01 fevereiro 2023

Luís Cília: "Tango Poluído"



A actividade humana, desde os primeiros hominídeos, sempre teve impacto no meio ambiente, mas foi com a Revolução Industrial, a partir de finais do século XVIII, e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial que se foram tornando mais perceptíveis e visíveis os efeitos nefastos da utilização, cada vez em maior escala, do carvão, do petróleo e do urânio como fontes de energia, e também as consequências perniciosas da incessante devastação de florestas virgens (principalmente equatoriais e tropicais) e da destruição ou contaminação de outros habitats naturais (terrestres, fluviais e marinhos). A tal ponto que nos países mais industrializados emergiram e foram ganhando expressão movimentos ambientalistas e partidos ecologistas que se empenharam/empenham na defesa dos ecossistemas naturais e da biodiversidade, não por romantismo (ao invés do que algumas pessoas menos bem informadas julgavam) mas pela aguda consciência de que são imprescindíveis à vida humana na Terra (o planeta, esse, mesmo que deixe de ter condições de habitabilidade para o homo sapiens e para muitas outras espécies animais e vegetais continuará a rodar sobre o seu eixo imaginário e a orbitar em torno do Sol). Em Portugal, país essencialmente agrário e renitente à industrialização (por opção de Salazar), a tomada de consciência dos problemas ambientais deu-se alguns anos mais tarde, já depois da Revolução dos Cravos, e nela desempenharam importante papel vários artistas da canção, como Amália Rodrigues [com "Caldeirada (Poluição)", 1977], Fausto Bordalo Dias [com "Se Tu Fores Ver o Mar (Rosalinda)", 1977], Pedro Barroso (com "Em Ferrel" e "Canção ao Rio Almonda", 1980) e Luís Cília (com "Tango Poluído", 1981). As duas primeiras canções são ainda hoje razoavelmente conhecidas, mas já o mesmo não poderá afirmar-se acerca das outras. No caso do "Tango Poluído" tal desconhecimento é particularmente injusto porque se trata de uma pérola de alto quilate. Magistralmente concebido e interpretado por Luís Cília, fazendo uso de cativante e jovial verve (em tom irónico e humorístico pode dizer-se coisas muito sérias), o "Tango Poluído", apesar de contar com mais de quarenta anos (saiu no primoroso álbum "Marginal", gravado e publicado no segundo semestre de 1981), não perdeu uma pitadinha de actualidade. Os vários tipos de poluição lá apontados persistem no país e no mundo e, em modo crescente, afectando milhões de pessoas, directa ou indirectamente (quantos seres humanos, a cada ano que passa, adoecem, morrem ou caem na penúria em consequência da poluição do ar, da água, dos solos, dos alimentos, bem como de fenómenos meteorológicos/climáticos extremos associados à poluição – ciclones, inundações, tornados, canículas, secas, desertificação?). A própria possibilidade da ocorrência do holocausto nuclear voltou a estar bem na ordem do dia. E, outrossim, a Televisão continua a ser um veículo de poluição mental, agora em aliança com outro agente altamente poluidor das consciências: as chamadas redes sociais. Importa, pois, escutar, como ouvidos de ouvir, o actualíssimo "Tango Poluído", interiorizar a mensagem nele expressa e agir em conformidade. Porque dessa tão necessária acção, consciente e empenhada, depende a saúde e a vida de milhões de pessoas, assim como, a prazo, a sobrevivência da própria Humanidade! Tendo em mente tal imperativo escolhemos este espécime do vasto repertório ciliano para darmos-lhe destaque nesta data, em jeito de celebração do 80.º aniversário do categorizado cantautor. Crentes de que Luís Cília apreciará este gesto do blogue "A Nossa Rádio", apesar de singelo, aproveitamos o ensejo para manifestar-lhe a nossa gratidão pelo relevante contributo que deu para o enriquecimento do património musical português e endereçar-lhe os nossos parabéns e sinceros votos de vida longa, repleta de saúde. Bem-haja, Luís Cília!

Luís Cília forma, com José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, o trio pioneiro de cantautores portugueses que, impelidos por dever cívico e moral, se devotaram à canção popular de intervenção, tendo em mira a libertação da opressão e da mordaça salazarista/marcelista e a instauração da liberdade e da justiça social tão almejadas pelo povo português. Afigura-se oportuno citar Eduardo M. Raposo: «Luís Cília foi o primeiro cantor de intervenção que, no exílio [em França], denunciou a guerra colonial e a falta de liberdade em Portugal. Gravando ininterruptamente a partir de 1964, realizou uma grande actividade musical, tanto discográfica como no que concerne à realização de recitais, tendo-se profissionalizado em 1967. Mas além disso, Luís Cília dedicou-se, durante vários anos, ao estudo de harmonia e composição, o que era algo invulgar no universo dos cantores de intervenção. Esta formação musical fez de Luís Cília um dos mais respeitados compositores da actualidade, procurado pelas mais importantes instituições, nomeadamente desde que, nos [finais dos] anos 80, optou pela composição pura, o que aconteceu, também, devido às muitas solicitações.» (in "Canto de Intervenção: 1960-1974", 2.ª edição revista e aumentada, Lisboa: Público, 2005, p. 76).
Sem descurar a faceta de autor de letras (de que o "Tango Poluído" é um magnífico exemplo) e a de compositor de música instrumental/incidental para teatro, dança, cinema, telefilmes e séries televisivas, foi no mister de musicar e interpretar poesia alheia, maioritariamente respigada de livros, que Luís Cília se afirmou de modo mais significativo alcançando um lugar de relevo na História da Música Portuguesa. Efectivamente, entre o primeiro álbum, "Portugal-Angola: Chants de Lutte" (Chant du Monde, 1964), e o último trabalho de canções, "Penumbra" (Transmédia, 1987), a sua discografia constitui um dos mais ricos e admiráveis repositórios de poesia (de língua) portuguesa musicada e cantada, abarcando um extenso rol de autores, desde os menos conhecidos do público e/ou menos reconhecidos pela crítica literária encartada e pela academia, até aos mais canónicos (Camões, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira, António Gedeão, Mário Cesariny, Manuel Alegre, Pedro Tamen). Poesia intemporal, na sua maior parte, logo visitável e fruível nos dias de hoje, com inegável proveito intelectual. Então, como se justifica que o repertório de Luís Cília nela assente não seja alvo de divulgação na estação pública? Até há alguns anos podia servir de desculpa o facto da obra discográfica do cantautor estar quase toda por reeditar em CD (quase toda e não toda, uma vez que o álbum "Bailados", de 1995, teve edição original em CD, e em 1996 foi publicada em França a antologia "La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours" e em 2014 saiu em Portugal uma compilação no âmbito da colecção "Canto & Autores", em edição conjunta da Levoir e do jornal "Público"). Hoje já estão disponíveis nas plataformas digitais, iTunes e Amazon incluídas, seis álbuns de Luís Cília – cinco de canções e um de peças instrumentais –, não se podendo tolerável mais que o artista continue a ser impiedosamente silenciado na pública Antena 1. Pelo reconhecimento de que Luís Cília é credor da parte do seu país e pelo direito que assiste aos ouvintes/contribuintes – dos seniores aos mais novos – de escutarem algo do seu valioso legado musical!



Tango Poluído



Letra e música: Luís Cília
Intérprete: Luís Cília* (in LP "Marginal", Diapasão/Sassetti, 1981)




[instrumental]

Ai que bom, que bom que é!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!

Aos domingos, no Verão,
Lá vou eu, de madrugada,
Recompor-me da saúde
Nas praias da Cruz Quebrada:
Banhando-me ao pé do esgoto,
Respirando os seus odores,
Ao chegar o fim do dia
Vou p'ra casa com mais cores.

Fui um dia p'rà montanha
E passei um mau bocado:
Respirando o tal ar puro,
Quase morri sufocado;
Fiquei logo com os pulmões
A pedir por caridade
O cheiro a óleo queimado
Que respiro na cidade.

Ai que bom, que bom que é!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!

Não me venhas com a conversa
Das comidas naturais,
Dás-me cabo dos tomates
Com esses sermões papais.
O frango só com hormonas,
Salsichas só enlatadas,
Peixinho só do Barreiro
E frutas bem sulfatadas.

Há p'ra aí quem diga mal
Da nossa Televisão,
Mas dela já não me passo
P'rà minha cultivação:
Vinte e cinco horas por dia
De cultura e informação
Poluindo a consciência,
Tudo a Bem da Nação.

Ai que bueno, que bueno!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!

Vi um tal da ecologia
Gritando como um possesso
Contra a bomba nuclear,
Contra a bomba do progresso.
Fiz-lhe ver que estava errado,
Pois não há nada mais belo
Nem há morte mais limpinha
Que o quente do cogumelo.

Disse-me um da intervenção:
"Lá estás tu com essa mania,
A cantar o tango assim
Estás a imitar o Letria".
Mas eu estou certo e seguro
Que o Jôjô não leva a mal,
Embora ele tenha a patente
Do tango em Portugal.

Ai que bom, que bom que é!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que viver em poluição!

Ai que bueno, que bueno!
Ai que grande reinação!
Não há no mundo melhor
Que morrer em poluição!


* Luís Cília – voz e viola
Filomena Cardoso – violino
Teresa Ribeiro – violeta
João Neves – violoncelo
Pedro Osório – acordeão
Pedro Casaes – viola baixo

Direcção musical – Luís Cília
Produção – Sassetti
Gravado nos Estúdios Musicorde, Lisboa, em Agosto de 1981
Técnico de som – Rui Remígio
URL: http://www.luiscilia.com/
https://www.youtube.com/user/LeoMOV/videos
https://www.youtube.com/channel/UCqL_T8TPQ2ffVAKn-v4kN_A



Capa do lado A do LP "Marginal", de Luís Cília (Diapasão/Sassetti, 1981)
Concepção, foto e grafismo – Judite Cília



Capa do lado B do LP "Marginal", de Luís Cília (Diapasão/Sassetti, 1981)
Concepção e grafismo – Judite Cília
Quadro – Rogério do Amaral
Fotografia do quadro – Luís F. de Oliveira

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Outros artigos com repertório interpretado por Luís Cília ou da sua autoria:
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Celebrando Eugénio de Andrade
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