14 março 2023

Celeste Rodrigues: "Velhas Sombras"



Apesar do enorme êxito popular que, nos anos 1950/60, foi a sua despretensiosa e orelhuda "Olha a Mala" (letra e música de Manuel Casimiro) [>> YouTube], e das muitas actuações no estrangeiro (onde se contaram salas que não são para qualquer um, como o Concertgebouw de Amesterdão, a parisiense La Cité de la Musique, o londrino Royal Elizabeth Hall e o nova-iorquino Carnegie Hall), Celeste Rodrigues acabou por não ter, no panorama musical português, uma projecção consentânea com a sua singular qualidade de intérprete dotada de «voz de bonito timbre, de um colorido que varia de cambiantes, que se torna clara e fresca quando interpreta a canção parafolclórica ou reflecte um dramatismo nostálgico quando canta fados...» (parafraseando Mário Martins). Para esse défice de reconhecimento no seu país contribuíram o seu temperamento arredio à autopromoção («Reconheço que não dou a importância que devia dar à minha vida artística – canto porque gosto de cantar», in revista "Álbum da Canção", 01.05.1967) e o facto de ser irmã de Amália cujo nome intensamente rutilante acabou, inevitavelmente, por ofuscar o seu. Embora sem ser extenso, o acervo de gravações de Celeste Rodrigues, de que parte considerável não foi ainda reeditada com o som devidamente tratado, não é parco em espécimes de antologia, mormente no domínio do fado, dos quais o mais conhecido e revisitado é a "Lenda das Algas" [>> YouTube], com letra de Laerte Neves sobre a música que Jaime Mendes compusera para o "Fado da Cigana", gravado por Hermínia Silva no início da década de 1950. Bem menos divulgado mas que testemunha perfeitamente a requintada qualidade interpretativa de Celeste Rodrigues é o fado-canção "Velhas Sombras", com letra de António Sousa Freitas e música de Nóbrega e Sousa, que a artista gravou para o álbum de título igual ao seu nome, publicado em 1974, sob a chancela FF (selo da editora Riso e Ritmo). Dado que a temática abordada é intemporal – a transitoriedade da vida humana e o apelo irresistível do amor mau grado as sombras que pode carregar –, achámos por bem dar-lhe aqui destaque, em memória da distinta fadista Celeste Rodrigues neste dia do centenário do seu nascimento, esperando que mereça o apreço dos leitores/visitantes do blogue "A Nossa Rádio". Boa escuta!

Apraz-nos notar a homenagem que, hoje, a Antena 1 tem prestado a Celeste Rodrigues, com múltiplos apontamentos e programas especiais, designadamente a reposição da rubrica "David Ferreira a Contar" originalmente emitida há cinco anos e que segundo o autor terá sequência [>> RTP-Play], a transmissão do documentário "A Árvore Celeste", da autoria de Pedro Miguel Ribeiro, com os depoimentos do neto Diogo Varela Silva, dos bisnetos Gaspar Varela e Sebastião Varela, do musicólogo Rui Vieira Nery e da fadista Katia Guerreiro [>> RTP-Play] e a edição especial do programa "Fado Cravo", feita ao vivo e em directo a partir do Museu do Fado, onde a autora, Aldina Duarte, conversou com Diogo Varela Silva a respeito, obviamente, de Celeste Rodrigues [>> RTP-Play].
De acordo com o anunciado na emissão da Antena 1, e pelo que nos é dado observar na página da plataforma RTP-Play "Celeste 100", mais documentários serão transmitidos nos próximos dias, o que merece o nosso efusivo aplauso. Cumpre-nos pois felicitar Nuno Galopim, na sua qualidade de director de programas, e deixar expresso o desejo de que algo do repertório de Celeste Rodrigues possa, doravante, ser ouvido pelos ouvintes da Antena 1 quando roda a 'playlist'. É bom que as efemérides sejam assinaladas, mas importa que depois o legado de categorizados artistas desaparecidos não seja votado ao silêncio.



Velhas Sombras



Letra: António Sousa Freitas
Música: Nóbrega e Sousa
Criação: Alice Amaro (in EP "Sou Quem Sou", Alvorada/Rádio Triunfo, 1967)
Intérprete: Celeste Rodrigues* (in LP "Celeste Rodrigues", FF/Riso e Ritmo, 1974; CD "Celeste Rodrigues", Col. O Melhor dos Melhores, vol. 55, Movieplay, 1994)




Por toda a vida as sombras passam
Num rumo igual a outro rumo;
As sombras vão e não se abraçam
E as vidas são nuvens e fumo.

Assim eu passo também
Meus dias, meus anos,
Num sonho antigo que tem
Tristezas, enganos.
E só dou por mim agora,
Meu amor, a cantar aquele dia,
Estranho dia, estranha hora
Das velhas sombras tão sombrias.

Amar-te é como o amor responde
Ao seu apelo, ao seu cantar,
E traz as sombras em que esconde
A tua sombra, o teu olhar.

Assim eu passo também
Meus dias, meus anos,
Num sonho antigo que tem
Tristezas, enganos...
E só dou por mim agora,
Meu amor, a cantar aquele dia,
Estranho dia, estranha hora
Das velhas sombras tão sombrias.

[instrumental]

Assim eu passo também
Meus dias, meus anos,
Num sonho antigo que tem
Tristezas, enganos...
E só dou por mim agora,
Meu amor, a cantar aquele dia,
Estranho dia, estranha hora
Das velhas sombras tão sombrias.


* Celeste Rodrigues – voz
Carlos Gonçalves e António Chainho – guitarras portuguesas
José Maria Nóbrega – viola
Raul Silva – viola baixo
URL: https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/celeste-rodrigues
https://www.youtube.com/@ValentimdeCarvalhoPT/videos?query=celeste+rodrigues
https://music.youtube.com/channel/UCcVQ5pMWj0gEjkzEg9RqVJQ



Capa do LP "Celeste Rodrigues" (FF/Riso e Ritmo, 1974)



Capa da compilação em CD "Celeste Rodrigues" (Col. O Melhor dos Melhores, vol. 55, Movieplay, 1994)

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