08 março 2023

Elisa Lisboa: "Mulher-Mágoa" (Ary dos Santos)



Além de socialmente estigmatizante, a prostituição causa quase sempre em quem, por absoluta necessidade económica, a ela se sujeita, ou é obrigado por outrem a sujeitar-se, sofrimento psíquico (e, não raras vezes, também físico – por exemplo, o relacionado com doenças sexualmente transmissíveis). Sofrimento tanto mais dilacerante e traumatizante quanto maior for a consciência que a mulher tiver da sua degradante condição de objecto mercantil: «Já não sou uma pessoa: sou apenas um corpo à venda no mercado na venalidade, nada mais do que mera mercadoria». Mercadoria – acrescente-se – que apenas tem valor enquanto para ela houver comprador. Afinal, um bem fungível e descartável como qualquer outro na sociedade de consumo em que tudo se mede em função do valor estritamente comercial que tiver num determinado momento ou intervalo de tempo, segundo a sacrossanta lei da oferta e da procura. O drama dessas mulheres com a alma torturada, perdidas na "rua da vida", a quem foi usurpada a auto-estima sem a qual nenhum ser humano pode viver com dignidade, sensibilizou o poeta José Carlos Ary dos Santos impelindo-o a escrever os admiráveis versos que, com música de Nuno Nazareth Fernandes, constituem a canção "Mulher-Mágoa" que Elisa Lisboa primorosamente interpretou, em 1969, para o EP homónimo. Uma pérola do nosso cancioneiro que esteve perdida no vinil durante mais de cinquenta anos e foi finalmente, em 2021, resgatada dos arquivos da Valentim de Carvalho e disponibilizada nas plataformas digitais. A temática dos versos poderia sugerir, à partida, uma toada triste e langorosa, de autocomiseração, mas não foi esse o caminho que Elisa Lisboa trilhou: a sua interpretação é efusiva e vigorosa, rescendendo jovialidade (embora não totalmente indiferente à índole dramática do assunto), como que para evidenciar que mais importante do que lamuriar as agruras e os tormentos por que se passou é metamorfoseá-los em experiência fortificante que possibilite o salto para uma vida menos amargurada e mais edificante. Ao destacarmos a tocante canção "Mulher-Mágoa", na fascinante voz de Elisa Lisboa, neste dia do seu aniversário (nasceu a 8 de Março de 1944) e que é consagrado à Mulher em muitos países (naqueles em que há a preocupação de zelar pelos direitos humanos), procuramos exprimir a nossa compaixão por todas as mulheres que os tropeções da vida fizeram cair na prostituição, muito especialmente aquelas que são impiedosamente maltratadas e exploradas por redes criminosas de tráfico de seres humanos.

E de que modo tem a rádio pública celebrado este Dia Internacional da Mulher?
Começando pela Antena 1, temos de assinalar elogiosamente o programa de debate "Consulta Pública" que teve como tema a igualdade de género, numa mesa-redonda moderada pelo jornalista Nuno Rodrigues, em que participaram Susana Peralta (economista e professora universitária), Sara Falcão Casaca (socióloga e investigadora do ISEG), Manuel Albano (vice-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género) e Margarida Couto (advogada e presidente do GRACE - Grupo de Reflexão e Apoio à Cidadania Empresarial) [>> RTP-Play]. Tratou-se, na verdade, de um bom contributo no âmbito do trabalho (nunca terminado) que as competentes entidades oficiais e privadas vem desenvolvendo no campo da sensibilização da sociedade para o problema da discriminação de que a Mulher ainda é alvo em vários domínios, sem esquecer o candente flagelo dos maus-tratos físicos e psíquicos, de que a violência doméstica e os uxoricídios são a face mais trágica. Já no caso da oferta musical da Antena 1 (e também da Antena 3) tudo foi igual a um dia vulgar, o que denota lassidão e preguiça dos directores de programação, respectivamente Nuno Galopim e Nuno Reis. Quer dizer: optaram por ficar displicentemente quietinhos e descansados em vez de fazerem o que se impunha e que era o preenchimento das 'playlists' exclusivamente com repertório que, independentemente do sexo do intérprete, aborda a condição feminina e os vários aspectos de que se reveste o tratamento desigual, discriminatório e abusivo exercido sobre as mulheres. Repertório esse que, ao contrário do que alguém mais desatento e menos bem informado poderia supor, está bem longe de ser escasso, mesmo só no universo da música de língua portuguesa...
Relativamente à Antena 2, merece menção prévia o realizador Germano Campos que, por antecipação, nas edições de sábado e de domingo do seu programa "Café Plaza", incluiu duas boas sequências de canções latinas dedicadas à mulher e ainda o poema "Receita de Mulher", de e por Vinicius de Moraes [a partir de 15':48'' >> RTP-Play / a partir de 24':24'' >> RTP-Play]. No dia de hoje, o preenchimento dos espaços de música 'ad-hoc' (fora dos programas de autor pré-gravados) somente com obras e peças musicais compostas ou interpretadas por mulheres era o mínimo dos mínimos que podia ser feito, se nisso tivesse existido empenho da direcção de programas, o que lamentavelmente não aconteceu. Como em qualquer outro dia do ano, ficou ao inteiro critério dos animadores desses espaços escolherem o que lhes deu na real gana, ainda que completamente alheio à composição e/ou interpretação feminina. As honrosas excepções a tal alheamento deram-se por iniciativa de: André Pinto que, na terceira hora do espaço "Boulevard", dando nota de um recital evocativo de D. Maria Bárbara de Bragança (filha do rei D. João V), a realizar na Biblioteca do Convento de Mafra, onde a soprano Carla Caramujo iria interpretar a cantata "A Quel Leggiadro Volto", de Francisco António de Almeida, transmitiu a ária "In queste lacrime, Arsindo specchiasti", eduzida do scherzo pastorale "Il Trionfo d'Amore", do mesmo compositor, interpretada pela soprano Ana Quintans e os Músicos do Tejo, sob a direcção de Marcos Magalhães [>> YouTube Music]; e de João Rodrigues Pedro que, na primeira hora do "Baile de Máscaras", transmitiu dois trechos da autoria de mulheres compositoras – a ária "Lasciatemi qui solo", pertencente ao "Il Primo Libro delle Musiche" (1618), da florentina Francesca Caccini (1587-c.1641), cantada pela soprano galesa Ruby Hughes, acompanhada por Jonas Nordberg (tiorba) & Mime Yamahiro-Brinkmann (violoncelo) [>> Spotify], e a peça orquestral "Le Songe de Cléopâtre" ("O Sonho de Cleópatra"), da compositora francesa Mel Bonis (1858-1937), pela Orchestre National de Metz, sob a regência de David Reiland [>> YouTube Music]. Não surpreende que o realizador João Rodrigues Pedro tenha sido o profissional da Antena 2 mais zeloso a não deixar passar em vão o Dia Internacional da Mulher porque já tivera esse mui louvável cuidado nos anos anteriores. Aliás, a divulgação de obras de compositoras tem acontecido com assinalável frequência no seu espaço "Baile de Máscaras", sendo oportuno mencionar também a rubrica semanal "Virtuosas: as Mulheres na História da Música" que vem mantendo desde o passado 6 de Janeiro e tem emissão às sextas-feiras por volta das 10h:45 e repete cerca das 15h:45 [>> RTP-Play].



Mulher-Mágoa



Letra: José Carlos Ary dos Santos
Música: Nuno Nazareth Fernandes
Intérprete: Elisa Lisboa* (in EP "Mulher-Mágoa", Columbia/EMI, 1969, reed. digital Edições Valentim de Carvalho, 2021)




[vocalizos]

Ando na rua da noite,
Bebo vinho de saudade;
Cada esquina é um açoite
Fustigando a claridade.

Vou de noite pela noite
De uma vida sem idade:
Não há corpo onde me acoite,
Não há casas na cidade.

Vou de noite pelo ventre
De ruas mal-assombradas,
Levo uma alma doente
Nas minhas mãos desfasadas.

Vou de noite pela noite,
De uma vida sem idade:
Não há corpo onde me acoite,
Não há casas na cidade.

No rio vejo um navio
Rumando rumo à infância...
Tenho frio, tenho frio,
Morro do mal da distância.

Corro as ruas da cidade
Sempre à procura de mim,
Mas ela não tem piedade
E nunca mais chego ao fim.

Ando na rua da vida,
Bebo sumo de tristeza;
Deitando contas à vida
Somo apenas a pobreza.

Ando na rua da vida,
Bebo sumo de tristeza;
Quem andar assim perdida
Não se encontra, com certeza.

Na cama só vejo lama,
Na rua só piso água;
Quem me fala? Quem me chama
O nome de Mulher-Mágoa?

Corro as ruas da cidade
Sempre à procura de mim,
Mas ela não tem piedade
E nunca mais chego ao fim.

[vocalizos]


* Elisa Lisboa – voz
Arranjo e direcção de orquestra – Jorge Machado
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Elisa_Lisboa
https://www.youtube.com/channel/UCiREHraFssH6-zXErJKULYA



Capa do EP "Mulher-Mágoa", de Elisa Lisboa (Columbia/EMI, 1969)

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