25 agosto 2025

Álvaro de Campos: "Soneto Já Antigo", por Luís Lucas


(in https://passaportelisboa.com/luis-lucas/)


Foi com surpresa e consternação que recebemos a notícia da morte, ontem ocorrida, do actor Luís Lucas, vitimado por ataque cardíaco. Na difícil arte de bem dizer poesia, consideramo-lo um dos mais competentes que Portugal já teve. Damos como exemplo, à guisa de singela homenagem nesta hora triste, a sua magnífica leitura do "Soneto Já Antigo", de Álvaro de Campos, publicada no CD n.º 1 do audiolivro "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004).
Por acaso, Fernando Pessoa nem se conta entre os poetas que Luís Lucas mais gravou (a sua discografia incide sobretudo em Guerra Junqueiro, Mário de Sá-Carneiro, José Gomes Ferreira, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira e Pedro Tamen), mas quisemos dar realce àquele soneto do mais especulativo e niilista dos heterónimos pessoanos, por duas boas razões: primeira, por acontecer neste 2025 a efeméride dos 90 anos da morte do maior poeta português depois de Camões; e segunda, por o poema em apreço versar sobre a morte, assunto que se adequa plenamente à funesta ocorrência que subtraiu ao número dos vivos um dos mais dignos cultores e divulgadores da poesia portuguesa contemporânea. A vida que Álvaro de Campos impreca no último verso é, para bom entendedor, a vida videirinha daqueles que a consomem a acumular riquezas materiais e a conquistar glórias que a morte reduz a inutilidades, pois deixam de ter qualquer préstimo para quem muito se empenhou em obtê-las, não raramente em prejuízo do bem-comum.

No que à rádio pública diz respeito, damos boa nota da iniciativa de Paulo Alves Guerra ao consagrar, hoje, boa parte do seu programa da manhã na Antena 2, a Luís Lucas transmitindo uma mão-cheia de poemas ditos pelo malogrado actor/recitador intercalados com trechos de peças sacras de Johann Sebastian Bach. Recomendamos especialmente a primeira hora em que pontificaram poemas de Mário Cesariny, Herberto Helder, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão e Eugénio de Andrade, curiosamente todos extraídos do mesmo audiolivro com chancela da Assírio & Alvim [>> RTP-Play].
Na Antena 1, nada apanhámos em memória de Luís Lucas, nas breves incursões que fizemos à respectiva emissão, e não acreditamos, sinceramente, que nos períodos em que estivemos ausentes da sintonia do canal algum poema na voz do saudoso actor tenha sido ofertado ao auditório. O registo ora em destaque e tantos outros do valioso legado fonográfico de Luís Lucas podiam muito bem ser dados a escutar aos ouvintes do canal generalista da estação pública de rádio, de vez em quando, no âmbito de um apontamento regular de poesia dita/recitada emitido diariamente ou de segunda a sexta-feira. Ficamos então a fazer votos de que a nova direcção de programas seja menos hostil relativamente à poesia do que foi a direcção precedente, do autista Nuno Galopim de Carvalho. Oxalá!



SONETO JÁ ANTIGO



Poema de Álvaro de Campos (in revista "Contemporânea", N.º 6, Lisboa: Natal 1922 – p. 121; "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes; colaboração de Manuela Parreira da Silva e de Luísa Medeiros, Lisboa: Editorial Estampa, 1993 – p. 2)
Dito por Luís Lucas* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX": CD 1, Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)


Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não o sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra York, onde nasceste (dizes...
Que eu nada que tu digas acredito),
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes,

Embora não o saibas, que morri...
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará... Depois vai dar

A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...

(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes do Opiário, portanto) Dezembro 1913

1915



* Luís Lucas – voz

Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Lucas
https://artistasunidos.pt/luis-lucas/



Capa do N.º 6 da revista "Contemporânea" (Lisboa: Natal 1922)
Ilustração – José de Almada Negreiros



Página 121 da publicação anterior onde consta o "Soneto Já Antigo", de Álvaro de Campos.



Capa do livro "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes; colaboração de Manuela Parreira da Silva e de Luísa Medeiros (Lisboa: Editorial Estampa, 1993)



Capa da 3.ª edição do livro anterior (Lisboa: Editorial Estampa, 1997)



Capa do livro (com 2 CD) "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004).
Imagem heliográfica – Lourdes Castro ("Mangueiro", in Grand Herbier d'Ombres, 1972)

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Outros artigos com poesia dita por Luís Lucas:
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade

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Outros artigos com poesia de Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimos):
João Villaret: centenário do nascimento
Ser Poeta
Fernando Pessoa por João Villaret
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Em memória de Tereza Tarouca (1942-1919)
Cantos de Natal da Galiza e de Portugal
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