27 março 2023

Dia Mundial do Teatro: mensagem de Arthur Miller (1963)


© Associated Press, 1959


INSTITUTO INTERNACIONAL DO TEATRO
DIA MUNDIAL DO TEATRO – 27 DE MARÇO DE 1963
MENSAGEM INTERNACIONAL DE ARTHUR MILLER

Ao contrário de outras tentativas de celebrar, à escala internacional, uma determinada instituição, este reconhecimento do teatro em tantos países, no mesmo dia, corresponde a uma realidade precisa. É certo, com efeito, que o teatro tem sido quase sempre internacional. Por isso, numa ocasião como esta, regista-se uma verdade já existente, e não apenas uma simples aspiração. O único factor novo, a meu ver, reside no seguinte: enquanto noutros tempos uma peça russa, representada (por exemplo) nos Estados Unidos, pouca repercussão teria para além das portas do respectivo teatro, hoje, como em quase tudo o que fazemos, a questão da sobrevivência ou da destruição do Homem está de certo modo posta em causa. Num tempo em que a diplomacia e a política dispõem de braços tragicamente tão curtos e tão fracos, o alcance subtil (mas por vezes longo) da arte terá de suportar a responsabilidade de manter unida toda a comunidade humana. Tudo o que possa mostrar-nos que pertencemos ainda à mesma espécie é uma coisa humanamente preciosa. É precioso que, neste momento, dezenas de milhares de pessoas, talvez milhões, interrompam a sua procura de entretenimento, ou, como seria para desejar, de uma experiência mais profunda, e reconheçam que neste imenso palco planetário o maior elenco da História precisa de encontrar uma verdadeira catarse, uma libertação do medo que nos oprime através de uma redentora tomada de consciência — pois de contrário a catástrofe desabará sobre nós. O dramaturgo anónimo que nos distribuiu os papéis que desempenhamos, esse grande ironista, esse extraordinário humorista, fez do palco o nosso Mundo. O incremento da ciência transformou-nos a todos em actores: já não há público para o grande silêncio que ameaça envolver-nos a todos no seu manto fúnebre.
Falo, evidentemente, do problema da guerra; mas implícito em todas as peças de algum significado está, e sempre esteve, o destino do Homem. A única diferença que agora existe, mas que é fundamental, é que somos nós, e não já um herói isolado, que teremos de encontrar a solução — ou perecer. A suprema ironia é que, enquanto nos sentirmos dominados por impiedosas forças destrutivas, não poderemos alcançar o que sempre exigimos aos nossos heróis trágicos: um lugar de reconciliação, um momento de aceitação, se é que não de resignação, um estilhaço de segundo em que reconheçamos que o nosso destino não está inscrito nos astros, mas em nós próprios. Quantos de entre nós, no decurso destes anos, ainda que por vezes encarando o temor real de destruição, terão sido capazes de repetir, com Shakespeare, que a falta não está nos astros, mas sim em nós próprios?
É por isso que precisamos do teatro; pois, acima de tudo, o teatro coloca o homem no centro do Mundo. Necessitamos de um lugar de quietude precária, de onde seja possível presenciar a tempestade e testemunhar a eterna luta do Homem que desafia Deus na edificação do seu próprio destino.
O teatro vivo é singularmente apto para esse efeito. Um homem e uma lâmpada bastam para fazer uma peça. É hoje evidente que o cinema e a televisão têm de esforçar-se por atingir a nudez e a simplicidade que, desde sempre, são apanágio da arte dramática. Como todas as máquinas, como a própria ciência, a visão do Homem que esses meios oferecem amplifica a sua natureza material, o seu meio ambiente, os poros da sua pele, mas na medida em que engrandecem e sublinham os seus elementos perecíveis afastam-se da sua essência, que é invisível. Na verdade, é precisamente a revelação gradual do que não se vê e do que não se pode ver que constitui a matriz oculta da própria arte dramática. O valor de uma peça não está no que ela mostra, mas nas suas revelações, subjacentes, e as peças que perduram ao longo dos tempos são exactamente aquelas que revelam o que há de universal no Homem, os elementos da sua natureza que são, de facto, comuns a todos os homens, seja qual for o lugar onde vivem.
É um facto curioso que hoje, enquanto o Mundo se nos apresenta politicamente dividido, a Arte — e muito em especial o teatro — demonstra com toda a clareza que a sua vocação mais profunda é universal. As peças que obtêm sucesso num país (e isto é cada vez mais evidente) depressa se tornam conhecidas nos outros. Sempre as culturas dos vários países estiveram interligadas, mas hoje desenvolvem-se conjuntamente com maior evidência. E, no entanto, no que respeita às questões vitais defrontamo-nos uns aos outros como criaturas de planetas diferentes. Involuntariamente, e decerto sem intenção consciente, o teatro deu-nos a prova de que a espécie humana, apesar da enorme variedade de tradições e culturas, é profundamente una. Julgo que em nenhuma outra época as peças contemporâneas foram tão rapidamente compreendidas em todas as partes do Mundo. Uma estreia importante em Nova York repete-se logo a seguir em Berlim, Tóquio, Londres, ou Atenas. E se a minha experiência pessoal pode servir de exemplo, o acolhimento não difere muito de uns países para os outros. Também neste sentido a metáfora se tornou real — o Mundo inteiro é hoje um palco. O Mundo inteiro, e ao mesmo tempo.
E é bom que o teatro, porventura mais do que as outras formas de comunicação através da arte, seja o instrumento escolhido. Pois, sobre as tábuas do palco o homem deve agir ante um pano de fundo de valores humanos. Nestes tempos em que a futilidade afogou o espírito, em que uma inacção mortal o ameaça, é bom dispormos de uma forma artística de cuja própria existência é inseparável a acção. E se, nos últimos anos, o chamado antiteatro, bem como o teatro do absurdo, parecem contradizer o papel fundamental da arte dramática, não devemos ver aí uma contradição, mas apenas um paradoxo. A dramaturgia que recusa uma acção significante reflecte o impasse internacional, a descrença generalizada no poder do Homem sobre o seu próprio destino, a rejeição de todo e qualquer sentido além da ironia. É uma dramaturgia que encara o Homem à beira do seu túmulo, inevitavelmente derrotado por si próprio; que nos oferece a imagem do Homem desorientado, aturdido pela derrocada dos vários sistemas em que, uns após outros, acreditara. São peças que nos convencem inteiramente se forem representadas na véspera de o Mundo acabar. E ainda mais no dia seguinte. Mas as longas carreiras que têm alcançado significam que o público encontra prazer nelas — talvez o prazer de indirectamente confirmarem a suspeita generalizada de que nada do que sabemos é, na verdade, absolutamente real.
E assim, também através destas peças o teatro denuncia a inacção, a ausência de sentido — pois se elas recusam a acção, essa mesma recusa constitui um desafio, para alguns de nós pelo menos; um desafio para descobrirmos uma ordem interior que reflicta, não apenas a morte que há na vida e a ironia de toda a acção, mas a presença da vida até na morte: uma ordem, ou antes, um novo tipo de teatro capaz de oferecer ao Homem uma esperança de identidade e liberdade que não seja inferior à que a física contemporânea concede à matéria. Os cientistas sabem hoje que já não há observadores; que ao observar um fenómeno estão já a transformá-lo. Semelhantemente, o dramaturgo que observa o desespero transforma-o — que mais não seja ao fazer-nos tomar consciência dele. E se a contemplação do desespero nem sempre transforma o dramaturgo, o público é que não pode deixar de ser transformado por via dela. Ao contemplarmos o desespero no palco, através das formas dramáticas que ele assumiu no nosso tempo, temos o direito (direito, aliás, cientificamente legítimo) de exclamar: «Muito bem; mas eu, que sou um dos átomos que o dramaturgo observou, mediu e pesou, devo dizer, agora que a cortina dos seus olhos desceu, que sou já um pouco diferente do que era quando o dramaturgo me viu pela última vez. Como os outros átomos, eu sou, ainda que tenuemente, um ser livre».
O que significa não estar porventura longe o tempo de um teatro da vontade, cuja raiz é essa ténue, precária liberdade que, apesar de tudo, realiza na terra os sonhos do Homem, lhe permite assenhorear-se dos astros e fazer com que nos reunamos hoje, nesta e em tantas outras cidades, compartilhando uma esperança comum no Homem.

               ARTHUR MILLER (trad. Luiz Francisco Rebello,
                               dramaturgo, tradutor, ensaísta, crítico
                               e historiador de teatro)


Escrito pouco tempo (algumas semanas ou escassos meses) após a crise dos mísseis de Cuba, quando a Guerra Fria atingiu o seu auge e o confronto entre as duas superpotências atómicas de então, os Estados Unidos da América e a União Soviética, esteve iminente, este primoroso texto do insigne dramaturgo nova-iorquino Arthur Miller parece ter sido redigido de propósito para o Dia Mundial do Teatro de 2023. Sinal de que, volvidas seis décadas, os impulsos mais instintivos e animalescos do homo sapiens se têm sobreposto (estão a sobrepor) ao pensamento mais lúcido e ponderado, como o do ilustre autor de "As Bruxas de Salem", que preconizava (preconiza) a concórdia e a fraternidade entre todos os povos da Terra, possível de se alcançar pela fruição das artes, e muito especialmente do teatro. Seria bom que os poderosos senhores da guerra e da política de hoje, cuja visão parece toldada pelo insano desejo de vãs vitórias, dispensassem alguns minutos a ler, com a máxima atenção, a avisada mensagem de Arthur Miller, pois ajudá-los-ia a ver claro e longe. Mas não somente eles o deviam ler (e isto é muito importante!): também os cidadãos dos países beligerantes e, bem assim, os de todos os outros cujos governos apoiam algum dos beligerantes – porque a intervenção cívica dos povos a favor da paz é essencial e fundamental para se evitar que a Humanidade caia no precipício...

A empresa Rádio e Televisão de Portugal tem à sua guarda o mais substancial e importante acervo de teatro radiofónico e televisivo de produção nacional e, muito provavelmente, de todo o mundo de língua portuguesa. Mas é confrangedor constatar que não tem sido suficientemente valorizado e explorado (no bom sentido do termo, bem entendido). Na RTP-Memória é bastante raro aparecer uma peça (nem sequer no Dia Mundial do Teatro – pasme-se! – isso tem acontecido nos últimos anos). Quanto à rádio, só no programa "Ecos da Ribalta", da Antena 2, graças ao mui louvável cuidado de João Pereira Bastos, os amantes da arte de Talma têm a possibilidade de ouvir, de vez em quando, uma das muitas e boas produções dos tempos áureos do teatro do imaginário. Importa, portanto, que nas grelhas da RTP-Memória e da Antena 2 (pelos menos) passe a existir um espaço regular, de periodicidade semanal, reservado à divulgação dos valiosíssimos arquivos de teatro televisivo e radiofónico, respectivamente. Escusado será acrescentar que a existência de tais espaços não deve obstar à disponibilização online dos acervos completos daquelas duas modalidades de teatro. No caso do radiofónico, verificamos que na plataforma RTP-Arquivos muitas peças ainda não constam. Damos apenas três exemplos, de que guardamos gratíssima memória auditiva: "Deus lhe Pague", de Joracy Camargo; "Yerma", de Federico García Lorca; e "A Cotovia", de Jean Anouilh.

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