12 fevereiro 2025

Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)


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«Estou a quarenta, cinquenta páginas de um lugar incerto, um lugar a vir, pouca terra muita terra, será isso quando Saul escrever num bilhete "espera por mim", e isso acontecerá muito adiante da estação de Campanhã e da aldeia da Pedrinha do Sol, onde mora a avó de Saul, o rapaz que, pela primeira vez, viaja sozinho, num comboio pela mão do escritor António Mota.
É como se estivesse a chegar a Espinho, o mais veloz areal correndo do lado de lá da janela por dentro do espanto de um rapaz em sobressalto, tantas memórias e surpresas e sonhos dentro do sono em que esse rapaz chamado Saul pode mergulhar à janela de um comboio, tanto tumulto dentro da cabeça, a mãe reunindo o seu pequeno mundo num saco e a despedir-se dele na linha 5 da Gare do Oriente, vais gostar da Pedrinha do Sol, "há tanta coisa que podes fazer na Pedrinha do Sol, tens lá a minha bicicleta vermelha".
O escritor António Mota, menino de Vilarelho, Ovil [concelho de Baião], regressa a esse lugar que só ele sabe identificar na concha matricial da serra da Aboboreira. Certa vez, almoçávamos na Borges, ele apontou para os lados da serra e eu cuidei vislumbrar, na linha que os seus dedos desenhava, um lugar encantado ["Tão Longe, Tão Perto", 27 Jul. 2024 >> RTP-Play].
Ele já nos levou a esse lugar mágico num outro livro de há uns quinze anos, "Histórias da Pedrinha do Sol", onde vive um rapaz que gosta de pássaros e de nuvens e que se deixa levar por nuvens e pássaros a lugares improváveis.
Talvez seja ainda esse rapaz aquele que se senta agora ao lado do leitor, confiando-lhe a angústia pela mãe que ficou em Lisboa e vai ser despejada e terá de procurar uma casa onde talvez ele não caiba por agora, de tão acanhada, tão acanhada como o lugar 75 da carruagem 21 em que ele se lança ao seu destino, espera por mim. Saul tacteia as palavras com que partilha um quase pânico, sentado ao lado de um cavalheiro que cruza palavras numa página de jornal, 19 Horizontal: Fazer pela Vida. O rapaz dá um nome a essa invulgar personagem, engenheiro Paulo Freixinho, e eu faço vénia ao escritor António Mota pelo modo como sentou ao lado de Saul o grande cruciverbalista que fez brilhar há anos, na Pedrinha do Sol do nosso vocabulário, a palavra xurdir.
Vou à janela deste livro como se fosse à janela de um comboio, com a minha infância e de tantos outros que a minha fantasia possa inventar. Um livro é o comboio do leitor.
Interrompo a leitura para sacudir as pernas como se o comboio-livro tivesse chegado a um apeadeiro. Levanto-me, vou beber um copo de água, agora que o comboio-livro pára em Pombal. Há um grupo de rapazes e raparigas na plataforma, com as suas mochilas e bonés e t-shirts onde está escrito Férias Divertidas com a União de Freguesias de Campelo e Ovil. É como se Saul, o menino Mota, cuja infância viaja neste comboio de sonhos e incertezas, nos chamasse ainda e sempre para a sua aldeia de Vilarelho. Vamos, talvez lá encontremos o rapaz de Louredo e Pedro Alecrim. Entra na carruagem a rapariga do violoncelo e eu envio uma SMS ao meu amigo António Mota, pelo meu telemóvel ou por aquele que Saul perde na casa de banho do comboio. E ele conta-me que está a chegar de uma escola onde uma senhora lhe contou que tem no quarto uma fotografia tirada há muitos anos com ele. No mesmo caixilho, ao lado da fotografia, a senhora guarda um santinho.
É o anjo da guarda de Saul e das histórias que Saul inventa à janela de um comboio. Espera por mim.» [Fernando Alves, "Espera por mim", in "Os Dias que Correm", 12 Fev. 2025]


Um rapaz viajando num comboio... Que canção portuguesa ilustra melhor tal situação? Pois não era preciso pensar muito nem fazer muitas pesquisas para encontrá-la: "Comboio Malandro", de Fausto Bordalo Dias sobre poema do angolano António Jacinto. O categorizado cantautor gravou-a duas vezes: a primeira em 1974 para o LP "P'ró Que Der e Vier", e a segunda em 1989 para o álbum "A Preto e Branco". Qualquer um destes registos seria o remate ideal à crónica de hoje de Fernando Alves centrada na infância tomando como inspiração uma história escrita por António Mota. Assim não aconteceu, pois, logo a seguir à crónica, o oficiante de serviço, Ricardo Soares, mais não fez do que rezar a meteorologia e as temperaturas máximas previstas para todas as capitais de distrito.
Dado que a segunda gravação é razoavelmente conhecida, escolhemos a primeira, também muito boa, para aqui destacar e mostrar como a Antena 1 perdeu, uma vez mais, a oportunidade de prestar bom serviço público aos fiéis ouvintes da crónica de Fernando Alves e, simultaneamente, de evocar o grande Fausto Bordalo Dias. Boa escuta!



Comboio Malandro



Poema: António Jacinto (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Fausto Bordalo Dias
Intérprete: Fausto Bordalo Dias* (in LP "P'ró Que Der e Vier", Orfeu, 1974, reed. Movieplay, 1999; CD "Fausto", Col. O Melhor dos Melhores, vol. 39, Movieplay, 1994)




[instrumental]

Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
         ué ué
         hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

                O comboio malandro
                passa

Nas janelas muita gente
         ai bô viaje
         adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender
hii hii hii

         aquele vagon de grades tem bois
                                                 múu múu múu

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
                muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste...
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

[instrumental]

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança:
                «Mulonde iá Késsua uádibalé
                uádibalé uádibalé uádibalé...»
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
         passa
sem respeito
                ué ué
                hii hii
com muito fumo no trás
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas...
vai nas casas dos pretos e queima
                Esse comboio malandro
                Esse comboio...
                Esse comboio malandro
                Já queimou o meu milho.

[instrumental]

Se na lavra de milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles

mas se vai lá fogo do comboio malandro
— deixa! —
                ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
                muito fumo mesmo.
                ué ué ué ué ué ué ué

                Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos pra empurrar
eu vou
mas não empurro
                — nem com chicote —
finjo só que faço força

                Comboio malandro
                você vai ver só o castigo
                vai dormir mesmo no meio do caminho.
                Você vai ver só o castigo
                vai dormir mesmo no meio do caminho.
                ué ué ué ué ué ué ué


* Fausto Bordalo Dias – voz, viola e percussões
Kinito – percussões

Arranjos e direcção musical – Fausto Bordalo Dias
Produção – Adriano Correia de Oliveira
Gravado nos Estúdios Kirios, Madrid, até 17 de Abril de 1974
Técnicos de som – Pepe Fernández e Paco Molina
URL: https://www.facebook.com/p/Fausto-Bordalo-Dias-P%C3%A1gina-Oficial-100044468348123/
https://altamont.pt/fausto-pro-que-der-e-vier-1974/
https://fausto-bordalodias.blogspot.com/p/discografia.html
https://viriatoteles.com/livros/contas-a-vida/41-fausto-bordalo-dias.html
https://viriatoteles.com/imprensa/imprensa-1990-2000/89-por-favor-leiam-estes-discos.html
https://music.youtube.com/channel/UCH_869XTh5lFDKiCKvmuV_w
https://www.youtube.com/channel/UCh5tYA07B0Uur5Mo1gbPmYQ/videos?query=fausto



CASTIGO PRÒ COMBOIO MALANDRO

(António Jacinto, in "Poemas", Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961 – p. 15-17; "50 Poetas Africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe", org. Manuel Ferreira, Lisboa: Plátano, 1989, 2.ª edição, 1997 – p. 37-39)


Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
         ué ué ué
         hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

                O comboio malandro
                passa

Nas janelas muita gente:
         ai bô viaje
         adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender
hii hii hii

         aquele vagon de grades tem bois
                                                 múu múu múu

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
                muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança:
                «Mulonde iá Késsua uádibalé
                uádibalé uádibalé...»
Esse comboio malandro
sòzinho na estrada de ferro
passa
         passa
sem respeito
                ué ué ué
com muito fumo na trás
                hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos pretos e queima
                Esse comboio malandro
                Já queimou o meu milho.

Se na lavra do milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
e mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
— deixa! —
                ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
                muito fumo mesmo.

                Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos pra empurrar
eu vou
mas não empurro
                — nem com chicote —
finjo só que faço força
                                aka!

                Comboio malandro
                você vai ver só o castigo
                vai dormir mesmo no meio do caminho.



Capa do livro "Poemas", de António Jacinto (Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961)
Concepção – Luandino Vieira



Capa do LP "P'ró Que Der e Vier", de Fausto Bordalo Dias (Orfeu, 1974)
Fotografia e arranjo gráfico – Luís Martins, P. Almeida



Capa do livro "Espera por Mim", de António Mota (Col. Biblioteca Juvenil, N.º 14, Porto: Edições Asa, Jan. 2025)
Ilustração – Alex Gozblau



Capa do livro "Histórias da Pedrinha do Sol", de António Mota (Col. Júnior, Série Laranja, +8 anos, Lisboa: Texto Editores, Out. 2009)
Ilustrações – Júlio Vanzeler.

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