21 março 2023

Natália Correia: "A Casa do Poeta", por Afonso Dias


Natália Correia, "Auto-Retrato", 1956, Óleo sobre tela, 92,5 x 72,5 cm, Museu Carlos Machado, Ponta Delgada [MCM 6930]
Fotografia – António Ferreira Pacheco


Natália Correia viveu quase toda a sua vida em Lisboa, cidade angular de toda a sua existência.
Na capital escolheu a sua residência numa zona de confluência de várias camadas sociais. À distância ficava-lhe o Rato (espaço aristocrático), ao cimo o Marquês de Pombal (área burguesa) e, defronte, a Avenida da Liberdade (zona cosmopolita).
Corriam os anos 50, quando a escritora, então em início da sua fulgurante carreira, descobriu, casualmente, um 5.º andar na Rua Rodrigues Sampaio. «Um dia vim aqui visitar uns amigos e a atmosfera da casa atraiu-me logo. Eles mudaram-se e este apartamento esteve muito tempo devoluto, como que à espera que eu casasse e o alugasse».
Situava-se num edifício sólido e elegante, discreto e requintado com, no rés-do-chão, uma das melhores pastelarias-restaurantes da cidade. Natália Correia passou a habitar o último piso após o seu casamento, em 1953, com Alfredo Lage Machado. «Ele foi o grande amor da sua vida», confidencia-nos Helena Cantos (protagonista feminina do filme "Santo Antero"), e amiga íntima durante décadas.
Com invulgar bom gosto, a poetisa decorou-o. Na entrada, dispôs sobre numa credência um busto seu da autoria de Martins Correia. No salão principal instalou a biblioteca composta por milhares de volumes, um auto-retrato [>> imagem supra], um óleo de Cesariny, uma escultura de Júlio de Sousa e uma máscara de Eça de Queiroz. Em posição de destaque, uma gigantesca mesa-secretária, estilo império, com tampo de mármore escuro e pés dourados, cadeiras Luís XVI, porcelanas chinesas (herdadas da mãe), peças de artesanato e um tabuleiro de xadrez; numa sala anexa, vários quadros contemporâneos, um canapé, um par de 'bergeres' e um bar de estilo renascença.
Durante duas décadas a casa tornou-se um dos mais pujantes salões literários de Lisboa, onde se reuniam, pelas noites fora, escritores, pintores e políticos.
«Natália Correia e o seu marido cederam a sua elegante residência», descreve um jornal da época, «para a representação da peça de Jean-Paul Sartre, "Huis Clos", inédita entre nós. Foi interpretada por Natália Correia, Maria Ferreira, Castro Freire e Manuel Lima».
O espectáculo, encenado por Carlos Wallenstein (açoriano), teve entre a assistência Isabel da Nóbrega, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, João Gaspar Simões, Fernando Amado e Almada Negreiros.
Numa noite, em 1960, Henry Miller bate à porta de Natália que fica espantada. Ele entra, senta-se e discute com os presentes, entre os quais David Mourão-Ferreira e Delfim Santos, o tema do amor. Ao sair, o romancista norte-americano exclamará: «Aqui sentimo-nos ou no século XVIII ou no ano 2000. Foi preciso vir a Portugal para encontrar uma verdadeira pitonisa».
Entre outros vultos universais que a frequentaram, destacam-se Ionesco, Claude Roi e Michaux.

ANTÓNIO BRÁS (in https://www.modaemoda.pt/)


A casa de Natália Correia (à rua Rodrigues Sampaio) e, muito especialmente, a sala de estar onde trabalhava depois do almoço e recebia os amigos à noite, também foi, ela mesma, objecto do seu labor poético, designadamente no poema, em oito estrofes (quadras), intitulado precisamente "A Casa do Poeta". Metaforicamente, a casa do poeta é a sua poesia e, nessa medida, podem frequentá-la sempre todos os que precisam dela para o seu sustento espiritual. Neste Dia Mundial da Poesia, que acontece no ano do centenário do nascimento da autora d' "A Mosca Iluminada", acolhemo-nos em sua casa, guiados por Afonso Dias, e tornamo-nos convivas e comensais do lauto banquete que a generosa anfitriã pôs à disposição de quem quis dar-lhe a honra de visitá-la. Porque a poesia é para comer e em sua casa não há lugar para subalimentados do sonho! Bom apetite e melhor proveito!

E como se tem comportado a estação pública de radiodifusão neste dia que a UNESCO instituiu para celebrar «a diversidade do diálogo, a livre criação de ideias através das palavras, a criatividade e a inovação»?
Na Antena 2, cumpre-nos mencionar João Chambers que, por antecipação, devotou a edição de domingo passado do seu programa "Musica Aeterna" à poesia de Goethe, em tradução do próprio João Chambers e do Prof. Paulo Quintela, dita por Carla Aranha [>> RTP-Play]. Hoje, logo de manhã, pela mão de Paulo Alves Guerra, houve poesia de Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto Jorge. E Luís Caetano, assinalando o 10.º aniversário (parabéns!) da sua rubrica "A Vida Breve", presenteou-nos com a "Pedra Filosofal", de e por António Gedeão [>> RTP-Play]. Ao fim da tarde, a partir das 19h:00, foi transmitida a gravação do recital "O Poema Ensina a Cair", que se havia realizado a 1 de Março passado no auditório do Museu do Oriente, preenchido com poemas de um bom rol de autores contemporâneos de língua portuguesa (alguns bem pouco conhecidos) escolhidos e lidos por Raquel Marinho, com o acompanhamento e interligação musical do pianista João Paulo Esteves da Silva [>> RTP.PT/Antena2]. Desta vez, a Antena 2 esteve bem!
E o que fizeram as outras duas antenas nacionais? Apenas lográmos ouvir algo na Antena 1, no programa "Uma Noite em Forma de Assim", de Jorge Afonso, pela voz de dois jovens autores. Nada mais nos constou de poesia dita/recitada nas Antenas 1 e 3, visitando as 'homepages' e fazendo incursões periódicas às respectivas emissões! Perguntamos: será que Nuno Galopim e Nuno Reis, que aparentemente não gostam de poesia, julgam que os ouvintes dos canais que estão sob a sua direcção também não suportam as palavras dos poetas? Ou tratou-se de mera e simples inércia?



A CASA DO POETA



Poema de Natália Correia (in "A Mosca Iluminada", Colecção Poesia, vol. 3, Lisboa: Quadrante, 1972 – p. 26-28; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 428-429; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 319-320)
Recitado por Afonso Dias* (in CD "Poesia de Natália Correia", col. Selecta, Música XXI, 2007)


Pelo meu acto de inventar amigos
como quem lá de cima vê Lisboa
a acusar-se numa fotografia
tirada de um avião e lhe perdoa

minha propriedade vertical
levanto como quem na hora extrema
se salva a tempo como quem ao inimigo
oferece a face esquerda do poema.

Ó pedreiros do meu amor de sempre
fazendo a minha casa com a alegria
de quem se escolhe a morrer pelos outros
deita uma lágrima e merece o dia!

Casa que não se esconde atrás das portas
endereço de guerra redimida
roupa de amor a pingar sobre quem passa
renda que pago em sofrimento à vida

minha casa ingénua de armistício
assinado entre mim e os descrentes
casa de versos que escrevo na brancura
da cal que empalidece pelos ausentes.

No acalento da sala que é de estar
entre algodões porque é sala de ser
esperamos que o elefante solitário
da tarde se afaste para morrer

e a noite com alcoólicos gorjeios
de pássaros de gim dentro dos copos
mata a sede de sermos um infinito
animal em lacerados corpos.

Plural solidão de casa muita
espaçoso afago casa substância
de amigos que encontramos no futuro
dançando o que nos resta de crianças.


* Afonso Dias – voz
Organização, selecção e apresentação – Afonso Dias
Captação de som, mistura e masterização – Adriano St. Aubyn
URL: https://www.facebook.com/afonso.dias.31
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Dias
https://www.youtube.com/@afonsodias4584/videos
https://music.youtube.com/channel/UCChoajupsYfGsG5uIGj8XMA



Capa da 1.ª edição do livro "A Mosca Iluminada", de Natália Correia (Colecção Poesia, vol. 3, Lisboa: Quadrante, 1972)
Concepção – Cidália de Brito Pressler



Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999)



Capa do CD "Poesia de Natália Correia", de Afonso Dias, com a colaboração de Isabel Afonso Dias, Meguy, Rita Neves, Tânia Silva e Telma Veríssimo (col. Selecta, Música XXI, 2007)

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Outros artigos com poesia de Natália Correia:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Poesia na rádio (II)
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia
Ana Moura: "Creio" (Natália Correia)
Natália Correia: "Rascunho de uma Epístola", por Ilda Feteira
A Natalidade de Natália

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Outros artigos com poesia dita/recitada:
Mário Viegas: 10 anos de saudade
Miguel Torga: "Natal"
Arte e poesia
Jorge de Sena: "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", por Mário Viegas
Sebastião da Gama: "Poesia", por Carmen Dolores
João Villaret: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado
Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" ou "Palavras Malditas"?
Em memória de Guilherme de Melo (1931-2013)
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Vinicius de Moraes
Fernando Pessoa por João Villaret
Miguel Torga: "Ode à Poesia", por João Villaret
Celebrando Agostinho da Silva
Camões recitado e cantado (II)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Cesário Verde: "De Tarde"
Cesário Verde por Mário Viegas
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camilo Pessanha: "Singra o navio", por Mário Viegas
Miguel Torga: "Flor da Liberdade"
Camões recitado e cantado (III)
Sebastião da Gama: "Louvor da Poesia", por José Nobre
"Ecos da Ribalta": homenagem a Carmen Dolores
Camões recitado e cantado (IV)
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Miguel Torga: "Natividade"
António Botto: "Homem que vens de humanas desventuras"
Fernando Namora: centenário do nascimento
Camões recitado e cantado (V)
Miguel Torga: "A um Negrilho"
Camões recitado e cantado (VI)
Mário Dionísio: "Solidariedade", por Carmen Dolores
Manuel Alegre: "País de Abril", por Mário Viegas
Camões recitado e cantado (VII)
Maria Teresa Horta: "Mulher-Poetisa"
Florbela Espanca: "À Morte", por Eunice Muñoz
Camões recitado e cantado (VIII)
Eugénio de Andrade por João Perry

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