19 março 2024

Nuno Júdice: "O Sentido do Poema"


Henri Martin, "Moissonneuse à la gerbe de blé" ("Ceifeira com feixe de trigo"), 1916, óleo sobre tela, 54,5 x 70 cm, Colecção particular


Quem gosta de poesia não é raro encontrar, lendo ou ouvindo, textos que lhe suscitem a exclamação: «Este poema fascina-me! Quem me dera ter sido eu a escrevê-lo!». No caso de Nuno Júdice, aconteceu-nos isso com "O Sentido do Poema", dito (primorosamente) pelo autor, quando o ouvimos pela mão de Luís Caetano numa memorável edição especial d' "A Força das Coisas", transmitida no Dia Mundial da Poesia de 2009. Esse registo também já foi divulgado no apontamento "A Vida Breve", pelo mesmo realizador da nossa rádio, o que nos possibilita disponibilizar o respectivo link, a pensar naqueles que, tal como nós, apreciam a dimensão oral da poesia. Homenageamos assim, ainda que muito singelamente, o grande poeta Nuno Júdice, aproveitando para deixar expressa a vontade de nos debruçarmos, com maior fôlego, sobre a sua valiosa produção.
Para já, damos nota, com elevado apreço a Luís Caetano, da edição d' "A Ronda da Noite" de ontem inteiramente consagrada a Nuno Júdice, com uma esmerada sequência de registos em voz própria intercalados com boa música [>> RTP-Play].



O SENTIDO DO POEMA

Poema de Nuno Júdice (in "A Matéria do Poema", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008 – p. 117)
Dito pelo autor* (2008, registo do arquivo da RDP) ["A Vida Breve", 8 Abr. 2022 >> RTP-Play]


Há um sentido nas frases em que o verão passa,
e que vai espigando na seara do poema – para
que um dia a ceifeira do Outono o colha com
a sua foice mais sombria, deixando vazio o campo
e cinzento o horizonte. Mas vou abrindo,
com o arado do poema, os sulcos de onde outros
sentidos irão nascer; e espero que o Inverno
passe, e voltem os primeiros pássaros da
primavera com o canto matinal em que desperta
a natureza. E vejo a ceifeira pousar a foice,
tirar o chapéu de palha para que os seus
cabelos se confundam com o amarelo
das flores, e beber a luz solar com os seus
olhos ávidos de azul. Já não é a deusa
que transporta ao colo a morte; nem
a sombra que empurra, com os seus braços
de gelo, o carro do dia para ocidente. Estende
no chão o linho do instante; e é nele
que celebro a missa do poema, para
que não se perca o sentido das frases
em que o que o verão permanece.


* Nuno Júdice – voz
URL: https://aaz-nj.blogspot.com/



Capa do livro "A Matéria do Poema", de Nuno Júdice (Publicações Dom Quixote, 2008)

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