25 abril 2020

Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)



Lançado em Janeiro de 1965, integrando a colecção "Cancioneiro Vértice", da revista "Vértice", o livro "Praça da Canção", de Manuel Alegre, não tardou a ser apreendido pela PIDE, passando a figurar no índex dos livros proibidos pela ditadura salazarista. No entanto, quando a polícia política chegou às livrarias já poucos exemplares encontrou. A maioria dos exemplares dessa primeira edição já fora distribuída de mão em mão ou enviada pelo correio aos adquirentes. Antevendo-se a proibição, o livro já tinha seguido o seu caminho de resistência, passando a circular clandestinamente em cópias improvisadas (copiografadas, dactilografadas e até manuscritas).
José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília tiveram o privilégio de serem os primeiros a cantar poesia de "Praça da Canção" ainda antes do livro ser uma realidade, por deferência do autor, mas foi de uma dessas cópias clandestinas que outros compositores se serviram para musicar a poesia alegriana, fazendo dela canção. Um deles foi Manuel Freire, conforme o próprio confessou a Maria Leonor Nunes para um artigo do "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias" evocativo do cinquentenário da primeira edição [cf. http://www.manuelalegre.com/], no caso concreto das baladas "Pedro, o Soldado", "Trova do Emigrante" e "Trova", incluídas nos discos EP "Dedicatória" e "Trovas, Trovas, Trovas", editados em 1968.
Em 1969, aproveitando o abrandamento repressivo trazido pela chamada Primavera Marcelista, a Editora Ulisseia atreveu-se a publicar uma nova edição, tendo alguns poemas sido bastante modificados pelo autor, presumimos que não tanto por medo da Censura mas mais por insatisfação com os textos originais. Terá sido muito provavelmente um exemplar desta segunda edição que Alain Oulman leu e o motivou a musicar algumas estrofes de três poemas, que Amália veio a gravar com os títulos "Trova do Vento que Passa", "Abril" e "Meu Amor É Marinheiro" [o quarto poema de Manuel Alegre presente na discografia amaliana, também com música de Alain Oulman, intitula-se "As Facas" e foi extraído do volume "Coisa Amar (Coisas do Mar)", de 1976].
De "Abril", adaptado do poema "A Rapariga do País de Abril" [vide abaixo os textos tal como figuram nas duas primeiras edições], cujo original Manuel Alegre escreveu nos Açores ou em Angola, onde cumpria o serviço militar, existem duas gravações amalianas publicadas em disco: uma realizada em 1973, que teve a primeira aparição pública em 1997 no CD "Silêncio", e outra, executada três ou quatro anos mais tarde, que saiu no LP "Cantigas numa Língua Antiga" (1977). Escolhemos a publicada em 1997 para celebrar o Dia da Liberdade, neste ano do centenário do nascimento de Amália.
O país de Abril que o poeta procurava na pátria amada, tristemente amordaçada e oprimida, só emergiu cerca de uma década mais tarde, desconhecendo-se se tal iria acontecer precisamente no mês de Abril (era provável que fosse na Primavera, mas poderia ser em Março, Maio ou Junho) mas um acaso da História teve o bendito condão de conferir ao poema um cunho profético. Presentemente, volvidos 46 anos sobre a Revolução dos Cravos, a emblemática flor encontra-se vergada sob o efeito de ventos hostis, originados por uma nefanda pandemia vírica, e mesmo que a ciência descubra uma vacina ou um medicamento antiviral, a crise económica e social será inevitável e severa. A resistência do cravo será posta à prova, competindo a todos quantos não abdicam da Liberdade e prezam os valores de Abril zelar para que a haste não quebre e, melhor ainda, volte a adquirir o aprumo que já teve!

Neste país que o poder político quer fazer crer que ainda é de Abril e, nessa conformidade, supostamente democrático e pluralista, há uma rádio, por sinal sob a alçada estatal – a Antena 1 –, que se não tem coibido de praticar a mais ignóbil censura. Atente-se na 'playlist' que vem sendo reiteradamente usada para silenciar uma vasta galeria de categorizados artistas portugueses, entre os quais se contam, além dos supracitados José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília e Manuel Freire, a maior embaixatriz da cultura portuguesa além-fronteiras, Amália Rodrigues, a qual nem no ano do seu centenário é possível ouvir fora daquele gueto esconso depois da meia-noite de domingo chamado "Alma Lusa".



Abril



Poema: Manuel Alegre (excerto adaptado do poema "A Rapariga do País de Abril") [texto original >> abaixo]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Amália Rodrigues* (1973, in CD "Segredo", EMI-VC, 1997)




Habito o sol dentro de ti,
descubro a terra, aprendo o mar;
por tuas mãos, naus antigas, chego ao longe
que era sempre tão longe, aqui tão perto.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruto. Meu navio.
Este navio onde embarquei
para encontrar, dentro de ti, o país de Abril.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza,
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava quem eras.

Meu amor, por ti cantei. E tu me deste
um chão tão puro: algarves de ternura.
Por ti cantei à beira-terra, à beira-povo
e achei achando-te o País de Abril. [bis]


* Amália Rodrigues – voz
José Fontes Rocha – 1.ª guitarra portuguesa
Carlos Gonçalves – 2.ª guitarra portuguesa
Pedro Leal – viola
Joel Pina – viola baixo
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em 1973
Engenheiro de som – Hugo Ribeiro

Coordenação do projecto (para a edição do CD "Segredo") – Manuel Falcão e Jorge Mourinha
Produção – Rui Valentim de Carvalho
Assistente de produção – Inês Penalva
Misturas e restauro digital – Hugo Ribeiro, João Martins e Raul Ribeiro, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em Setembro de 1997
Masterização – Julius Newel, no estúdio Mission Control, Lisboa, em Outubro de 1997



A RAPARIGA DO PAÍS DE ABRIL [1]

(Manuel Alegre, in "Praça da Canção", Coimbra: Cancioneiro Vértice, 1965 – p. 64-65)


Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.

E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.

Começa a pátria onde começas. Verde campo
verde mar. Capital da ternura.
Tu és a lâmpada no meio desta festa
com fogueiras e povo dentro dos poemas.

Era a estranha paisagem da pobreza
o cheiro secular das coisas que apodrecem
era a canção cantada pelos bêbados
que vomitam seu fardo de viver.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando uma flecha azul atravessava as noites
e eu perguntava atónito quem eras.

Quando vieste tudo ficou certo.
Encheram-se de trevo os campos das palavras
encheram-se de gente as mãos de cada verso
com sete estrelas sete luas nós cantámos.

E tu disseste: ergue-te e vai.
Não ouves este vento este soluço?
Ergue-te e canta uma canção para o meu povo.
Com sete barcos sete espadas nós partimos.

Raparigas sentaram-se ao redor do poema.
E então cantei de amor por ti cantei
na língua que por vezes é tão triste
a nossa língua que por vezes é assim: tão pura.

Mulher por ti cantei. E tu me deste
um puro continente algarves de ternura.
Por ti cantei entre meu povo e meu poema
e achei achando-te o País de Abril.



A RAPARIGA DO PAÍS DE ABRIL [II]

(Manuel Alegre, in "Praça da Canção", 2.ª edição, Lisboa: Editora Ulisseia, 1969 – p. 88-89)


Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.

E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.

Por ti eu me perdi eu me encontrei
por ti que eras ausente e tão presente
por ti cheguei ao longe aqui tão perto.
E achei achando-te o País de Abril.



Capa da 1.ª edição do livro "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Coimbra: Cancioneiro Vértice, 1965)
Organização da edição – Ivo Cortesão



Capa da 2.ª edição do livro "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Col. Poesia e Ensaio, Lisboa: Editora Ulisseia, 1969)
Concepção – Espiga Pinto



Capa do CD "Segredo", de Amália Rodrigues (EMI-VC, 1997)
Design – Fátima Rolo Duarte
Fotografia – Charles Ichaï

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