23 fevereiro 2023

Vitorino: "Postal para D. João III"


Caricatura da autoria de João Abel Manta (in livro "Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar", Lisboa: O Jornal, 1978), mostrando um cardeal e outros clérigos observando reverencialmente o devoto Salazar, que está em compenetrada oração, munido de um rosário na mão esquerda.


O rei D. João III ficou desditosamente assinalado na História de Portugal por ter sido o introdutor em terras lusas, no ano de 1536, do nefando e eufemisticamente denominado Tribunal do Santo Ofício, vulgo Inquisição. Foi também por nomeação sua que, em 1539, o seu irmão D. Henrique [>> biografia], então arcebispo de Braga, futuro arcebispo de Évora (1540-1564), cardeal (1546) e arcebispo de Lisboa (1564-1574), se tornou inquisidor-mor do Reino, condição que manteve até 1579, quando já havia tomado assento no trono régio, que ficara vago em Agosto de 1578, na sequência do desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir.
Quatro séculos mais tarde, outro cardeal, de seu nome Manuel Gonçalves Cerejeira, na qualidade de Patriarca de Lisboa e, por inerência, figura máxima da hierarquia da Igreja Católica Portuguesa, com o propósito de restaurar os privilégios e as regalias que a sua instituição havia perdido na Primeira República, por acção de Afonso Costa, não hesitou em estabelecer um pacto com o ditatorial Estado Novo que o seu amigo António de Oliveira Salazar, empossado presidente do Ministério (primeiro-ministro) por Óscar Carmona a 5 de Julho de 1932, instituiu ao aprovar e plebiscitar uma nova Constituição (1933). E mediante a Concordata, assinada a 7 de Maio de 1940, a Igreja Católica Portuguesa alcançou uma posição de privilégio no regime, tornando-se ela mesma um dos seus pilares de sustentação. Coerente com o seu ideário, o cardeal Cerejeira sempre se manteve apoiante do Estado Novo, mesmo quando este passou a ser alvo de mais ampla e intensa contestação, a partir das eleições presidenciais de 1958 (nas quais o candidato da oposição, o General Humberto Delgado, foi descaradamente boicotado durante a campanha eleitoral e fraudulentamente roubado nas urnas) e, sobretudo, após a eclosão da Guerra Colonial, em Fevereiro de 1961. Entre esses contestatários contavam-se muitos católicos, os chamados católicos progressistas, quer leigos quer clérigos (por exemplo, o Pe. José da Felicidade Alves, prior da paróquia de Santa Maria de Belém), que o velho cardeal não se coibiu de desaprovar e castigar 'exemplarmente'. Essa atitude neo-inquisitorial, de flagrante cumplicidade com um regime político repressivo e torcionário, impressionou o jovem alentejano, estudante de Belas-Artes em Lisboa, Vitorino Salomé Vieira, que uns anos mais tarde, verteu a impressão negativa que ficara no seu espírito do severo cardeal num bilhete-postal poético-musical dirigido ao rei ironicamente cognominado 'O Piedoso', e que incluiu no álbum "Leitaria Garrett" (1984). O irmão daquele monarca quinhentista, o Cardeal D. Henrique, além de se comprazer a torturar e a queimar, em 'purificadores' autos-de-fé, judeus, bruxas, sodomitas, hereges e outros desalinhados da ortodoxia católica romana, não dispensava a companhia de jovens amas (a toponímia da cidade de Évora ainda guarda memória delas na "Rua das Amas do Cardeal"), uma das quais, Maria da Motta, de 27 anos de idade, o amamentou nos últimos meses de vida, quando o senil soberano morava no paço de Almeirim onde acabou por morrer... As amas do Cardeal Cerejeira, essas, tinham natureza diferente: eram as forças repressivas da ditadura salazarista, mormente a P.I.D.E. e a P.J. (a Judite, na gíria). No "Postal para D. João III", Vitorino refere explicitamente a segunda e embora a primeira, criada por Salazar, não seja nomeada, infere-se que era sobretudo ela que, de noite, ia bater à porta dos que eram suspeitos de andarem a conspirar contra o 'Pai' Salazar e a blasfemar contra a 'Santa Madre' Igreja. O tom insurgente que Vitorino Salomé imprimiu ao seu 'postal' de denúncia dos ímpetos desenfreados da vetusta instituição eclesiástica para controlar e submeter as consciências ao seu domínio, em aliança com poderes políticos despóticos, remetem-nos para a "Arcebispíada" [>> YouTube], de José Afonso, a quem, muito pertinentemente, o distinto cantautor redondense dedicou o seu 'postal' libertário. Tal dedicatória foi também o móbil que nos levou a escolhê-lo para aqui o destacarmos neste dia em que se completaram 36 anos sobre o (prematuro) desaparecimento do autor de "Enquanto Há Força". De notar o refinado arranjo para cravo e quinteto de cordas concebido pelo argentino Alejandro Erlich-Oliva, contrabaixista e membro-fundador do Opus Ensemble, que confiou o cravo à sua colega Olga Prats, a qual o toca esplendidamente. Sendo o "Postal para D. João III" um dos espécimes menos divulgados do repertório de Vitorino, estamos em crer que para alguns (talvez a maioria) dos visitantes do blogue "A Nossa Rádio" será uma agradável descoberta. Boa escuta!

Um dia destes, lográmos ouvir na Antena 1, num espaço da 'playlist', a canção "Queda do Império", de e por Vitorino (com a colaboração vocal de Filipa Pais), o que nos deixou bastante surpresos, conhecendo nós o ignóbil ostracismo a que o categorizado cantautor vinha sendo votado há largos anos, e tendo em conta o obsceno favorecimento que o novo manda-chuva do canal, Nuno Galopim, tem dado a tudo o que seja música pop, principalmente a anglo-americana dos anos 80, em prejuízo da melhor música que se produziu e produz entre nós. Perguntamos: há na 'playlist' mais alguma canção de Vitorino? Duvidamos que haja, mas seria bom que houvesse umas quantas, sobretudo das menos conhecidas. Porque os ouvintes merecem conhecer melhor a obra de um dos nomes maiores da História da Música Portuguesa e também em razão da dívida de reconhecimento e gratidão que Portugal tem para com o artista.



Postal para D. João III



Letra e música: Vitorino Salomé
Intérprete: Vitorino* (in LP "Leitaria Garrett", EMI/Vecemi, 1984, reed. EMI-VC, 1993; CD "As Mais Bonitas 2: Ao Alcance da Mão", EMI-VC, 2002, EMI Music Portugal, 2012; 3CD "Tudo": CD 2 – "Lisboa", EMI Music Portugal, 2005)




                          Ao Zeca Afonso


[instrumental]

Acorda, João III!
Querem-te roubar a fama:
Um cardeal interesseiro
Pelo Santo Ofício chama.

Diz que vem p'ra nos salvar
Da tentação de Mafoma;
Metido numa redoma,
Jura que é inofensivo.

Traz baú de ordenações,
Cadafalso e sambenito;
Cara de corpo-delito,
Volta o polé p'ràs funções.

Eu, por mim, faço um manguito
Às amas do cardeal!
Vou-te mandar um postal
Com novas dos teus filhotes.

De todos a mais notada,
Com pergaminho d'elite,
Essa bastarda a Judite,
Tens-lhe a alma confiada.

Bate-me à porta de noite,
Diz que sou um excomungado:
Mil heresias, culpado,
Carbonário, contumaz,

Diabo, anarquista negro,
Blasfémia não controlada...
Quer saber qual o segredo
Da alma duma granada.

Eu, por mim, faço um manguito...


* Vitorino – voz
Olga Prats – cravo
Aníbal Lima e Manuel Gomes – violinos
Isabel Pimentel – viola d'arco
Teresa Portugal Núncio – violoncelo
Adriano Aguiar – contrabaixo
Direcção musical e arranjo – Alejandro Erlich-Oliva

Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, no mês de Outubro de 1984
Engenheiro de som – Hugo Ribeiro
Técnico assistente – Miguel Gonçalves
Assistente de montagem – José de Carvalho
URL: https://www.vitorinosalome.pt/
https://www.meloteca.com/portfolio-item/vitorino/
https://www.facebook.com/VitorinoSalome.officialpage
https://www.youtube.com/channel/UCuRPFnby4OlKEz5kzN655bA
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=vitorino



Évora: esquina da Rua José Elias Garcia com a Rua das Amas do Cardeal.
Fotografia extraída do blogue "A Terra e a Gente".



Évora: identificação da Rua das Amas do Cardial [sic], em azulejos.



Évora: retrato do Cardeal D. Henrique, em painel azulejar, sobre a mesma parede.
Fotografia extraída do blogue "A Terra e a Gente".

HENRICVS PORT REX XVII VIXIT ANN LXVIII OBIIT. Á. M.DLXXX
[Henrique, XVII rei de Portugal (ou dos Portugueses), viveu LXVIII (68) anos. Faleceu no ano de MDLXXX (1580)].



Capa do LP "Leitaria Garrett", de Vitorino (EMI-VC, 1984)
Concepção – Carlos Ramalho
Fotografia – João d'Assunção

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