21 março 2022

Maria Teresa Horta: "Mulher-Poetisa"


Retrato (óleo sobre tela) de D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, 4.ª Marquesa de Alorna, pintado em Viena, por Franz Joseph Pitschmann, em 1780 (acervo da Palácio Fronteira/Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, Lisboa)



                          MULHERES IMPOSSÍVEIS
                            por Helena Vasconcelos


                                                                         «E a escrita vai
                                                              modulando a história»
                                                                           in
«Invenção»

Quando perguntei a Maria Teresa Horta quando tinha escrito, pela primeira vez, sobre a sua antepassada, Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, respondeu-me que tinha sido num teste no Liceu Filipa de Lencastre. Mais tarde, em 1998, começou a pensar num romance biográfico dedicado a essa mulher ilustre, figura marcante do Iluminismo. As Luzes de Leonor acabou por ser publicado em 2011, depois de anos de pesquisa e labor intenso. Rigorosa e intimista, arrebatada e minuciosa, exaustiva e encantatória, esta obra ímpar provocou uma autêntica revolução e reafirmou o formidável talento da autora, a sua capacidade de escrever uma prosa invulgarmente rica e melódica que se desenrola como uma partitura musical com as suas marcações, os seus compassos, figuras e pausas, próprias das cadências também utilizadas em poesia.
Não é de estranhar, embora a sua aptidão para nos surpreender seja infinita, que um ano depois Maria Teresa Horta publique estes Poemas para Leonor, versos concebidos ao longo da maturação do romance, uma espécie de «respiração», de toada entre o sonho e a realidade, entre a luz e a sombra, entre o dia e a noite, que se foi enovelando e desdobrando à medida que Leonor era invocada e chamada, não só à grade do convento de Chelas, às alcovas dos seus amantes ou aos salões das cortes europeias onde brilhou e encantou, mas também ao nosso trato, à nossa contemporaneidade.

A Poesia e a Música estão, desde tempos imemoriais, estreitamente interligadas. O mito grego de Orfeu e Eurídice – mencionado nestes Poemas para Leonor – é um dos mais belos, complexos e evocativos exemplos desta simbiose perfeita. O desfecho trágico da história e a intrigante ligação aos «mistérios órficos» enfatizam a ideia do exercício poético como representação do ciclo perene de criação e morte. Os Poemas para Leonor, aqui reunidos, são o testemunho palpitante desse ciclo, o registo de uma conversa nunca acabada entre uma extraordinária mulher poeta dos séculos XVIII-XIX e uma não menos extraordinária mulher poeta dos séculos XX-XXI. Porque Maria Teresa Horta, ao longo dos anos de gestação do romance, redigiu versos – «escrevia todos os dias e atirava para o lado os poemas, para dentro de uma gaveta» – encontrando nessa linguagem «espontânea», ditada pelo bater do coração, pelo pulsar do sangue, pelas visões assombradas e persistentes de Leonor, o lugar ideal para os encontros (e embates) com a sua antepassada, essa mesma avó remota que se senta (ainda) à sua mesa, que lhe fala e a desafia, que a olha por cima do ombro à secretária, enquanto a autora, palavra a palavra, a ressuscita uma e outra vez, cabelo a cabelo, gesto a gesto, olhar a olhar, movimento a movimento, sorriso a sorriso, desobediência a desobediência, desafio a desafio, fio a fio, quilómetro a quilómetro – calcorreado por essa Europa fora – de casa em casa, de quarto em quarto, de sombra em sombra, de luz em Luz. É a própria Maria Teresa que enfatiza o seu papel de «neta, detective, espia, atrás da Leonor, seguindo as suas pegadas, os seus passos, pondo o meu pé na marca deixada pelo seu...»

Quando Maria Teresa Horta me falou na hipótese de escrever estas breves linhas – sabendo eu que a relação entre Teresa e Leonor nem sempre foi pacífica e conciliadora, o que é próprio de mulheres fortes, inteligentes e desafiadoras – quis saber desde quando Leonor ocupava um lugar tão determinante na sua vida e na sua mente. Contou-me, com a sua generosidade habitual, como tinha sido o dia em que conheceu Leonor, figura mítica na sua família, trisavó do pai de sua mãe: «... no meu princípio, o paraíso era o escritório do meu pai, encantatório e misterioso. Mas, nas prateleiras das estantes com tantos livros, não havia um único volume escrito por uma mulher. A minha mãe, porém, um dia chamou-me à salinha onde recebia as amigas e ouvia música, apontou para um livro que estava sobre uma mesinha baixa, junto das suas longas pernas que nos seduziam nas suas meias de vidro, e disse-me, apontando para uma página onde estava o retrato de uma mulher fascinante no seu vestido antigo, sorriso de fatalidade, pérolas entrançadas nos cabelos e olhar de enigma: "Esta mulher é tua avó e foi uma grande poetisa." Nesse dia, a Leonor entrou na minha vida.»
Se Leonor entrou na vida de Teresa nesse dia ou se sempre aí habitou não é assunto para ser analisado neste momento. Importa, isso sim, apontar o facto de a autora ter feito História com a Biografia e Mito com a Poesia. Como uma Sibila, postada no limiar do oráculo, pronta a revelar os mistérios da Grande Deusa, Maria Teresa Horta desfia, em nome de Leonor e em nome dela própria, o rosário das contas de Eurídice, fugindo dos sátiros para cair no ninho de víboras, de Cassandra, amaldiçoada pelo dom da profecia, de Afrodite, que conhecia a infinita alegria do prazer, de Deméter, que presidia à fertilidade triunfante, e de Atena, que não recuava perante os perigos, antes se lançava na refrega, com ardor e sabedoria.
A palavra grega poiesis significa, literalmente, «fazer», ou seja, a Poesia foi, desde sempre, a arte de expressar outra coisa «para além de», de cantar o mundo e os seres que habitam o planeta, de uma forma distinta, diversa, nobre e grandiosa. Diotima, no diálogo socrático Symposium, registado por Platão, descreve como os seres humanos se debatem na ânsia da imortalidade através da Poesia, forma privilegiada de diálogo com a divindade, veículo de expressão, e também de um desejo antigo de heroicidade, de excelência e de compromisso com os mais elevados princípios, aqui personificados por estas mulheres exemplares. Porque Maria Teresa Horta exalta um universo feminino onde há, também, lugar cativo para os amantes, eternamente enlaçados em carne e espírito, em ardor e sabedoria. E Heidegger, entre outros críticos e filósofos, explicou a poiesis como um acto de transformação – de larva para borboleta – ligado a um momento de êxtase, de comunhão e de transcendência. Esse processo é esplendorosamente cantado nestes Poemas para Leonor, ao ritmo de cada gesto, enquanto a poetisa delineia cada frase, cada imagem, cada som.
No entanto, estes versos não são a mera «ilustração» de uma relação profunda e inabalável, os «desenhos» ou esquissos de preparação para a grande obra, a vasta pintura que se desdobra em As Luzes de Leonor. Para além de constituírem uma espécie de «Diário» poético são, ainda, uma grande lição de construção narrativa – através do desdobramento em «Prólogo», «Personagem – Leonor», «Poetisa – Luz», «Mulher – Fogo», «In Aevum» e «Epílogo» – que apontam para os sucessivos estados de Leonor/ Teresa, de menina a mulher, de Mulher a Sábia o que constitui, na sua essência, um cântico, um dueto, um permanente sussurro e grito, um movimento de corridas e enlaces, de ventos e calmarias, de «embalos» e de «colos». A inexorável passagem do tempo não afasta estas duas mulheres notáveis – sem esquecer outra trágica Leonor, a de Távora – antes as aproxima numa intimidade cálida, graças ao opulento legado de uma e à memória e genialidade de outra. Porque não basta escrever a História, reavivar uma época e as personagens que aí desempenharam os seus papéis. O génio de Maria Teresa Horta levou-a mais além, para uma conversa infinita e vital que se prolonga através do tempo e do espaço, num constante desafio ao esquecimento, numa permanente batalha heróica. E a linguagem escolhida é, evidentemente, a da Poesia, essa forma de comunicar própria dos deuses (e das deusas).
[...]

(primeiro prefácio ao livro "Poemas para Leonor", de Maria Teresa Horta, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012 – p. 9-13)


Lendo em página avulsa ou ouvindo, na forma recitada, o poema "Mulher-Poetisa", sem se saber que Maria Teresa Horta o escreveu a pensar na sua ilustre pentavó, D. Leonor de Almeida Portugal, também ela uma distinta poetisa à qual o seu coevo Filinto Elísio deu o nome arcádico de Alcipe, poderia supor, com inteira legitimidade, que seria autobiográfico. Extrapolando: o teor do poema poderia aplicar-se igualmente a outras insignes poetisas que arrostando incompreensões e até perseguições nunca abdicaram da sua liberdade e lograram afirmar-se como criadoras de poesia de alta estirpe, como foram os casos de Florbela Espanca, Natália Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen, apenas para referir as três maiores do século XX português. A criação poética, e artística em geral, sempre foi e nunca deixará de ser um acto de liberdade, mesmo que o reconhecimento do valor da obra não aconteça em vida do sujeito criador, trate-se de homem, mulher ou transgénero.
A todas as poetisas de mérito, enquadradas ou não no cânone literário vigente, sem esquecer as populares que, apesar de não terem recebido esmerada instrução, fizeram poesia digna de apreço, manifestamos a nossa penhorada gratidão pelo seu legado, neste Dia Mundial da Poesia, pondo em destaque o poema "Mulher-Poetisa", de e por Maria Teresa Horta, com a devida vénia à autora.

Na rádio pública, temos na Antena 2 duas rubricas de poesia dita, ambas realizadas por Luís Caetano: "A Vida Breve", de segunda a sexta-feira, consagrada à poesia na voz dos autores [>> RTP-Play], e "O Som Que os Versos Fazem ao Abrir", de periodicidade semanal, que tem âmbito mais abrangente e conta com a avalizada colaboração da professora, poetisa e tradutora Ana Luísa Amaral [>> RTP-Play]. Ainda na Antena 2, podemos parar, uma vez por semana, na "Estação do Oriente" e refrescar a mente com balsâmicos eflúvios de poesia (em verso ou em prosa), pensamento e meditação trazidos do milenar Oriente por João Rodrigues Pedro, envoltos em primoroso contexto musical criteriosamente escolhido pelo realizador [>> RTP-Play]. Cumpre-nos, pois, enaltecer Luís Caetano e João Rodrigues Pedro pelo profissionalismo com que vêm mantendo aqueles luminosos recantos do éter nacional consagrados à palavra dita que alimenta o espírito. O que não podemos deixar de lamentar é a persistente e incompreensível ausência de um apontamento diário de poesia nas Antenas 1 e 3. Por que motivo tão gritante lacuna não foi ainda colmatada, havendo ao dispor um avultado acervo de registos no arquivo histórico da RDP e ainda boas edições discográficas? Só encontramos uma explicação: as pessoas que dirigem aqueles canais não gostam de poesia ou, escrevendo com mais acerto, julgam que não gostam, porque ninguém lhes fomentou a sensibilidade para a arte poética. Mesmo faltando-lhes tal sensibilidade deviam ter a hombridade de não desconsiderar os ouvintes que apreciam poesia ou que aprenderiam, com a experiência auditiva, a apreciá-la. A estação pública de rádio existe para prestar serviço público àqueles que a financiam e não para afagar o umbigo de quem ocupa os lugares de chefia.



MULHER-POETISA



Poema de Maria Teresa Horta (in "Poemas para Leonor", secção "Poetisa – Luz", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012 – p. 71)
Recitado pela autora* (in livro/CD "A Voz dos Poetas", Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017)




Pareces um mistério
intransponível

Alguém que se
esquivou
ao seu preceito

Na recusa
de obedecer à vida

Ao quererem-te domada
e desse jeito
dócil     obediente     submissa

«Impossível!» – respondeste
branda e esquiva

Sou mulher
Revoltosa
E poetisa


* Maria Teresa Horta – voz
URL: https://www.facebook.com/Maria-Teresa-Horta-P%C3%A1gina-Oficial-163002943815613/



Capa do livro "Poemas para Leonor", de Maria Teresa Horta (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012)
Concepção – Rui Garrido
Reprodução parcial do quadro referenciado no topo.



Capa do livro/CD "A Voz dos Poetas" (Sociedade Portuguesa de Autores/Ovação, 2017)

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