27 março 2022

Dia Mundial do Teatro: mensagem de Jean Cocteau (1962)


"The Versatile Jean Cocteau"
© Philippe Halsman / Magnum Photos, 1949


INSTITUTO INTERNACIONAL DO TEATRO
DIA MUNDIAL DO TEATRO – 27 DE MARÇO DE 1962
MENSAGEM INTERNACIONAL DE JEAN COCTEAU

Acontece, pelo privilégio do teatro, este paradoxo: a História, que se deforma com o tempo, e o mito, que com o tempo se fortifica, encontram a sua verdadeira realidade sobre as tábuas de um palco.
Seria, sem dúvida, vantajoso que um faquir viesse hipnotizar uma sala de teatro para a convencer de ter visto um espectáculo sublime, mas, infelizmente, esse faquir não existe e é ao dramaturgo que compete provocar, pelos seus modestos meios, a hipnose colectiva e compartilhar o seu sonho, pois o sono e o sonho põem ao alcance de todas as bolsas uma espécie de génio.
O teatro, imitando este fenómeno, exige do público uma credulidade quase infantil — o melhor público é ainda o das "marionnettes", e o nosso seria igual se conseguisse perder a sua resistência orgulhosa e se se encontrasse, por exemplo, em estado de gritar a Édipo: «Não cases com Jocasta! É a tua mãe!»
Mas, sem ir tão longe, o fenómeno produz-se; e acontece que um grupo de espectadores perde a sua individualidade, em benefício de um pensamento estranho que ele adopta e com o qual colabora. Esse grupo transforma-se numa só pessoa, de alma quase infantil, que deixa as suas crenças no vestiário, pronta a retomá-las à saída.
A verdadeira admiração não é a que se exprime por um encontro de ideias comuns, mas sim a que assenta numa partilha de ideias que não são as nossas, mas que nos conquistam até ao ponto de nos convencerem que nós poderíamos ter sido o autor delas. É, portanto, uma das formas do amor: no amor, os antagonismos unem-se, e não é um exemplo desta osmose o papel do teatro? Porque, ao fim e ao cabo, o grande intérprete é o artista que dá a impressão de improvisar, de inventar o seu texto, de o inventar e de o improvisar de acordo com a personalidade de cada espectador.
A própria França, reticente em se deixar adormecer e que resiste, à força de individualismo, ao fenómeno da hipnose do espectáculo, acaba de demonstrar, no Teatro das Nações, a sua sede e a sua fome de se distrair sem a menor frivolidade.
Companhias de primeira categoria levam até lá as obras-primas do seu idioma e, unicamente pela intensidade da interpretação dos actores, conseguem encantar, com o seu repertório, públicos que nunca imaginaríamos capazes de esquecer o seu próprio idioma e os seus próprios temas para se interessarem pelos dos outros povos.
O Dia Mundial do Teatro assinala o acontecimento extraordinário dessas núpcias profundas, entre o singular e o plural, o objectivo e o subjectivo, o consciente e o inconsciente, apresentando ao mundo os monstros prestigiosos que daí resultam.
Muitas das discórdias do mundo provêm do afastamento dos espíritos e da muralha erguida pelos idiomas: é esse afastamento que o vasto mecanismo teatral se propõe evitar e é essa muralha que ele se propõe transpor.
Os povos, graças aos Dias Mundiais do Teatro, tomarão, finalmente, consciência das suas respectivas riquezas, e trabalharão juntos num grandioso empreendimento de paz.
Nietzsche dizia: «As ideias que mudam a face do mundo vêm até nós nas patas das pombas». É, talvez, em virtude de um meio que se limitou tantas vezes a ser um simples pretexto de divertimento que a juventude virá a beneficiar de uma Universidade brilhante e viva, de diálogos de carne e osso, substituindo assim as fadigas de um estudo que enfraquecia as obras-primas, fazendo-as perder a sua violência de origem.
Eu acrescento: disseram que a máquina daria o golpe de misericórdia ao teatro. Não acredito e, uma vez que o Instituto Internacional do Teatro me encarrega de falar em seu nome, grito, como antigamente se gritava para os nossos reis (alterando um pouco a fórmula): «Se o teatro morreu, viva o teatro!».

       JEAN COCTEAU (trad. Rogério Paulo, actor e encenador)


Foi no IX Congresso do Instituto Internacional do Teatro, realizado a 10 de Junho de 1961, em Viena, que se escolheu o 27 de Março para celebrar, a cada ano, o teatro, considerado como «instrumento de compreensão e paz». E a primeira celebração à escala internacional aconteceu logo no ano seguinte, não só nos 43 países que então eram membros do Instituto como em vários outros, perfazendo mais de meia centena. Para escrever e ler a mensagem internacional desse dia inaugural foi convidado o multifacetado autor-artista francês Jean Cocteau. E porque as suas palavras continuam perfeitamente actuais, decorridos que são 60 anos certos, entendemos por bem recuperá-las.
Mesmo dispondo hoje das mais avançadas tecnologias (e talvez Cocteau estivesse longe de sonhar com a inteligência artificial), o Homem continua a precisar da Arte, enquanto manifestação da liberdade criativa do espírito humano. E entre essas expressões artísticas, o teatro afirma-se como absolutamente imprescindível à Humanidade num "admirável mundo novo" progressivamente dominado por máquinas 'inteligentes'. Qual Fénix, que renasce das cinzas a cada representação, o bom teatro possui o miraculoso poder de transformar interiormente o espectador/ouvinte, tornando-o um ser mais liberto da primeva e atávica condição animal – mais pessoa, em suma. E quanto menos animal e mais pessoa o homem for, maior será o seu empenho em estabelecer a concórdia entre todos os povos da Terra, cultivando assim o supremo valor da Paz. Viva o Teatro!

Por ser uma arte efémera, o espectáculo teatral morre quando o pano tapa, pela última vez, a boca de cena, mas tem o sortilégio de perdurar na memória daqueles que o viram/ouviram acontecer num palco. Foi assim ao longo dos séculos e ainda o é, independentemente de se poder efectuar a gravação áudio/vídeo para memória futura. A invenção, na primeira metade do século XX, da rádio e, depois, da televisão, ofereceu a possibilidade de se fazer chegar as peças representadas em cena a um público não presencial e significativamente mais vasto. No entanto, rapidamente se percebeu que a fruição desses espectáculos, quer via rádio quer via televisão, não era plenamente satisfatória, devido às dificuldades técnicas que havia de captar convenientemente o som e de se filmar, com bons planos, o que se passava no palco. Tais condicionantes impuseram a necessidade de se produzir teatro especificamente destinado à radiodifusão ou à transmissão televisiva. E nos primeiros tempos, tudo se fazia em tempo real, como no palco. No entanto, não era raro ocorrer um problema de ordem técnica (por exemplo, um microfone que se avariava) e também podia suceder que um(a) actor/actriz fosse acometido(a) de um espirro ou de um acesso de tosse ou, mesmo, que se enganasse no texto – e tais percalços eram de evitar em meios de comunicação de massas. A solução seria a pré-gravação, que se tornará regra. E assim se foram formando apreciáveis e preciosos acervos de teatro radiofónico e televisivo: preciosos em razão do valor cultural intrínseco e por serem os repositórios documentais da arte de representar de tantas figuras gradas do teatro português do século XX, já que foram poucas as que, estando activas nos anos 50, 60, 70 e 80, se recusaram a trabalhar na rádio ou na televisão. Privilegiados e sortudos os ouvintes e telespectadores que já tinham atingido a idade da razão nesse período áureo do teatro radiofónico e televisivo e comungaram de tanta e boa arte de Talma! Quem veio ao mundo mais tarde, mormente quem tem hoje menos de 35-40 anos de idade, nunca tomou contacto com o grosso desse fabuloso património, simplesmente porque a divulgação nos meios para os quais foi produzido – rádio e televisão – tem sido muitíssimo parca e esporádica e também por estar ainda muito incompleto o acervo de registos disponibilizados na plataforma RTP-Arquivos.
Na RTP-Memória, por exemplo, só de tempos a tempos aparece uma ou outra peça avulsa. E como é assaz incompreensível e surreal que no canal televisivo especialmente vocacionado para os conteúdos do arquivo não haja um espaço regular reservado ao teatro!
Na rádio, se não existisse na grelha da Antena 2 o programa "Ecos da Ribalta" a ausência de teatro produzido antes de 2005 seria total. Temos de agradecer ao realizador João Pereira Bastos pelo mui louvável cuidado que vem tendo de resgatar das catacumbas do silêncio autênticas pérolas de teatro do imaginário (para citar a feliz expressão que o próprio João Pereira Bastos, na qualidade de director de programas da Antena 2, propôs a Eduardo Street). Dessas pérolas fazemos questão de destacar a que voltou a resplandecer no éter nacional em Fevereiro passado, assinalando o primeiro ano de saudade de Carmen Dolores: "Stella", de Goethe, numa soberba produção da Emissora Nacional de Radiodifusão e transmissão no respectivo segundo canal, em Abril de 1966, no âmbito da rubrica "Noite de Teatro" [1.ª parte >> RTP-Play / 2.ª parte >> RTP-Play]. Admirável a tradução e adaptação de Ruy Furtado (que não interveio, como actor, nesta produção mas que tivemos o gratíssimo prazer de ouvir, com a sua castiça e inconfundível voz, na segunda metade dos anos 80, no primeiro e segundo canal da RDP, em várias e memoráveis peças e adaptações de obras romanescas), notável a realização de Eduardo Street e magistrais as interpretações de Carmen Dolores (Stella), de Brunilde Júdice (Cecília) e de Álvaro Benamor (Fernando)! Estas preciosidades radiofónicas, além do superlativo prazer espiritual que proporcionam aos amantes da arte de Talma, são um excelente elixir de língua portuguesa, mormente nas vertentes do léxico e da prosódia, qual antídoto à indigência linguística que hoje impera nos media, com a televisão à cabeça. Por todas estas razões, que não são de somenos, e uma vez que o programa "Ecos da Ribalta" não se pode restringir ao teatro declamado (pois tem de abarcar as demais artes de palco e o cinema) é imperioso que, sem prejuízo da disponibilização do acervo completo na plataforma RTP-Arquivos, seja criado na grelha da Antena 2, dado ser o canal da rádio pública mais vocacionado para a Cultura, um espaço, que poderá ter periodicidade semanal, reservado ao que de melhor se fez entre nós em matéria de teatro radiofónico, dando-se primazia aos clássicos, desde os gregos antigos (Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes) até ao teatro de pendor existencialista (Albert Camus, Sartre) e ao teatro do absurdo (Beckett, Ionesco). Merecem-no os ouvintes, sobretudo os mais jovens e os cegos de qualquer idade (que continuam a ser impiedosamente desconsiderados pela rádio que também financiam), e reclamam-no os autores e todos os profissionais – tradutores, adaptadores, directores artísticos, actores, realizadores, técnicos de captação, sonorização e montagem – que tornaram possíveis tantas e magníficas produções e aos quais o país ainda não saldou (alguma vez saldará?) a dívida de gratidão que tem para com eles!

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