31 agosto 2025

Sérgio Godinho: "Romance de um Dia na Estrada"




Autor, compositor, intérprete vocal e instrumental, só em casos muito raros Sérgio Godinho partilhou com outros as maiores responsabilidades das suas peças (para lá do acompanhamento e da orquestração); [...]
As letras — quer dizer, os poemas, ou, para usarmos palavras hoje menos nobres, mas com prestígio histórico-literário, as poesias, as cantigas, as canções — de Sérgio Godinho não podiam fugir à tradição que se iniciou em língua portuguesa com as cantigas medievais. Naquelas, como nestas, abundam os jogos paralelísticos, as repetições de todo o tipo (da anáfora ao quiasmo), as oposições, as variações, as simetrias e dissimetrias (formais e semânticas) que marcam claramente, didacticamente, de modo a poderem ser retidas com facilidade na leitura ou na audição, as diferenças de sentido, as lutas com e pelo sentido, as hipóteses de mudança e de alternativa (da história, da sociedade, do sujeito).
[...]
As canções de Sérgio Godinho, estudante sem curso completo, refractário, homem de 7 instrumentos, viajante de vários países, cidadão duas vezes injustamente preso, pai de dois filhos, português com um percurso tão comparável ao de tantos portugueses do nosso tempo, cosmopolitas e «retornados», ajudam-nos a viver num Portugal moderno e livre — e a fugir cada vez mais da apagada e vil tristeza nacional.


        ARNALDO SARAIVA
        (Do estudo crítico "A Canção de Sérgio Godinho",
        in "Canções de Sérgio Godinho", Lisboa: Assírio
        & Alvim, 1983 – p. 22, 25 e 43)


"Romance de um Dia na Estrada" — o título deste poema narrativo rimado (rimance) de Sérgio Godinho, lançado no Outono de 1971, é bem explícito quanto ao assunto sobre que versa: a aventura amorosa de um andarilho (no caso, de um músico/cantor) numa das suas errâncias de viola ao ombro. Mas, ao contrário do que acontece no romance/rimance tradicional "Laurinda" [>> YouTube Music], a infidelidade feminina não é condenada, antes considerada a natural e emancipada expressão do amor livre, desamarrado de velhas e opressivas convenções sociais. Neste ponto, o sergiano (aparentemente inspirado no livro "On the Road", de Jack Kerouac) "Romance de um Dia na Estrada" distingue-se por ser inovador e revolucionário no contexto nacional, numa altura – convém ter isso presente – em que ainda vigorava o patriarcal e misógino Estado Novo, se bem que já bastante debilitado e exaurido, muito por causa da Guerra Colonial. Na moral da história, Sérgio Godinho corta com a tradição, mas mantém-se a ela fiel no que concerne à forma poética ao adoptar a popular estrutura estrófica de septilhas, só que com esquemas de rimas diferentes e mais elaborados. Assim, em vez do usual XAXABBA temos, em "Romance de um Dia na Estrada", XABBABB (1.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª e 8.ª estrofes), XAABABA (2.ª estrofe), XABABAA (6.ª estrofe) e XABAABB (7.ª estrofe). Também por esta construção poética mais sofisticada do que a tradicional, a que se acrescentam a inspirada melodia e a primorosa interpretação vocal (ambas de Sérgio Godinho) e a competente execução instrumental (viola de Gérard Crapoutchik), este romance ocupa um lugar bem elevado na extensa produção sergiana e, claro está, no património poético-musical português. E foi esse o entendimento do director editorial da Sassetti ao escolhê-lo para tema-título e abertura do alinhamento do primeiríssimo disco (EP) de Sérgio Godinho, publicado em Novembro de 1971 (o LP "Os Sobreviventes", de que também faz parte, já estava gravado – havia-o sido em fins de Abril de 1971 – mas o lançamento teria de esperar mais alguns meses, apenas por estratégia comercial da editora que resolvera apostar fortemente no álbum "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco). Todavia, este encantador rimance parece ter sido subestimado pelo distinto autor e intérprete, pois não consta em qualquer dos seus vários discos ao vivo. E em antologias de repertório gravado em estúdio também só figura em duas: no duplo LP "Era uma Vez um Rapaz" (Philips/Polygram, 1985) [na reedição em CD, de 1991, não foi incluído] e no CD "Biografias do Amor" (Universal Music Portugal, 2001). Por ser um dos espécimes do vastíssimo repertório de Sérgio Godinho que mais apreciamos, fazemos questão de dar-lhe destaque aqui e agora, para assim nos associarmos à homenagem que o país está a render ao autor de "Espalhem a Notícia", no dia do seu 80.º aniversário natalício.
Parabéns, Sérgio Godinho! E muito obrigado pelo relevantíssimo contributo que deu para o enriquecimento do património musical/fonográfico português!

Tendo em conta que a Antena 1 tem deixado passar em claro sucessivas efemérides de notáveis intérpretes e autores da Música Portuguesa, foi com surpresa, embora agradável, que verificámos ter sido adoptada atitude diferente ante as oito décadas de vida de Sérgio Godinho, atitude essa que se traduziu em cinco rubricas emitidas na semana finda e num programa alargado transmitido hoje mesmo após o noticiário das 13h:00, todos da autoria de João Gobern [>> RTP-Play]. Por lá passou um bom punhado de canções sergianas (em voz própria, evidentemente), entre elas os grandes hinos "A Noite Passada", "O Primeiro Dia" e "Com um Brilhozinho nos Olhos". Não obstante, atendendo à dimensão do artista e à importância da sua obra, pensamos que é curto: Sérgio Godinho merece mais. E esse "mais" podia muito ser uma série de programas retrospectivos, idealmente com a presença do próprio a falar sobre as várias fases do seu percurso artístico e, obviamente, a dizer o que lhe aprouvesse a respeito de umas quantas canções, designadamente as circunstâncias e as motivações que estiveram na sua génese...



Romance de um Dia na Estrada



Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Sérgio Godinho* (in EP "Romance de um Dia na Estrada", Guilda da Música/Sassetti, 1971; LP "Os Sobreviventes", Guilda da Música/Sassetti, 1972, reed. Philips/Polygram, 1990, Universal Music Portugal, 2001, 2019; 2LP "Era uma Vez um Rapaz": LP 1, Philips/Polygram, 1985; CD "Biografias do Amor", Universal Music Portugal, 2001)




Andava há já vinte dias
Ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos p'ra a morte
Um dia fraco, outro forte [bis]

[instrumental]

Quando um barulho de cama
A voltar-se de impaciente
Me fez parar de repente
Era noite e o casarão
Não tinhas lados nem frente
Dentro havia luz e pão
Me fez parar de repente [bis]

[instrumental]

Ó da casa, abram a porta,
Fiz as luzes se apagarem
Cheguei-me mais à janela
Vi acender-se uma vela
Passos de mulher andarem
E uma mulher muito bela
Chegou-se mais à janela [bis]

[instrumental]

Não tenhas medo, não trago
Nem ódio nem espingardas
Trago paz numa viola
Quase que não fui à escola
Mas aprendi nas estradas
O amor que te consola
Trago paz numa viola [bis]

[instrumental]

Meu marido foi p'ra longe
Tomar conta das herdades
Ela disse «Companheiro»
Eu disse «Vem», ela «Tu primeiro,
Tu que me falas de estradas
E eu só conheço um carreiro»
Ela disse «Companheiro» [bis]

[instrumental]

A contas com a nossa noite
Afundados num colchão
Entre arcas e um reposteiro
Descobrimos um vulcão
Era o mês de Fevereiro
E o Inverno se fez Verão
Descobrimos um vulcão [bis]

[instrumental]

E eu que falava de estradas
E só conhecia atalhos
E ela a mostrar-me caminhos
Entre chaminés e orvalhos
Pela manhã, sem agasalhos
Voltei a rumos sozinhos
E ela a mostrar-me caminhos [bis]

[instrumental]

Andarei mais vinte dias
Ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos p'ra a morte
Um dia fraco, outro forte [5x]


* Sérgio Godinho – voz
Gérard Crapoutchik – guitarra acústica

Produção e arranjos – José Mário Branco, com a contribuição de todos os músicos
Gravado no Strawberry Studio, Château d'Hérouville (arredores de Paris), em finais de Abril de 1971
Engenheiro de som – Gilles Sallé
Remasterizado a 24 bits nos Whitfield Street Studios, Londres, por Ray Staff (edição de 2001)
Textos sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007 e Altamont
URL: https://www.facebook.com/Sergio.Godinho.Oficial/
https://vachier.pt/sergio-godinho/
https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9rgio_Godinho
https://altamont.pt/sergio-godinho-a-queima-roupa/
https://www.youtube.com/@SergioGodinhoTV
https://www.youtube.com/channel/UCCUWcMFHuwlLu7y8cX1LyJg
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=sergio+godinho
https://music.youtube.com/channel/UC6NItFDCOUpxXVmOfvAD3Rg



Capa do EP "Romance de um Dia na Estrada", de Sérgio Godinho (Guilda da Música/Sassetti, 1971)
Concepção – Guilherme Lopes Alves



Capa do LP "Os Sobreviventes", de Sérgio Godinho (Guilda da Música/Sassetti, 1972)
Fotografia – Michel Morange
Concepção – Armando Alves



Capa da compilação em duplo LP "Era uma Vez um Rapaz", de Sérgio Godinho (Philips/Polygram, 1985)
Fotografia – Álvaro Rosendo
Grafismo – Jorge Colombo



Capa da compilação em CD "Biografias do Amor", de Sérgio Godinho (Universal Music Portugal, 2001)
Fotografia – Rita Carmo
Grafismo – Espanta Espíritos



Capa da 1.ª edição do livro "Canções de Sérgio Godinho"; estudo crítico e notas de Arnaldo Saraiva (Lisboa: Assírio e Alvim, 1977)
Arranjo gráfico – Manuel Rosa



Capa da 2.ª edição (actualizada) do livro "Canções de Sérgio Godinho"; estudo crítico, organização e notas de Arnaldo Saraiva (Col. Rei Lagarto, vol. 8, Lisboa: Assírio & Alvim, Dez. 1983)
Concepção – Manuel Rosa

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