21 março 2021

Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores



Mário Dionísio, quando, no período 1936-38, escreveu o poema "Solidariedade", teria, presumivelmente, em mente os humilhados e ofendidos pelo regime autocrático de Salazar convidando-os a esquecerem as suas diferenças de filiação ideológica para, unidos e concertados, terem mais probabilidades de êxito na luta visando o desejado derrube da ditadura.
O que talvez Mário Dionísio estivesse longe de imaginar é que este seu poema focado na desditosa realidade político-social do seu país nos primórdios do Estado Novo pudesse, mais de oito décadas decorridas, ter uma leitura à escala mundial. Em boa verdade, o exército de humilhados e ofendidos não pára de aumentar em todo o mundo, inclusive nos países (ditos) desenvolvidos e formalmente democráticos, com a crescente proletarização da classe média e a concentração da riqueza e dos meios de produção em cada vez menos mãos (leia-se nas dos donos de gigantescas empresas multinacionais). E se a luta contra esta opressão global, para ser bem-sucedida, precisa da união de todos os explorados e aviltados na sua dignidade de seres humanos, uma autêntica espada de Dâmocles pende hoje, e cada vez mais assim será, sobre a Humanidade. E essa é a galopante degradação das condições indispensáveis à vida na Terra: pelas alterações climáticas causadas pela combustão de substâncias carbónicas, pela destruição dos habitats naturais e a consequente extinção massiva das espécies vegetais e animais que deles dependem, pela depauperação e desertificação dos solos devido à exploração intensiva em regime de monocultura – em suma, pelo esgotamento dos recursos naturais (vegetais, animais e minerais) e exaurimento das condições ambientais necessárias à vida do Homem. Será a própria espécie humana que, a prazo, se extinguirá, em consequência da sua acção inconsciente, irracional e tresloucada, sendo previsível que nesse processo as guerras entre países ou blocos de países ajudem à desgraça. Mas o planeta Terra, esse, embora extremamente inóspito e inabitável para o homo sapiens e a maioria das espécies que conhecemos, continuará a gravitar à volta do Sol e talvez algumas formas de vida logrem sobreviver à hecatombe ecológica (é de crer que, pelo menos, os seres vivos que habitam os fundos marinhos junto às chaminés hidrotermais escapem) podendo iniciar-se, ainda que muito lentamente, novos processos evolutivos tendentes ao gradual aparecimento de uma nova biodiversidade, da qual poderá emergir (ou não) uma espécie superiormente inteligente, que talvez venha a provocar outro cataclismo ecológico planetário, e assim sucessivamente até que finalmente, dentro de cerca de 4,5 mil milhões de anos, o Sol se transforme numa gigante-vermelha e a vida na Terra se torne de todo inviável.
Poderá a Humanidade evitar a sua precoce extinção? Confessamos o nosso cepticismo a esse respeito. Uma coisa nos parece certa: quanto mais tempo a espécie humana demorar a arrepiar caminho mais prematuro será o seu fim.
O poema de Mário Dionísio, que aqui apresentamos primorosamente recitado por Carmen Dolores, afirma-se, nesse contexto, como um lúcido apelo à conjugação de esforços para se retardar a marcha rumo ao abismo.

E como esteve a rádio pública relativamente ao presente Dia Mundial da Poesia?
Começamos por enaltecer Luís Caetano por ter preenchido, integralmente, a edição de ontem do seu programa "A Força das Coisas" [>> RTP-Play] com poemas, ditos por quem os não escreveu, intercalados com trechos musicais eruditos ou menos eruditos, mas sempre de boa qualidade. Um louvor para Luís Caetano, a quem também voltamos a manifestar o nosso penhorado agradecimento por continuar a manter, com zelo e profissionalismo, as rubricas "A Vida Breve" [>> RTP-Play] e "O Som que os Versos Fazem ao Abrir" [>> RTP-Play]. Também na Antena 2, registamos, com apreço, a emissão de hoje do programa "Musica Aeterna" [>> RTP-Play], na qual o autor, João Chambers, incluiu um belo punhado de textos – em prosa e em verso – alusivos, directa ou indirectamente, à arte poética (de Ovídio, Homero, Pierre de Ronsard, Aristóteles, Herbert Read, Goethe, Voltaire, Heraclito de Éfeso, Camões e Diderot) lidos por Luís Caetano. Ao longo do dia, a Antena 2 bem podia ter transmitido, entre cada programa de autor, um poema recitado. Era de bom-tom e nem sequer dava muito trabalho. Bastaria fazer uso do rico manancial de poesia que está a apodrecer no arquivo histórico, parte significativa do qual na voz da emérita e saudosa Carmen Dolores. Uma falha que só se explica pela inércia da direcção de programas!
E que fizeram as Antena 1 e 3? Andámos a fazer 'zapping' e nada nos constou. Como é possível tão condenável alheamento? Pura negligência ou simples tibieza cultural? Fica-nos a ideia de que é o misto de ambas. Rui Pêgo e Nuno Reis mostram não ser apreciadores de poesia mas, ao menos, podiam ter o sentido de responsabilidade e a clarividência de perceber que os canais cujas direcções de programação lhes foram confiadas não existem para afagar os seus boçais umbigos: existem e são mantidos pelos pagantes da contribuição do audiovisual para prestar serviço público, o qual não pode (não deve) jamais deixar de contemplar a divulgação de uma arte tão importante e necessária como é a poesia. Vergonhoso!



SOLIDARIEDADE



Poema de Mário Dionísio (in "Poemas", 1936-38, secção "Com todos os homens nas estradas do mundo", Col. Novo Cancioneiro, N.º 2, Coimbra, 1941, reed. Lisboa: Althum/Museu do Neo-Realismo, 2010 – p. 42; "Poesia Incompleta", 2.ª edição, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1982, reimp. 2009 – p. 70; "Poesia Completa", Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016 – p. 49)
Recitado por Carmen Dolores* (in CD "Poemas da Minha Vida", Dito e Feito, 2003)


Vamos, dêem as mãos.

Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo? essa raiva?
Porquê essa imensa barreira
entre o Eu e o Nós na natural conjugação do verbo ser?

Vamos, dêem as mãos.

Para quê esses bons-dias, boas-noites,
se é um grunhido apenas e não uma saudação?
Para quê esse sorriso
se é um simples contrair de pele e nada mais?

Vamos, dêem as mãos.

Já que a nossa amargura é a mesma amargura,
já que miséria para nós tem as mesmas sete letras,
já que o sangrar de nossos corpos é o vergão da mesma chicotada,
fiquemos juntos,
sejamos juntos.
Porquê esse ar de eterna desconfiança?
esse medo? essa raiva?

Vamos, dêem as mãos.


* Carmen Dolores – voz
Produção – Dito e Feito
Gravado nos Estúdios Goya, Lisboa, em Dezembro de 2002



Capa do livro "Poemas", de Mário Dionísio (Col. Novo Cancioneiro, N.º 2, Coimbra, 1941) [edição fac-similada: Althum/Museu do Neo-Realismo, 2010]
Desenho – Manuel Ribeiro de Pavia



Capa da 2.ª edição de "Poesia Incompleta", de Mário Dionísio (Col. Obras de Mário Dionísio, N.º 1, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1982)



Capa do livro "Poesia Completa", de Mário Dionísio (Col. Plural, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016)
Grafismo – André Letria



Capa do CD "Poemas da Minha Vida", de Carmen Dolores (Dito e Feito, 2003)
Design gráfico – João Nuno Represas

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Outros artigos com poesia recitada por Carmen Dolores:
Galeria da Música Portuguesa: Carlos Paredes
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen

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Mário Viegas: 10 anos de saudade
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Poesia na rádio (II)
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Cesário Verde por Mário Viegas
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Camões recitado e cantado (IV)
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Miguel Torga: "Natividade"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Fernando Namora: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado (V)
Miguel Torga: "A um Negrilho"
Camões recitado e cantado (VI)

1 comentário:

SOL da Esteva disse...

Liberdade desigual (A Publicar em 24ABR2021)


Um mito real ou uma crença
Marcados na imagem duma flor…
Tem-se liberdade por avença
Sem a imbuir de algum Amor,

Pois que é real a divergência
Num Mundo que é de toda a gente.
Sobram extremistas na inocência
Do discurso fácil, porque assente

Em doutrinas gastas, de outras gentes
Pré-iluminadas ou dementes,
Com ausência simples e total

Duma verdadeira Caridade.
Assumimos a menoridade,
Duma liberdade desigual.


SOL da Esteva