganhava golpe de asa, vertigem.
Era esplendoroso vê-la a entrar nos templos de chicote em punho, isto é, de palavra viva, zurzindo os vendilhões, os traficantes, os hipócritas, os videirinhos. Era magnífico acompanhá-la nas suas estradas de Damasco em direcção à utopia, ao amor, à justiça, à criatividade, à elegância, levando pelo braço poetas e amantes, perseguidos e ostracizados, loucos e solitários.
Poetisa, dramaturga, romancista, ensaísta, cronista, conferencista, deputada, oradora, editora, tradutora, Natália Correia marcou transversalmente várias gerações e identidades de nós.
A literatura (através da ficção e da reflexão), a comunicação social (dos jornais e da TV), a política (de intervenções parlamentares e ideológicas), o convívio (de colóquios e tertúlias) foram os grandes campos onde se afirmou, se popularizou, se acrescentou.
A ilha (nasceu em S. Miguel) deu-lhe o gosto mágico pela vida. Ela «é a mãe, é a fatalidade dos insulares», comentava. E o território do oculto, da partida, do regresso. «Onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho do espírito», avisava.
A noção de Pátria e de Mátria, acrescenta a de Frátria – Frátria como símbolo de fraternidade, de igualdade, de equidade.
Bate-se pela recuperação do sagrado, do politeísmo, do femininismo, do barroco, do diferente, e pelo repúdio da crucificação, do consumismo, do descontrolo demográfico, da arrogância indiferenciadora.
«Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?», interrogava-se.
Os grandes mitos portugueses encontraram em si uma celebrante incomum: o mito do Andrógino (o ser completo, uno e plural), do Desejado (o que contém a resistência, não a desistência), de Pedro e Inês (a paixão, a volúpia pela morte), da Ilha (o espaço da esfinge, da iniciação). A todos dedicou obras próprias, reformulando-os, dando-lhes dimensões de novos futuros e liberdades.
As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação. Sabia indignar-se com grandeza – e indignar os outros à sua altura.
Muitas vezes perdia a cabeça connosco e nós com ela. Sufocava-nos. Muitas vezes apetecia-nos fugir. Não aguentávamos a sua energia, a sua lucidez, a sua exigência, o seu empenhamento, a sua implacabilidade. Muitas vezes tentámos matá-la em nós para sermos nós. Até nisso nos ajudou.
Era uma mulher inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram, o sonharam.

As Noites do Botequim

A noite reservava-a para os amigos e os admiradores no Botequim, que abriu com a poetisa [e escultora] Isabel Meyrelles, nos anos sessenta [1968].
Vendo o marido arruinado (fora um hoteleiro próspero), arranjou-lhe, no Largo da Graça, um pequeno bar para administrar – e se ocupar. Espaço único, marcaria a vida política e cultural portuguesa das últimas décadas do século. Por ele, pelas suas madrugadas, passaram (até fechar em 1995) projectos exaltantes, exultantes, de artes, de utopias, de generosidades, de cumplicidades; pela sua saleta de veludos e músicas, inúmeras estratégias de revoluções, de ficções foram feitas, desfeitas, sem desânimo nem remorso.
Romances e filmes, peças e recitais, debates e canções, quadros e fantasias, viagens e homenagens nasceram nas suas mesas, entre «rosbifes» e «champanhes», generais e presidentes, embaixadores e vadios, loucos e amantes, sob a energia, a natalidade de Natália que fez dele – para a nossa memória, para nosso afecto – um casulo, um «sol nas noites» e um «luar nos dias».
Última grande tertúlia de Lisboa, proporcionava a «comunhão com pessoas de espírito e ousadia, fundamental para se evitar a cultura desvivenciada», lembrava, «pois só quando se está muito na vida se pode transmiti-la aos outros».
As divisões da casa onde Natália viveu e morreu eram harmoniosas, amplas, quinto andar sóbrio, sólido, paredes e decoração espessas, paralelo à Avenida da Liberdade, junto ao Marquês de Pombal [n.º 52 da Rua Rodrigues Sampaio].
Ecos de vozes no exterior, estalidos de madeiras no interior, reposteiros de veludo, estantes de vibrações, objectos de memórias davam-lhe uma sedução inesquecível – a sedução da passagem do tempo, do adensar das sombras, da finitude, da decadência.
«Um dia vim aqui visitar uns amigos e a sua atmosfera atraiu-me logo», conta-me. «Eles foram-se embora e este espaço esteve muito tempo devoluto, como que à espera de eu me casar e o alugar».
Casou-se e alugou-o.
Alfredo Machado Lage («o único homem que verdadeiramente amei», confidenciará) tornou-se o seu terceiro marido [em 1953].
Deixou o andar onde residia com a mãe [Maria José de Oliveira, professora e escritora], a irmã [Carmen de Oliveira Correia], uma criada, a Menina Esmeralda (alugara-o a meias com Vera Lagoa), e mudou-se.
Hóspede e amigo da mãe, Cardoso Martha, um bibliófilo afamado, ceder-lhe-ía a sua gigantesca biblioteca (avaliada em mais de dez mil contos), que Natália compraria e enriqueceria.

Vida Tripla

«Ela tinha, na altura, uma vida tripla: de intelectual, de política e de mulher de sociedade. Ia jogar bridge no Estoril com as senhoras bem, e roleta no casino existente no hotel do marido. Foi a mãe que a introduziu nos meios da oposição», conta-me, uma semana antes de falecer, Tomás Ribas, o maior e mais antigo, e fiel, e crítico, e profundo amigo da poetisa. «A Natália, que casara muito jovem com Álvaro dos Santos Dias Pereira [em 1942], esteve para se consorciar com o senhor Machado pouco depois de o ter conhecido. Chegou até a dar uma festa de despedida de solteira... mas quando pensávamos que era ele o noivo, apresentou um americano que acabara de encontrar, chamado Billy [William Creighton Hillen]. Casou-se [em 1949] e partiu com ele para os Estados Unidos, país que detestou. Foi nessa altura que escreveu o livro "Descobri que Era Europeia". Meses mais tarde divorciou-se e regressou.
Radicada em Lisboa, Natália toma-se colaboradora do semanário "O Sol", depois de ter passado pelo Rádio Clube Português – onde trabalhou com a irmã e onde eram conhecidas como as "Meninas Balalaikas".
Relaciona-se com Ferreira de Castro, Maria Archer, António Sérgio, Manuel da Fonseca, Jaime Cortesão, Manuel de Lima, Cesariny, Rogério Paulo, Almada, tomando-se, a partir daí, presença irrecusável entre intelectuais, artistas e políticos.
«Acusavam-me, continuam a acusar-me de tanta coisa, de ser promíscua, de ter relações com homens e mulheres... o problema é que eu quase não tenho líbido. Mesmo em nova, o sexo nunca representou grande coisa para mim. Sempre gostei, por outro lado, de homens mais velhos do que eu... ora nesta altura, com a idade que eles têm, já não funcionam», confidenciava com indisfarçável pudor – era, aliás, muito pudica no que dizia respeito à sua intimidade.
«A maior parte das pessoas apenas viam em mim a fêmea, o corpo, só depois percebiam que eu tinha ideias, talento. Isso maçava-me muito, e revoltava-me.».
Depressa deixará de se preocupar com o corpo. A beleza, a elegância perdidas não pareciam melancolizá-la. «Uma vez por semana, a cabeleireira ia arranjá-la a casa», pormenoriza-me Helena Cantos, sua amiga de juventude. «Não comprava roupas e os vestidos eram feitos pela porteira. Quando morreu houve até dificuldade em escolher um em bom estado, para a amortalharmos. Levou o azul-escuro, de veludo, que envergava nas ocasiões de maior cerimónia».

Verdadeira Pitonisa

O centro da sua casa situava-se na zona de estar (biblioteca, escritório, área de comer, de receber, de festejar, de preguiçar), espaço grandioso forrado a livros, a quadros, a fotos, a referências, a recordações, a símbolos, mesa gigantesca ao centro, mármore negro, pés esculpidos de oiro, tinteiro de cobre, candeeiro de haste, poltronas de rebordo, televisão sem som, telefone sem fios, recordações sem negrumes.
Por ele passaram vultos universais, Henry Miller, Ionesco, Claude Roi, Michaux, nele se representou Sartre (clandestinamente) pela primeira vez em Portugal.
«Aqui sentimo-nos ou no século XVIII ou no ano dois mil», exclamou Henry Miller depois de assistir a uma discussão sobre o amor [a 15 de Maio de 1960]. «Foi preciso vir a Portugal para encontrar uma verdadeira pitonisa», disse referindo-se à anfitriã.
Na sala, onde trabalhava durante a tarde (de manhã fazia-o no quarto, descalça, isolada), as atenções convergiam para um quadro sobre a lareira, ao alto, notável auto-retrato que Natália fizera; anos atrás ela entregara-se, durante meses, exclusivamente à pintura. Podia ter sido, se a continuasse (Almada incentivou-a), um nome cimeiro das nossas artes plásticas.
«Pintei como terapêutica. Ferida, nessa altura, pela notícia da morte da minha mãe [1956], que estava no Brasil, agarrei-me, rangendo de dor, aos pincéis e fechei-me num quarto durante um ano».
A ilha deu-lhe o gosto irreal pela vida: Ela «é a mãe, é a fatalidade dos insulares. Mesmo os mais desgarrados, como aparentava ser Antero, escolhem a ilha como túmulo, ou seja, berço para reviver».
A parte mais secreta da biblioteca, dispersa por todas as divisões, estava em estantes descomunais, num corredor que abria com um quadro de Bual, em tons azuis e verdes. Telas valiosas seguiam-se-lhe pelos cantos, à espera de serem encaixilhadas, penduradas, recuperadas, amadas.
Um escultor visionário, Júlio, tomou-a por um ser mítico, um ícone índio, e fixou-a em busto de pedra. Comovida, Natália colocou-o numa parede nobre, junto a uma menina-girassol, lindíssima, de Cesariny. Um fotógrafo de sensibilidade, Sampaio Teixeira, imaginou-a uma deusa grega e retratou-a, esplendorosamente nua, em cenários dionisíacos – mais de 20 "slides" inéditos deixados (por testamento) ao Centro Nacional de Cultura, onde se encontram, se resguardam, invioláveis, intocáveis.
«Sou da Ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o Espírito. O indizível. O religioso é uma ideia que anda no ar mesmo para as pessoas que não têm sensibilidade para a ver nem coragem para a agarrar».
As recordações dos Açores eram-lhe, amiúde, pontes para um tempo, o da infância, um espaço, o das ilhas, mágicos. Natália Correia precisava desse apego à infância e às ilhas, lugares de ligação ao mistério que a habitava.
«Os deuses só nos pedem que estejamos na vida com a mesma naturalidade com que as flores estão na haste. Os homens só serão unidos quando acreditarem em todos os deuses. Mais importante do que eles existirem é acreditarmos neles».

Sacerdotisas do amor

Atraía como um íman os desvairados, os místicos, os assassinos, os ladrões, os vagabundos, os dementes. Todos a ouviam, a tocavam. Todos a fascinavam: «Temos que recuperar o seu sofrimento porque eles estão mais próximo do oculto», repetia-nos.
Era surpreendente vê-la dirigir-se às prostitutas e aos travestis que acorriam a saudá-la quando, madrugada alta, chegava à sua rua, em Santa Marta: «Meninas, não consintam que as humilhem, lembrem-se que são sacerdotisas do amor!».
E ficava-se, por vezes até amanhecer, a ouvi-las, a exortá-las. Guardas-nocturnos, prostitutos, gigolos, chulos, assaltantes, passantes, juntavam-se e faziam roda, e perguntas, e pedidos, e batiam-lhe palmas, num fantástico teatro de sombras e iluminações, vertigens e desmesurados. Nunca existiu nada, assim, nas margens da cidade, de tão intenso, tão belo, tão desapossado, tão comovedor.
Só na vigília por ela, na Casa dos Açores, longa vigília de duas noites e dois dias (o tempo que um espírito necessita para se desprender do corpo) se atingiria, entre ondas de flores a chegarem de todo o país, de músicos, de cantores, de ranchos folclóricos, de tunas, de estudantes em serenatas, se atingiria dimensão semelhante – com o Presidente da República, ministros, embaixadores, intelectuais, artistas, desportistas, autarcas, astrólogas, videntes, espíritas, sacerdotes, vadios a olharem o esquife aberto, ela no centro, serena e branca, finalmente ungida deusa pagã.
Daí seguiria, ao terceiro dia, para o forno crematório (apavorava-a a ideia de poder ser enterrada viva) do cemitério do Alto de São João.
A percepção que Natália Correia tinha do mistério – fonte da sua criatividade – levou-a a voltar-se, desde muito cedo, para os universos do fantástico, do inexplicável, do religioso, do maravilhoso, do poético. A alquimia significava para si, não a obtenção do oiro, mas a obtenção da androginia.
Desses universos provinham-lhe (subtis cordões umbilicais) a energia, a vidência que a faziam – como a Camões, como a Pascoaes, como a Patrício, como a Pessoa – ser de genialidades.
Os poderes que detinha tomavam-na, por vezes, inquietante. Contactos com mortos e extraterrestres, controlo de elementos da Natureza, cumprimento de rituais iniciáticos eram-lhe irreprimíveis. Entidades de outras dimensões e espíritos de mortos e de deuses tinham, exclamava-me angustiada, «tendência para baixar» nela. Daí nunca estar sozinha em casa.
Em certas alturas, energias estranhas irrompiam de si comunicando-se aos que a envolviam – pessoas, animais, objectos, árvores, águas, nuvens; outras, irrompiam sobre si, dilatando-a, transfigurando-a. Forças inexplicáveis tomavam-na, tomavam-nos. Com gestos imprevisíveis, dirigia-se para lá do visível entoando melopeias de rezas e salmos. Tomava-se, então, uma vidente, uma médium de assombros.

Asas de ouro

Porque poeta, Natália Correia sentia-se profeta. Imperatriz do Espírito Santo (fora coroada em menina, na sua ilha), procurou desde muito cedo os enigmas que a envolviam, como o da Lagoa do Fogo, na lha de São Miguel.
«Ibericista» (não iberista), «femininista» (não feminista), «politeísta» (não fundamentalista), na sua autodefinição, abria-nos espaços surpreendentes. «Onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho do espírito».
Ousadíssima, recusava o monoteísmo e a crucificação. Aceitá-los, sobretudo à crucificação, era aceitar o holocausto – atómico, demográfico, ambiental, tecnocrático.
Daí ser urgente pôr fim à explosão do nuclear e do populacional; ser urgente subir ao Monte e despregar Cristo da Cruz, trazendo-o para o meio dos homens e dos outros deuses; ser urgente recuperar o romantismo, o barroco, o anárquico, o profético, o periférico, o utópico, valores profundamente portugueses; ser urgente religar o racional e o intuitivo, o masculino e o feminino, o novo e o antigo, o conservador e o inovador; ser urgente assinar o Armistício connosco próprios – "Armistício" é o título de um dos seus livros mais perturbadores.

Cartas de amor

Dórdio Guimarães, que Natália conheceu nos anos sessenta, muito jovem, muito tímido, apaixonou-se por ela passando a segui-la como uma sombra, até ser-lhe uma sombra. «E um esposo-irmão», justificará aos que a interrogam. «O nosso é um casamento casto», acrescentará, sorrindo.
As cartas de amor que Natália Correia escreveu (ao primo José António Correia quando fazia a guerra colonial na Guiné) colocam-na, pela sua intensidade e vertigem, entre as grandes autoras amorosas – superior a uma Mariana Alcoforado – da nossa literatura.
Deviam, sem preconceitos nem inibições, ser publicadas (Inês Pedrosa deu, ante a incompreensão de alguns, um exemplo de ousadia nesse sentido), tal como os inéditos que deixou prontos e que não foram ainda divulgados nem conhecidos.
A solidariedade, a lealdade não tinham limites nela. Nunca a vi consentir que dissessem mal dos seus amigos; nunca a vi virar costas a quem lhe estendesse a mão, o sofrimento, o medo.
A cultura portuguesa, cuja grande reserva se encontra nas ilhas e nos interiores, era-lhe uma paixão ardente. Enjoavam-na os enjoados da Pátria e dos sentimentos, os cínicos e os yuppies, os normalizadores e os burocratas.
A ideia dos Estados Unidos da Europa punha-a possessa. Jamais esquecerei a tarde que passámos (ela, o Dórdio e eu) em casa de Miguel Torga, em Coimbra, na altura em que Portugal assinou o tratado de Maastricht.
O poeta, que morreria pouco depois, encontrava-se deitado num "divã", quase inerte, ao fundo da saleta que lhe servia de escritório. O seu acabrunhamento parecia o de Camões após Alcácer Quibir.
Catastrofista, não acreditava que Portugal sobrevivesse integrado na Comunidade Europeia: «É um continente com uma economia, uma cultura, uma informação muito fortes. Não vamos poder resistir-lhe», repetia.
Preocupado com a tosse de Natália (a doença tomara-a já), levantou-se, foi buscar um estetoscópio e obrigou-a a deixar-se consultar. «Não está nada bem», sussurraria para nós. Sentou-se à secretária e prescreveu-lhe uma receita. A última que ele passou.
«Em vez de a aviar numa farmácia vou guardá-la como recordação», decidiu, comovida, Natália.
No chamado "Verão Quente de 75", Miguel Torga seria dos poucos vultos de esquerda a estar a seu lado na oposição às tentativas de tomada do poder por forças do PCP.
"Não Percas a Rosa", diário que ela escreveu sobre esses meses de brasa, tomou-se uma premonição: do fim do 25 de Abril, da queda do bloco de Leste, da ditadura mercantilista, da perversão globalizadora.
Debruçada sobre a mesa de trabalho, aos pés da cama, anota: «A revolução marxista deter-se-á em Lisboa. A roda do mundo atingirá, nela, o limite da rotação, e desandará. Na economia misteriosa da História, Portugal é o peso minúsculo que vai fazer inclinar todo o conjunto».

Voltas a Portugal

Ramalho Eanes revelar-se-lhe-ía de uma lealdade suprema. Com discrição e firmeza defendeu-a, acompanhado por Manuela Eanes, até ao fim. Sem Natália o saber, os dois diligenciaram, por exemplo, que lhe fosse atribuída uma pensão por mérito artístico, maneira de lhe minorar, não a constrangendo, a sobrevivência.
Presidente da República, encarregou-a por mais de uma vez de o representar em cerimónias oficiais de destaque. Embaixadas, Ministério da Cultura, direcção do Teatro Nacional foram, entre outros, cargos que, nesse período, ela recusou.
Passámos, nos últimos anos, os fins-de-semana a cirandar pelo País. Para participar em debates, proferir conferências, apresentar livros, desenvolver encontros, promover obras.
Íamos quase sempre à nossa custa, no meu carro (um soberbo "Nissan Primera"), ou no de Francisco Baptista Russo (um magnífico BMW), pagando com frequência a gasolina e as refeições do nosso bolso.
Dotada de uma intuição notável para detectar talentos, Natália abria-se-lhes com generosidade, com quixotismo – apoiando-os, impulsionando-os, divulgando-os, amando-os.
Viajar com Natália Correia era uma aventura ora apaixonante, ora desesperante, tais os imprevistos, os incidentes, os caprichos, as exaltações, os temores que a possuíam.
Uma noite, vínhamos de Tróia de um encontro de escritores ibéricos, ela dispara-me enquanto atravessávamos o Sado, num ferry-boat: «Não posso passar por Setúbal». Porquê?, pergunto-lhe estupefacto. «Uma cigana disse-me há dias que este mês não devia entrar em nenhuma cidade com rio, além de Lisboa».
Ironicamente, afianço-lhe: «Mas não passamos por lá. Há uma auto-estrada à saída do barco que nos leva por outro lado».
Claro que não havia. Percorremos calmamente Setúbal sem que ela, na sua incomensurável inocência, se apercebesse de nada. «É bonita esta auto-estrada, tem casas à volta, nem parece uma auto-estrada», comentou.
«Apetece-me champanhe para o almoço, e do bom!», exclama-me num fim de manhã de domingo. Regressamos a Lisboa depois de uma emocionante deslocação a Coimbra para apresentar um livro do poeta António Vilhena. Da parte da tarde, estudantes proporcionam-nos, em barcos engalanados de flores e dosséis, um passeio pelo Mondego – que a deslumbra.
Jovens vestidos à época de Pedro e Inês tangem alaúdes e guitarras. Natália, uma mão aberta na frescura da água, outra fechada na baste de uma rosa, canta (possuía uma voz magnífica) versos da "Samaritana". Nas margens, populares acenam-lhe sorrisos e simpatias, acompanhando-a nos compassos do refrão.
Toda a natureza – pessoas, rio, peixes, vegetação, pássaros – parece unir-se-lhe em sinfonia única, cósmica.
No Choupal, sentada num banco de pedra, lançará, após dizer poemas exaltando amantes mortos, a ideia de um ciclo sobre poetas suicidados. «Os grandes criadores acabam por desistir de viver. A inveja, a maldade, o cinismo, a hipocrisia que os cerca amargura-os a tal ponto que lhes apressa a morte, lhes faz apetecer a morte. O José Régio foi um dos que sucumbiram, tal a campanha de ofensas que lhe moveram. Ele será o primeiro homenageado!».
Pressentido que lhe poderia acontecer o mesmo, Natália tentava, dessa maneira, esconjurar as forças negativas que, à distância, a rondavam.
Um estudante grava numa árvore, ante o silêncio comovido do grupo, as palavras: "Ciclo dos poetas suicidados".
O desaparecimento, pouco depois, de Natália Correia "suicidar-nos-á", por muito tempo, a todos nós.

Medo da miséria

«Apetece-me champanhe, e do bom!», repete-me ela. «Não há dinheiro para essas extravagâncias», respondo-lhe. «Não lhe pedi nada, menino».
Abre a janela: «Vá devagarinho, por favor», pede. Entrámos em Leiria. Cabeça de fora, ela perscruta, nos locais dos restaurantes, as aglomerações dos carros estacionados. De súbito, ordena: «Páre, páre. É aqui que vamos almoçar».
A sua figura atrai sobre nós os olhares da sala onde um grupo festeja ruidosamente o aniversário de um jovem de côr.
Natália encomenda cozido à portuguesa, que adorava e devorava. A sua gula aconselhava a que não se escolhesse, nunca, o mesmo que ela; que se pedissem mesmo coisas de que não gostasse, sob o risco do seu garfo surripiador levar o melhor de todas as travessas.
Quando o grupo ao fundo entra nos brindes, Natália vira-se para o homenageado e dirige-lhe uma quadra de felicitações – pelos seus anos e pela sua beleza de «príncipe negro» à espera «da paixão que não tardará a fazê-lo voar». «Só não lhe ergo uma taça porque a não tenho!»
Ainda não havia acabado e já a mesa se nos enchia de garrafas, de doces, de ofertas, de palmas – e de «champanhe», do bom. O número seria, daí em diante, repetido com oportunidade e proveito.
A sua era uma luz que nem todos conseguiam suportar, até porque não permitia filtros aos que a fitavam.
O tempo foi, entretanto, mudando, mudando-a, isolando-a. A força da palavra, a sua arma, enfraqueceu. A cultura e o espírito, a imaginação e a utopia depreciaram-se. Tentou resistir: «Não, não me mato/ Antes me zango até ficar um cacto/ Quem me tocar, maldito/ Que se pique».
A vitória do liberalismo selvagem, da tecnocracia desumanizante, da globalização colonialista, amputou-a. «Pela primeira vez na minha vida tenho medo», confidencia-me. «As forças do mal estão a ganhar terreno, a perverter a democracia, a solidariedade».
As mulheres da política, por outro lado, decepcionam-na: «Em vez de levarem o feminino para o poder, de modo a transformá-lo, melhorá-lo, não: imitam os homens, ultrapassam-nos no que eles têm de pior. Comportam-se como travestis».
Vivia pobre sem saber que era rica. Que as suas colecções de arte, de manuscritos, de originais, de pintura valiam mais de trezentos mil contos.
A miséria passou a assustá-la, sobretudo a partir do momento em que o PS não quis recandidatá-la ao Parlamento – e faltavam-lhe apenas sete meses para ter, como deputada, direito a reforma.
O Botequim imergiu em decadência. Os jornais deixaram de solicitar-lhe colaborações, os seus livros não se vendiam. A RTP recusou-lhe propostas de programas, indiferente ao êxito da série "Mátria". As companhias de teatro ignoravam-lhe as peças, apesar do sucesso de "A Pécora". Dórdio Guimarães, com quem casara para fugir à solidão, faz-se-lhe um peso, uma preocupação crescente.
Natália perde, rapidamente, saúde, espaço, influência, energia. A década de noventa cerca-a. «Os dias que aí vêm são mesquinhos e feios, não me apetece ter de os viver», exclama. Amigos e companheiros (Rogério Paulo, Manuel da Fonseca, António José Saraiva, António Quadros) são, nesse ano negro, levados de nós.
«A partir de agora, se alguém me quiser encontrar procure-me», escreve, «entre o riso e a paixão. Adeus, espero-vos no Templo».
Ao raiar a madrugada de 16 de Março de 1993 entra em casa – e voa.

(in "Natália Correia, 10 Anos Depois...", Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003 – p. 9-18)


Em complemento ao perfil biográfico de Natália Correia, admiravelmente traçado por , e porque a evocação de um autor não dispensa o cultivo da sua obra, ademais tratando-se de um poeta (e dos maiores), juntamos cinco poemas natalianos em registos ainda não apresentados neste blogue: dois recitados pela autora (em 1969) e mais três cantados – dois por Sofia Escobar, com música de Renato Júnior, sob o título genérico "Separação", que é a última faixa do álbum "Natália É Quando Uma Mulher Quiser", de Renato Júnior, recentemente publicado nas plataformas digitais; e um por Mia Tomé, com música dela própria e de Mário George Cabral, intitulado "O Espírito", que faz parte do álbum, também muito recente, "Projecto Natália". Boa escuta e boa leitura!

No que à rádio pública diz respeito, começamos por enaltecer os animadores do programa "Encontros Imediatos", João Gobern e Margarida Pinto Correia, pelo convite à escritora Filipa Martins para ir falar, na edição emitida no sábado passado, de Natália Correia e da biografia "O Dever de Deslumbrar", lançada hoje mesmo [>> capa do fundo], e por terem pontuado a conversa com um punhado de poemas natalianos, uns recitados e outros cantados [1.ª hora >> RTP-Play / 2.ª hora >> RTP-Play]. É oportuno referir que a entrevistada já assinara o argumento da série "Três Mulheres" [1.ª temporada >> RTP-Play / 2.ª temporada >> RTP-Play] e do documentário televisivo em duas partes "A Insubmissa" [Natália na Resistência >> RTP-Play / Natália na Liberdade >> RTP-Play].
No dia de hoje, a Antena 1 também evocou a grande poetisa, transmitindo um apontamento em directo com a actriz e cantora Mia Tomé focado no álbum "Projecto Natália" [>> RTP-Play], a peça da jornalista Inês Ameixa centrada na actividade política de Natália Correia, com os depoimentos de Helena Roseta [>> RTP.PT/Noticias] e uma breve entrevista com o músico Renato Júnior, a propósito do seu álbum "Natália É Quando Uma Mulher Quiser" [>> RTP-Play]. O nosso aplauso para Nuno Galopim pelo cuidado que teve em não deixar passar em vão a efeméride dos 30 anos da morte de Natália. Resta-nos fazer votos de que, de hoje em diante, a 'playlist' nunca deixe de ter canções baseadas em poemas natalianos.
Na Antena 2, só no programa da manhã, de Paulo Alves Guerra, nos demos conta da transmissão de poemas de Natália Correia, em voz própria. Nada mais ao longo do dia...
A Antena 3, a aferir pelas incursões que fizemos à respectiva emissão, ainda esteve pior. Nadinha! Conclusão a tirar: os directores de programação do segundo e terceiro canal da rádio pública 'primaram' pela inércia – vergonhosa inércia!...



REQUIEM POR NOSSA MÃE CIBELANAÍTARIADNE



Poema de Natália Correia (do ciclo "As Silvas do Mandala", in "O Vinho e a Lira", Lisboa: Fernando Ribeiro de Mello, 1966; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 357; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 263-264)
Recitado pela autora* (in EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria", col. A Voz e o Texto, Decca/VC, 1969; CD "A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003; CD "Natália Correia e Ary dos Santos ...Dizem os Poetas", Edições Valentim de Carvalho, 2018)




Não há notícias de Ariadne
novilha incriada a úbere
que o algodão do luar tecia
magnânima de leite e urze

a dos megalíticos peitos
mama altar de vinha fartos
seu nome com sílabas de trevos
apodrece na memória dos charcos.

Em Auschwitz a viram
com varizes de erva nas tíbias
catando meticulosas lesmas
nas virilhas de radiografias.

Depois anestésica madre
doce olhar de águas termais
fez-se puta a dolorosa
anémona de uísque e jazz.

A última vez que a viram
apascentava em Hiroxima
suas rezes de sânie e sal
ela própria uma flauta de cinza.

E não mais tivemos notícias
de Ariadne a tecelã
que cozeu nossos olhos de argila
no fogo de uma romã.


* Natália Correia – voz
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Masterização (edição em CD) – Rui Dias, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores



MÁTRIA (VII)



Poema de Natália Correia (in "Mátria", Lisboa: Fernando Ribeiro de Mello, 1968; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 391-392; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 292-293)
Recitado pela autora* (in EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria", col. A Voz e o Texto, Decca/VC, 1969; CD "A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003; CD "Natália Correia e Ary dos Santos ...Dizem os Poetas", Edições Valentim de Carvalho, 2018)




Manolo Sanchez de Sevilha
ombros da lenha despontados
sua faca de amor amola
em esmeril de manzanilha
que rico olor tienen los nardos.

Noite indormida de mariscos
sangrando ulmeiros e cavalos
mastigação de flores de aveia
Manolo Sanchez vara de mimbre
que a minha hera serpenteia
sua crescente lenha de macho
em perfeição de dor se queima.

Ai ojos quites andaluzes
passes de peito da tristeza
manoletinas de soluços:
eres mi novia portuguesa.
Obsoleta a lua deixa
que com sua dor de ponta e mola
Manolo lhe corte uma madeixa.

Manolo Sanchez de Sevilha
em carbúnculo de adeus ficado!
Da amada reconhecível
não era a fonte não era a hora
seu sumo de desaparecida
tua língua refresca agora.

Ai contraluz de intáctil noiva
postumamente germinada!
Em tua tela cor da sede
sequestro verde de mulher água.


* Natália Correia – voz
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnico de som – Hugo Ribeiro
Masterização (edição em CD) – Rui Dias, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores
URL: http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=9794
https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Natalia_Correia
https://music.youtube.com/channel/UCFvNM9oE4Tk9D3Q5uDVtJeQ



Superação



Poemas: Natália Correia ("Superação" e "A Exaltação da Pele") [textos individualizados >> abaixo]
Música: Renato Júnior
Intérpretes: Renato Júnior* com Sofia Escobar (in álbum "Natália É Quando Uma Mulher Quiser", Doubleclick/SME Portugal, 2023)




Fechei-me dentro dos muros
onde o meu corpo não cabia
contente de ser prisioneira
do cárcere que eu transcendia.

E fui no vento que tudo
tudo o que havia varria,
contente de ser mais veloz
que o vento que me impelia.

Fiquei suspensa dos ramos
que os meus cabelos prendiam
contente de ser o destino
da árvore em que me fundia.

E dei-me como leito às águas
dos sonhos que me transcorriam
contente de ser o curso
da água em que me esvaía.

Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.

[instrumental]

Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.


* Sofia Escobar – voz
Arranjos – Renato Júnior e Helder Godinho
Produção – Renato Júnior
Gravado por Nelson Carvalho e Nelson Canoa
Misturado por Nelson Carvalho
Masterizado por Mário Barreiros
URL: https://www.renatojunior.com/
https://www.youtube.com/channel/UCJtjR32RmphFQTgX1DfmFag



SUPERAÇÃO

[Natália Correia, de "Inéditos (1959/61)", in "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 255; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 193]


Fechei-me dentro dos muros
onde o meu corpo não cabia
contente de ser prisioneira
do cárcere que eu transcendia.

E fui no vento que tudo
tudo o que havia varria,
contente de ser mais veloz
que o vento que me impelia.

Fiquei suspensa dos ramos
que os meus cabelos prendiam
contente de ser o destino
da árvore em que me fundia.

E dei-me como leito às águas
dos sonhos que me transcorriam
contente de ser o curso
da água em que me esvaía.



A EXALTAÇÃO DA PELE

(Natália Correia, do ciclo "Biografia", in "Poemas", Porto: Edição de autor, 1955; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 62; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 69)


Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.



O Espírito



Poema: Natália Correia (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Ana Maria Tomé de Matos e Mário George Cabral
Intérpretes: Mário George Cabral & Mia Tomé* (in álbum "Projecto Natália", MGeorge01LP, 2023)




[instrumental]

Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando? Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando? Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Vou com as andorinhas. Até quando? Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí me espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

[instrumental]

E vou com as andorinhas. Até quando? Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Vou com as andorinhas. Até quando? Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

[instrumental]


* Mia Tomé – voz
Mário George Cabral – sintetizador
Ricardo Parreira – guitarra portuguesa
Nelson Aleixo – viola
Francisco Gaspar – baixo acústico

Arranjos e direcção musical – Mário George Cabral
Direcção artística – Tiago Ribeiro
Produção – Mário George Cabral e Mia Tomé
Co-produção e pós-produção – Tó Pinheiro da Silva
Gravação, mistura e masterização – Tó Pinheiro da Silva
Assistente de gravação – Miguel Peixoto Batista
URL: https://www.facebook.com/miatome.artista/
https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_m-BauAuyCrBztcRFbSO7u1I17sxd02i7E



O ESPÍRITO

(Natália Correia, terceiro poema do ciclo "Do Amor Que Acorda o Espírito Que Dorme", in "Sonetos Românticos", Col. Horas de Poesia, vol. 2, Lisboa: Edições 'O Jornal', 1990; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 357; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 589)


Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí me espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.



Capa da 1.ª edição do livro "O Vinho e a Lira", de Natália Correia (Col. Sagir, vol. 1, Lisboa: Fernando Ribeiro de Mello, 1966)



Capa da 1.ª edição do livro "Mátria", de Natália Correia (Lisboa: Fernando Ribeiro de Mello, 1968)



Capa da 1.ª edição do livro "Sonetos Românticos", de Natália Correia (Col. Horas de Poesia, vol. 2, Lisboa: Edições 'O Jornal', 1990)



Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral



Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999)



Capa do EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria" (Col. A Voz e o Texto, Decca/VC, 1969)



Capa da compilação em CD "A Defesa do Poeta", de Natália Correia (EMI-VC, 2003)



Capa do CD "Natália Correia & Ary dos Santos ...Dizem os Poetas" (Edições Valentim de Carvalho, 2018)



Capa do álbum (edição digital) "Natália É Quando Uma Mulher Quiser", de Renato Júnior (Doubleclick/SME Portugal, 2023)
Concepção – João Santos



Capa do álbum (edição digital) "Projecto Natália", de Mário George Cabral & Mia Tomé (MGeorge01LP, 2023)
Concepção – Silas Ferreira



Capa do livro "O Dever de Deslumbrar: Biografia de Natália Correia", de Filipa Martins (Lisboa: Contraponto, 2023)

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Outros artigos com poesia de Natália Correia:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Poesia na rádio (II)
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia
Ana Moura: "Creio" (Natália Correia)
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira

[Reeditado em 23 Mar. 2023]