25 abril 2021

Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas



Quando o poema "País de Abril" foi publicado, em Janeiro de 1965, no livro "Praça da Canção", a Pátria estava vestida de viúva (embora para um estrangeiro, vendo-a de fora, lhe pudesse parecer bordada – de farrapos, capa de trapos remendada a verdes folhas). Nove anos mais tarde, no dia 25 de Abril de 1974, a Primavera deixou de ser triste desabrochando em esfuziante alegria, pela tão almejada Liberdade que a Pátria finalmente conquistara, ao cabo de quase meio século de opressão, e ante a radiosa expectativa de que doravante a Pátria liberta e democrática deixasse de ter filhos maltrapilhos e famintos. Passaram 47 anos e a Pátria tende a assemelhar-se ao que era antes da Revolução dos Cravos: cada vez mais alquebrada, cabisbaixa (como que oferecendo-se à resignada genuflexão), sem mão nos filhos desonestos (corruptos, agiotas, burlões, intrujões, charlatães, etc.) e negligente no amparo aos mais desfavorecidos. Como vão estes olhar para uma Pátria que os enjeita, ao mesmo tempo que é pródiga com outros filhos, cuja vampiragem os levou à indigência? Obviamente com um sentimento de revolta e prontos a aderirem a qualquer messias que lhes prometa uma vida (mais) digna, ainda que tais promessas venham a revelar-se um logro (um náufrago, na esperança de não se afogar, toma como bóia de salvação não os objectos flutuantes que já sabe vão deixá-lo ir ao fundo mas aqueles que aparentemente não são submersíveis). Terá o regime político vigente capacidade de se regenerar e assim evitar o seu gradual definhamento e, por fim, a morte?
A poesia tem o mérito de nos ajudar à reflexão e quando dita por quem sabe acentuar o sentido das palavras, tal exercício fica grandemente facilitado. Os versos de Manuel Alegre magistralmente recitados por Mário Viegas (a quem aproveitamos para homenagear neste mês em que se completaram 25 anos sobre o seu desaparecimento) poderão assim ecoar na mente de mais gente, que tão necessária é para ajudar a tornar a Pátria menos injusta e menos iníqua para muitos dos seus filhos.

Na rádio pública, mormente na Antena 1, há largos anos que a injustiça e a iniquidade se implantaram na área da divulgação musical e poética. Sem que isso seja publicamente assumido, claro está, porém bem patente nos procedimentos. Basta atentar na 'playlist' e não será difícil perceber quanto é vasto o rol de artistas de reconhecida qualidade alvo de impiedoso silenciamento. No fundo, tal conduta censória é idêntica à que vigorava na Emissora Nacional, tendo apenas mudado o contexto: outrora, a censura acontecia porque não havia Liberdade; agora, é ao abrigo da Liberdade que se pratica a censura. Dá que pensar!



PAÍS DE ABRIL



Poema de Manuel Alegre (in "Praça da Canção", Coimbra: Cancioneiro Vértice, 1965 – p. 43, 2.ª edição, Lisboa: Editora Ulisseia, 1969, edição comemorativa do 50.º aniversário, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2015 – p. 66-67; "País de Abril: Uma Antologia", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2014 – p. 13-14)
Recitado por Mário Viegas* (in LP "País de Abril: Poemas de Manuel Alegre ditos por Mário Viegas", Orfeu, 1974; 2CD "Operário em Construção / País de Abril": CD "País de Abril: Poemas de Manuel Alegre ditos por Mário Viegas", Art’Orfeu Media, 2011; "Mário Viegas: Discografia Completa": Vol. 3 – "País de Abril", Público, 2006)
Música de José Luís Tinoco e José Niza




São tristes as cidades sob a chuva
e as canções que se atiram contra as grades
— minha pátria vestida de viúva
entre as grades e a chuva das cidades.

É triste o cão que ladra no canil
quando é março ou abril e lhe prendem as pernas
é triste a primavera no País de Abril
— minha pátria perfil de mágoas e tabernas.

É triste: uns vestem-se de abril outros de trapos.
Tu ó estrangeiro é só por fora que nos olhas
— minha pátria bordada de farrapos
capa de trapos remendada a verdes folhas.

Abril tão triste no País de Abril. Por fora
é tudo verde. (Abril com máscaras de festa).
Por dentro — minha pátria a rir como quem chora.
(A festa da tristeza é tudo o que lhe resta).

Abril tão triste no País de Abril. Aqui
a noite aqui a dor meninos velhos
— minha pátria a chorar como quem ri
em surdina em silêncio. E de joelhos.


* Mário Viegas – voz
José Luís Tinoco – piano, harpa, viola acústica
José Niza – viola acústica, quissange, percussões
Direcção e produção – José Niza
Gravado nos Estúdios Polysom, Lisboa, em Maio de 1974
Técnicos de som – Heliodoro Pires e Manuel Cunha
Mistura – José Niza



Capa da 1.ª edição do livro "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Coimbra: Cancioneiro Vértice, 1965)
Organização da edição – Ivo Cortesão



Capa da 2.ª edição do livro "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Col. Poesia e Ensaio, Lisboa: Editora Ulisseia, 1969)
Concepção – Espiga Pinto



Capa da edição comemorativa do 50.º aniversário do livro "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Publicações Dom Quixote, 2015)
Concepção – Rui Garrido



Capa do livro "País de Abril: Uma Antologia", de Manuel Alegre (Publicações Dom Quixote, 2014)
Concepção – Maria Manuel Lacerda
Ilustração – Rui Garrido



Capa do LP "País de Abril: Poemas de Manuel Alegre ditos por Mário Viegas" (Orfeu, 1974)
Concepção e arranjo gráfico – José Luís Tinoco

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Outros artigos com canções ou poemas alusivos à Revolução dos Cravos ou à Liberdade:
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Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde": "Grândola, Vila Morena"
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10 abril 2021

Evocando João Villaret



Se os três canais nacionais da rádio pública fossem dirigidos por pessoas responsáveis e verdadeiramente conscientes das obrigações inerentes ao serviço público de rádio, em todos eles haveria uma rubrica diária consagrada à poesia, sendo uma delas (ou mais) especialmente focada nas gravações que eminentes actores/recitadores nos legaram, quer as que foram realizadas para programas de rádio e deverão existir (se não foram destruídas) no arquivo histórico da RDP, quer as que foram editadas em disco. João Villaret, que foi, indubitavelmente, o maior desses menestréis da difícil arte de dizer poesia, após a invenção do registo sonoro, podia assim chegar aos rádio-ouvintes, dos mais velhos aos mais novos: a uns em deleitosa revisitação, a outros em luminosa revelação.
Tão confrangedor miserabilismo, patente sobretudo nas Antenas 1 e 3, foi recentemente mitigado graças à mui louvável iniciativa de David Ferreira ao dedicar ao insigne actor e recitador, a pretexto dos 60 anos da morte, um ciclo de cinco edições da rubrica "David Ferreira a contar", depois compactado na edição alargada do sábado subsequente.
A pensar naqueles que não ouviram na rádio ou desejem revisitar a justíssima evocação de João Villaret, em boa hora levada a cabo por David Ferreira, o blogue "A Nossa Rádio" apresenta os tópicos e os respectivos links de acesso ao arquivo na plataforma RTP-Play.
Boa escuta!


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Já passaram 60 anos

DAVID FERREIRA A CONTAR | 30 Mar. 2021 [>> RTP-Play]
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DAVID FERREIRA A CONTAR | 02 Abr. 2021 [>> RTP-Play]
A cruzada de João Villaret

DAVID FERREIRA A CONTAR... CONSIGO | 03 Abr. 2021 [>> RTP-Play]
João Villaret



Capa do livro "Villaret: In Memoriam", de Lourenço Rodrigues (Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, 1962)



Capa do livro "João Villaret: Sua Vida... Sua Arte...", de Mário Baptista Pereira (Lisboa: Edição do autor, 1983)



Capa do livro "João Villaret: Antologia Poética: poemas ditos pelo actor", recolha e organização de Mário Baptista Pereira (Lisboa: Editorial Estampa, 1985)



Capa do livro "João Villaret: Uma Biografia", de António Carlos Carvalho (Lisboa: Ulisseia, 2008)



Capa do livro "João Villaret: Duas Mãos que Abertas Deram Tudo", de Henrique Villaret (Edição do autor, 2015)

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Outros artigos com poesia recitada por João Villaret:
João Villaret: centenário do nascimento
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Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Cesário Verde: "De Tarde"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"