«Trago uma proposta de exercício que talvez fortaleça a capacidade de decifração e de articulação de sinais quotidianos do andamento do mundo, através da leitura de um jornal. Talvez a proposta permita, sem uma metodologia rígida, ir além do descuidado e rápido folhear dos títulos mais garridos. É uma proposta para leitores mais desatentos ou desligados, aqueles a quem basta a rama da actualidade ou a actualidade rameira. No fundo, proponho aos leitores mais preguiçosos de jornais que repliquem, na sua relação frívola com o jornal diário, a experiência enriquecedora e, ainda por cima, divertida, dos alunos do 9.º e do 12.º anos do Agrupamento de Escolas de Cristelo, no concelho de Paredes, hoje relatada no JN.
Conta a reportagem de Mónica Ferreira o entusiasmo com que os alunos envolvidos no projecto MicroMundo se transformam em "verdadeiros cientistas", ajudando em ambiente laboratorial "na busca de um novo antibiótico", orientados por alunos universitários. Os alunos, "vestidos com batas brancas e de luvas", conta a repórter, "trabalham nas bancadas do laboratório, analisando as amostras de solos que trouxeram de casa, na esperança de obter um resultado promissor para a criação de um novo antibiótico". Uma aluna disse: "Foi incrível, descobri emoções que não tinha (…) e percebi que, se calhar, posso ter um futuro promissor nesta área". E outra aluna: "Foi muito divertido, foram aulas diferentes que nos ajudaram a conhecer mais. Sentimo-nos uns cientistas".
Regressemos à minha proposta de exercício. Vamos agora, jornal adiante, pescar uma outra notícia, uma outra reportagem, que possa dialogar com esta, que abra, com esse diálogo, uma linha de reflexão. Mal não faz, favorece até a literacia, ajuda a encadear fios que pareciam soltos.
Meto os dedos e os olhos ao caminho. Vinte páginas adiante, no mesmo JN de hoje, a notícia retirada de um estudo do Banco de Portugal ontem divulgado: "Só 11% dos filhos de pobres chegam ao Ensino Superior".
O estudo sobre a transmissão intergeracional da pobreza em Portugal conclui que a educação é uma espécie de via verde da má sorte.
O leitor de jornais mergulhado neste exercício, neste divertimento sério, tenderá a temer que o entusiasmo de Nadine e de Diana, as jovens do secundário de Cristelo, Paredes, venha a arrefecer no caminho estreito que possa esperá-las adiante.
Seria imperdoável. Até porque estamos muito precisados do antibiótico que elas se propõem criar, com tanta determinação.» [Fernando Alves, "Um exercício", in "Os Dias que Correm", 30 Mai. 2025]
Quando a escola não consegue cortar a transmissão intergeracional da pobreza significa que está a falhar na sua missão. Da escola pública espera-se muito mais do que a produção em massa de analfabetos funcionais, como tem acontecido em Portugal no último quarto de século...
Para rematar a crónica de Fernando Alves vinha muito a propósito a canção "A Escola", de e por Jorge Palma, originalmente publicada no álbum "Bairro do Amor" (1989) e, posteriormente (em 2000), incluída na compilação "Dá-me Lume: O Melhor de Jorge Palma". A Antena 1 não quis conceder essa "benesse" aos seus ouvintes/contribuintes, mostrando não os ter em especial conta, mas o blogue "A Nossa Rádio" preza em pautar-se pela atitude diametralmente oposta para com os seus estimados visitantes. Boa escuta!
A Escola
Letra e música: Jorge Palma
Intérprete: Jorge Palma* (in LP "Bairro do Amor", Philips/Polygram, 1989, reed. Philips/Polygram, 1998, Universal Music Portugal, 2014, 2015; CD "Dá-me Lume: O Melhor de Jorge Palma", Mercury/Universal Music Portugal, 2000)
[instrumental]
Eu nasci lá para os lados do rio
passava os dias a jogar à bola
mas eu não era excepção
e antes que desse por isso
já estava na escola
O programa elementar
entre o Euclides e o Arquimedes
mas sempre que a informação
dá uma volta no espaço
eu quero sintonizar
A escola ainda não acabou
há sempre tanta matéria a estudar
que eu chego mesmo a ter medo
de em qualquer momento
já não ter lugar
já não ter lugar
para mais conhecimento
Já consigo filosofar
sei uma ou duas palavras em grego
enquanto o tempo deixar
e a escola não se afundar
vou alterando o meu ego
Vou deixando as moscas pairar
vou vendo se o Godot já chegou
e quando me dá na tola
dou um chuto na bola
só p'ra me aliviar
A escola ainda não acabou
há sempre tanta matéria a estudar
que eu chego mesmo a ter medo
de em qualquer momento
já não ter lugar
já não ter lugar
para mais conhecimento
A escola ainda não acabou
há sempre tanta matéria a estudar
que eu chego mesmo a ter medo
de em qualquer momento
já não ter lugar
já não ter lugar
para mais conhecimento
mais conhecimento
[instrumental]
* Jorge Palma – voz, teclas
José Moz Carrapa – guitarra
Zé Nabo – baixo
Edgar Caramelo – saxofone soprano
Guilherme Inês – percussão
Joca de Sousa – bateria
«A notícia já tem uns dias, cinco ou seis, mas só agora desaguou no ecrã do meu computador. Para o que me interessa, vem mais do que a tempo. Procurando "combater a desinformação em matérias ambientais", conta a notícia, a biblioteca municipal de Bragança organizou no passado fim-de-semana uma caminhada que levou os participantes ao longo das margens dos rios Fervença e Sabor. O Fervença desce a serra da Nogueira até abraçar o Sabor, depois de bordejar Bragança onde um programa Polis o salvou dos esgotos urbanos e o Sabor é uma criatura mutante, por vezes rio, por vezes lago, plantado de santuários. Uma biblioteca pode e deve dizer aos seus frequentadores, neste caso alunos do Politécnico de Bragança e da Escola Abade de Baçal, "ali está o rio". Uma biblioteca pode e deve levar os seus leitores à margem do rio onde uma certa canção do Zeca colocou dois homens, um determinado a dar um passo, o outro não. Iniciativas como a da biblioteca de Bragança ajudam o poltrão a ser destemido, a dar o passo para a margem de lá, a colher o figo que, na canção, só o atrevido alcança. Procurai a canção, está no álbum "Enquanto Há Força". Procurai o rio.
Esta notícia interessa-me porque me insinua perguntas improváveis. Por exemplo: onde desagua uma biblioteca?
Uma biblioteca é um lugar onde se guardam livros e rios. Não apenas porque guarde livros que falam de rios. Mas porque é o lugar de onde se pode ir a qualquer parte navegando um rio ou um livro. Há rios que nascem nos livros.
Nas "Memórias Inventadas para Crianças", Manoel de Barros conta que, certo dia, a mãe lhe deu um rio. Foi isso no dia dos seus anos. O irmão deixou escapar algum ciúme, afinal o rio era o que passava atrás da casa e tinha por ele um igual desvelo. Então a mãe disse ao irmão de Manoel que, no dia dos seus anos, lhe daria, de prenda, uma árvore com pássaros. Dar um livro não é muito diferente.
Os rios, tal como os livros, são capazes de nos surpreender e de nos desconcertar. Li, por estes dias, sobre um rio, algures no Brasil, que corre ao contrário. E sobre outro que corre nos dois sentidos, como se tivesse duas faixas de água, com um talvez caótico trânsito de peixes (isso não apurei). E li que quando o Paquistão e a Índia desatinaram gravemente na linha de fronteira, o primeiro-ministro indiano ameaçou cortar a água dos rios que correm da Índia para o Paquistão.
Cortar a água de um rio é como proibir um livro ou fechá-lo de tal modo que não possa desaguar no leitor.» [Fernando Alves, "Onde desagua uma biblioteca?", in "Os Dias que Correm", 29 Mai. 2025]
«[...] "ali está o rio" [...] rio onde uma certa canção do Zeca colocou dois homens, um determinado a dar um passo, o outro não. [...] Procurai a canção, está no álbum "Enquanto Há Força".»
A recomendação formulada por Fernando Alves não se dirige somente aos seus ouvintes. Nela está implicitamente expresso (para bom entendedor meia palavra basta) o desejo de que a Antena 1 transmitisse a canção logo a seguir à crónica, bastando antecipar esta em cerca de 3 minutos. Mesmo tendo recebido o áudio da crónica com suficiente tempo de antecedência, Ricardo Soares não se quis dar ao singelo trabalhinho de pedir a alguém que lhe trouxesse o referido CD para pôr a tocar a faixa n.º 4. Isto, claro está, se não tinha à mão o respectivo ficheiro áudio em WAVE, FLAC, MP3 ou noutro formato compatível com o sistema de reprodução em uso na rádio pública. O seu chefe, Nuno Galopim de Carvalho, se acaso não estava ainda a dormir e sabendo que o seu subalterno não é indivíduo para esforços, por mais pequenos que sejam, que vão além do rame-rame maquinal a que se habituou e que parece satisfazê-lo, podia muito bem enviar-lhe o ficheiro áudio juntamente com a instrução de que devia reproduzi-lo a seguir à crónica. Enfim!... Mais uma vez, a Antena 1 pecou por omissão e em algo que era bem simples de fazer para conferir ao serviço a qualidade que os ouvintes/contribuintes merecem e desejam.
Eis, pois, a bela canção "Ali Está o Rio" que José Afonso gravou em 1978 para o álbum "Enquanto Há Força", mas que fora originalmente concebida em Moçambique, no ano de 1966, a fim de ser cantada na representação, pelo Teatro de Amadores da Beira, da peça "A Excepção e a Regra", de Bertolt Brecht, na tradução feita por Luiz Francisco Rebello. Boa escuta!
Ali Está o Rio
Letra: José Afonso, a partir da versão portuguesa, por Luiz Francisco Rebello, da peça "A Excepção e a Regra", de Bertolt Brecht (levada à cena pelo Teatro de Amadores da Beira, Moçambique, em 1966)
Música: José Afonso
Intérprete: José Afonso* (in LP "Enquanto Há Força", Orfeu, 1978, reed. Movieplay, 1987, 1996, Art'Orfeu Media, 2013, Mais Cinco, 2023)
[instrumental]
Ali está o rio,
Dois homens na margem estão;
Se um dá um passo, o outro hesita... | bis
Será um valente? O outro não? |
Bom negócio faz um deles,
Tem o triunfo na mão;
Do outro lado do rio | bis
Só um come o fruto, o outro não. |
[instrumental]
Ao outro, passado o p'rigo,
Novos castigos virão;
Se ambos venceram o rio, | bis
Só um tudo ganha, o outro não. |
Na margem já conquistada,
Só um venceu a valer;
Perdeu o outro a saúde, | bis
Mas nada ganhou p'ra viver. |
[instrumental]
Quem diz "nós" saiba ver bem
Se diz a verdade ou não;
Ambos vencemos o rio, | bis
A mim quem me vence é o patrão. |
[instrumental]
* [Créditos gerais do disco:]
Voz – José Afonso
Percussões – Michel Delaporte, Pintinhas, Guilherme Scarpa
Guitarra eléctrica – Fausto Bordalo Dias
Guitarras acústicas – Fausto Bordalo Dias, José Luís Iglésias
Violino – Carlos Zíngaro
Guitarra portuguesa, cistre, viola e alaúde – Pedro Caldeira Cabral
Flautas – Rão Kyao, Manuel Guerreiro
Clarinetes – João Rodrigues, João Magalhães
Harmónica de acordes e harmónica baixo – Ermenegildo, José Luís
Baixos – Luís Duarte, Paulo Godinho
Acordeão – Dimas Pereira
Coros – Yório Gonçalves, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho, Fausto, Alfredo Vieira de Sousa, Cecília, Grupo de Cantigas do Centro Cultural da Anadia
«A Lição de Salazar, cartaz de uma série editada em 1938 pelo Secretariado de Propaganda Nacional, a fim de ser comentada pelos professores nas escolas primárias. A "pedagogia" salazarista, que comemorava os 10 anos de governo do chefe, enaltecia a sua obra e os valores supremos do regime.
Neste cartaz, de Martins Barata, ergue-se num cenário rural, a família típica do salazarismo, uma família remediada, se não pobre, trabalhadora e religiosa. A família representada vai ao encontro de todos os ideais salazaristas, ao apresentar uma casa humilde, asseada, de pessoas pobres, mas felizes.
Os pratos estão encostados ordenadamente à parede (organização social); os instrumentos de lavoura arrumados a um canto; a mesa posta com o pão e o vinho sobre uma toalha alva; Deus está presente no altar familiar, instalado no melhor móvel da casa; a Pátria divisa-se através da janela, no castelo que exibe a bandeira nacional e na própria farda da Mocidade Portuguesa envergada pelo filho (fardado de Lusito). A autoridade surge na figura do chefe de família, que, ao fim de um dia de trabalho, regressa a casa e conta com a alegria da filha (a pequenita que brincava com louças e bonecas para um dia ser uma mãe exemplar, ergue os braços de contentamento), a reverência do filho, que se ergue para o saudar, e a subserviência da esposa, qual mulher ideal, confinada ao lar e à economia doméstica.
Através da interpretação destes pormenores, verificamos que o cartaz reflecte um lar cristão, patriarcal, rural, tradicional, sem utensílios de modernidade, onde não existe nenhuma referência ao mundo industrial.»
«Muitos talvez não saibam, outros esqueceram-se depressa. Uns não viram, não estavam lá; outros nem terão querido saber, não os aquece nem os arrefece que tenha sido assim ou que tenha sido assado.
Este livro de Fernanda Cachão, "O Estado Novo em 101 objectos", vem sacudir o esquecimento mais pusilânime dos da memória curta. E vem confrontar os perversos da memória táctica com a confirmação documental das pequenas misérias e das grandes afrontas de um tempo de sombras, de medos, de rédeas curtas. Vem mostrar a todos, os distraídos, os frívolos, os negligentes, a iconografia da ditadura, a montra e o armário sobre os quais assentaram a poeira e o esquecimento. E aos que sabiam e não se esqueceram, acrescenta informação valiosa, pérolas preciosas. Fernanda Cachão andou cinco anos a desbravar arquivos históricos, museus, bibliotecas, fundações, colecções particulares e reuniu as provas provadas, os documentos, os carimbos, os objectos, que sustentam a história, assumida ou subterrânea, de um tempo de sombra.
Temos neste livro 101 objectos explicados, enquadrados, em mais de 600 páginas. Esta é uma narrativa ágil, contagiante, poderosa, sobre um tempo de astenia. Dá-nos a ver e reúne, a respeito de cada objecto que mostra, o contexto necessário. Mostra-nos, por exemplo, a foto da única sessão em que Salazar posou para o escultor Francisco Franco que lhe fez o busto sob o olhar de António Ferro, o homem forte da propaganda do regime. Mostra-nos o maço de cigarros AC, o "tabaco dos soldados", como era designado, fabricado em Angola com o carimbo das Forças Armadas, e revela os curiosos trocadilhos inspirados nas iniciais da marca. Mostra-nos os cartazes de propaganda criados para assinalar nas escolas o 10.º aniversário da ditadura, as designadas "lições de Salazar", para meninos e meninas perfilados. Mostra-nos a Chaimite, o carro blindado da guerra colonial, copiado do catálogo norte-americano. Mostra-nos os aerogramas que traziam as saudades dos nossos pais. Mostra-nos a primeira página do "Diário da Manhã", o jornal do regime, no dia em que Américo Thomaz foi em visita ao Algarve acudir às dores de um tremor de terra sobre o qual, de informação, nicles. Mostra-nos o Chrysler de Salazar no qual se evadiram de Caxias vários prisioneiros comunistas; e a carta de Lúcia que Cerejeira enviou a Salazar; e as senhas de racionamento; e o imposto dos presos (sim, havia um imposto de carceragem: no final dos anos 30, os presos pagavam pelo alojamento, a tabela ia dos 20 centavos para a enxovia aos 20 escudos para o quarto individual); o discurso do presidente Craveiro Lopes censurado por Salazar; o livro de António Botto na biblioteca do ditador; o chapéu, as botas e a bengala de Salazar; o edital sobre a moral nas praias, surgido em 1941, evocando a Constituição para legislar sobre os "vestidos de banho"; a lista dos assinantes da revista "Seara Nova"; o prato usado pelos presos políticos de Peniche; o cartaz das tabernas, com o elogio do vinho que dava de comer a um milhão de portugueses; a pauta do hino e a farda da Mocidade Portuguesa; o lápis da censura...
Um ensaio recentemente realizado numa universidade inglesa confirmou que pessoas expostas ao aroma do alecrim obtiveram melhores resultados em testes de memória do que outras expostas ao ar neutro. Este livro de Fernanda Cachão, "O Estado Novo em 101 objectos" tem a eficácia do alecrim em dose reforçada.
Não vos desaconselho o cheio do alecrim. Aconselho-vos vivamente o aroma destas páginas. O livro é apresentado hoje, 28 de Maio. A data diz-vos alguma coisa ou precisais de alecrim aos molhos?» [Fernando Alves, "O Estado Novo em 101 objectos", in "Os Dias que Correm", 28 Mai. 2025]
Para rematar a crónica que Fernando Alves achou por bem trazer à antena no presente 28 de Maio, data em que se completaram 99 anos sobre o golpe militar que derrubou a Primeira República e instaurou uma ditadura castrense que dois anos mais tarde, em 1928, fez sentar Oliveira Salazar na cadeira do poder, como ministro das Finanças, e, em 1932, como presidente do Ministério (cargo que o próprio renomearia como presidente do Conselhos de Ministros), não nos ocorre escolha mais apropriada do que o sublime poema "Queixa das Almas Jovens Censuradas", de Natália Correia. Apresentamo-lo aqui em dois registos: um recitado (pela autora, com música de António Victorino d'Almeida, que saiu no LP "Improviso", 1973) e outro cantado (por José Mário Branco, com música da sua autoria, que integra o primeiro álbum do cantautor, "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", 1971).
Qualquer uma destas gravações ou outra interessante do mesmo poema teria certamente sido bem recebida por Fernando Alves, até como sinal de reconhecimento e valorização do seu esmerado e admirável trabalho por parte de quem manda na Antena 1, e escutada com imenso agrado pelos ouvintes não nostálgicos do tacanho e opressivo Estado Novo ou não (inconscientemente) desejosos da implantação de um regime inspirado naquele, e que por nada deste mundo estão dispostos a prescindir da «Liberdade querida e suspirada,/ Que o Despotismo acérrimo condena» (citando Bocage).
QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Poema de Natália Correia (in "Dimensão Encontrada", Lisboa: Edição da autora, 1957; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 167-168; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 121-122)
Recitado pela autora* (in LP "Improviso", Guilda da Música/Sassetti, 1973; CD "Natália Correia: Poemas Ditos (e até Cantados) pela Autora", CNM, 2011)
Música: António Victorino d'Almeida
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.
Poema: Natália Correia (in "Dimensão Encontrada", Lisboa: Edição da autora, 1957; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 – p. 167-168; "Poesia Completa", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999 – p. 121-122)
Música: José Mário Branco
Intérprete: José Mário Branco* (in LP "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", Guilda da Música/Sassetti, 1971, reed. UPAV, 1991, EMI-VC, 1996, Parlophone/Warner Music Portugal, 2018; CD "Natália Correia: A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003)
[instrumental]
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
Mais um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.
* José Mário Branco – voz e viola acústica de base
Willy Lockwood – contrabaixo
Gilbert Roussel – acordeão
Capa do livro "Dimensão Encontrada", de Natália Correia (Lisboa: Edição da autora, 1957)
Sobrecapa do livro "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I", de Natália Correia (Lisboa: Círculo de Leitores, 1993)
Concepção – Clementina Cabral
Capa da 1.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999)
Capa da 2.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000)
Capa da 3.ª edição do livro "Poesia Completa", de Natália Correia (Col. Poesia do Século XX, Vol. 32, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007)
Capa do LP "Improviso", de Natália Correia e António Victorino d'Almeida (Guilda da Música/Sassetti, 1973)
15 poemas ditos/entoados por Natália Correia: treze da sua autoria e dois de trovadores galego-portugueses por si adaptados.
Música e execução instrumental (teclados, percussão) – António Victorino d'Almeida
Capa do CD "Natália Correia: Poemas Ditos (e até Cantados) pela Autora" (Série 'Audiobook', CNM, 2011)
O conteúdo é o mesmo do LP "Improviso" (1973)
Capa do LP "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco (Guilda da Música/Sassetti, 1971)
Concepção – Armando Alves e José Rodrigues
Capa da compilação em CD "Natália Correia: A Defesa do Poeta" (EMI-VC, 2003)
Capa do livro "O Estado Novo em 101 Objectos: Uma Montra da Ditadura Portuguesa", de Fernanda Cachão (Alfragide: Lua de Papel, Mai. 2025)
«Num poema em que fala de um Ulisses farto de prodígios, chorando de amor "ao divisar a Ítaca / verde e humilde", uma Ítaca que seria, afinal, "a própria arte", Jorge Luis Borges chama a nossa atenção para o que um espelho nos pode devolver, poço sem fundo de uma alteridade desconcertante: "Às vezes certas tardes uma cara/ olha-nos do mais fundo dum espelho;/ a arte deve ser como esse espelho/ que nos revela a nossa própria cara" – uso a tradução de Ruy Belo, na selecção de poemas escolhidos do argentino que o próprio Ruy Belo organizou para a Dom Quixote, no início da década de 70.
Borges ocupou-se muito de espelhos e do inesperado que eles podem devolver-nos, incluindo a margem do grotesco e do fantasioso com que nos surpreende no "Livro dos Seres Imaginários". Ruy Belo deu-nos a ver os rostos, "o inesgotável rosto" de que fala no primeiro poema de Outono, a nossa cara de andar na rua, a enorme responsabilidade de que se reveste a circunstância de termos cara.
A todo o tempo, alguém nos diz, a respeito de um objecto, de uma vestimenta, de uma ocupação mais ou menos trivial: "é a tua cara". Não é a isso, a esse modo de dizer que afinal pouco diz, não é a isso que pretendo chegar.
Tomemos que os jornais espalhados sobre a mesa são espelhos, de outra maneira. Folheamo-los, não tanto em busca de Ítacas verdes, mas de rostos que nos acrescentem uma explicação do mundo ou, vá lá, uma perplexidade que desenhe uma pergunta, um sentido, um pé atrás, uma incredulidade. Nos jornais de hoje, os desta manhã, ainda escondida no seu próprio insólito, a pergunta que tornou um vídeo viral, espelho sem fundo de um voyeurismo que precisa de ser alimentado, a mão de Brigitte na cara do marido presidente, à saída de um avião na pista de Hanói. O que foi aquilo, espelho nosso, uma bofetada ou, como explicou, o Eliseu, um gesto de cumplicidade? E o que é aquilo, no rosto de Jacinta, avó de dois rapazes levados pelo mar, na capa do JN? São talvez lágrimas, senhor. E que pedem tantos banqueiros, de cara fechada, sentados na capa do DN? Pedem estabilidade e medidas, diz a tituleira. E a cara de Marcelo, ao que vem, na última do Negócios? Vem admitir que indigita. Não tarda, indigita.
Não te aproximes entretanto demasiado da foto de capa do Público. Ela é, entre todas as que povoam as capas de jornais portugueses, esta manhã, a que mais se confunde com a ideia de espelho. Tem cuidado, afasta de ti o jornal, mantém uma distância cautelar de segurança durante a leitura. Esta criança que parece fitar-te na foto premiada de Haitham Imad, da agência EPA, já nem mexe da face um músculo, já nem insinua um gesto na tua direcção. O rosto tem estampada uma palidez cadavérica, os braços e as pernas estão pousados numa esqualidez que abraça já a morte, uma das mãos suspensa como se pedisse a tua mão ainda, a minha mão ainda, o olhar parecendo saltar da órbita para um abismo insondável. Não olhes muito de perto este rapaz de Gaza, ele pode morrer por um euro e sessenta sobre a tua mesa, ao lado do teu café da manhã, bofetada ou apenas a mão que quer pousar, cúmplice na tua cara, o que fica suspenso da mão desta criança que parece saída de um livro dos seres imaginários... Não olhes muito de perto, o espelho que devolve a tua cara.» [Fernando Alves, "Espelhos na primeira página", in "Os Dias que Correm", 27 Mai. 2025]
A fotografia deveras chocante do rapaz faminto de Gaza cujo olhar macilento interpela a nossa passividade, para a qual Fernando Alves fez questão de chamar a atenção dos seus ouvintes (e cumpre-nos enaltecer esse gesto cívico e humanista), remete-nos para os corpos esqueléticos dos prisioneiros, mal se sustendo em pé, quando foram libertados dos campos de concentração nazis pelas tropas aliadas em 1945. Oitenta anos volvidos o Holocausto reedita-se, só que agora em lugar daqueles que Hitler queria erradicar – judeus, ciganos, homossexuais, comunistas – está o povo palestino de Gaza, sequestrado no gigantesco campo de concentração em que o território onde sempre viveu foi transformado. E no lugar dos carrascos hitlerianos estão presentemente os descendentes dos tais judeus de aspecto famélico e cadavérico que horrorizou as pessoas de bem que viram aquelas imagens aterradoras. Mas há uma diferença de monta entre os dois momentos históricos: em 1945 o mundo desconhecia que na Alemanha nazi e em alguns países ocupados havia campos de extermínio de seres humanos; hoje, apesar do enorme condicionamento do trabalho dos jornalistas na Faixa de Gaza pelo criminoso estado sionista, o mundo sabe que os filhos daquela terra na orla oriental do Mediterrâneo estão a ser dizimados pelas bombas e pela fome. Manifestações de repúdio e de contestação por gente anónima e figuras públicas respeitáveis têm-se sucedido na Europa e na América, mas sem que os dirigentes políticos dos países com poder para estancar o genocídio do povo palestino procedam em conformidade. Trump, Ursula von der Leyen, Keir Starmer, Macron e Friedrich Merz são acaso dotados de consciência? Se um resquício da dita ainda houver dentro das respectivas caixas cranianas, como é o sono deles depois de verem imagens como a supra-estampada?
Para epílogo musical à crónica de hoje, uma boa escolha seria a peça instrumental com vocalizos "Palestina", de e por Janita Salomé, que fecha o alinhamento do álbum "A Cantar ao Sol", editado em Novembro de 1983 pela EMI-Valentim de Carvalho. Aqueles impressivos vocalizos de Janita de há mais de 40 anos equivalem hoje aos gritos agonizantes do martirizado povo palestino às mãos de um hediondo facínora chamado Netanyahu, ante a contemporização criminosa dos que mandam nos países que instituíram os direitos humanos. Suprema e inquietante incoerência!
Na Palestina
Música: Janita Salomé
Arranjo: Janita Salomé
Intérprete: Janita Salomé* (in LP "A Cantar ao Sol", EMI-VC, 1983, reed. EMI-VC, 1995)
(instrumental / vocalizos)
* Janita Salomé – tamboril da Provença, tam-tam, daadô, coro
Carlos Zíngaro – violino
Júlio Pereira – viola braguesa
«O grupo Terra Velhinha foi ao Sardoal dinamizar uma "oficina de cana rachada". Fiz o teste aqui entre a gente boa das notícias. Se vos disser "cana rachada", de que estarei a falar? E todos à uma, afinados na pronta resposta: "estarás a falar de uma voz desafinada". Era o que eu diria, voz aguda, agreste como unha gutural a raspar no vidro, voz desafinada.
Ora, a Terra Velhinha é a Azambuja e a cana rachada é um instrumento de percussão muito utilizado na lezíria ribatejana. Já tinha visto em função tocadores deste instrumento, mas não lhe conhecia o nome.
Mas o jornal "Médio Tejo" chama-nos para a oficina realizada no Sardoal. Está o jornal cheio de tambores e de flautas e de canas acabadas de talhar. Já tenho com que entreter os olhos e os outros sentidos. Vou pois pelo ecrã até ao canavial onde João Paulo Costa, unanimemente considerado um "virtuoso" da cana rachada, escolhe, afaga e talha, a golpes de canivete, a cana pronta para a função. Em poucos minutos está pronto o idiofone que marcará compasso e ritmo das modas da Lezíria.
Estou agora a aprender com a entrevista de Miguel Ouro ao sítio "Portugal num Mapa", há coisa de cinco anos. Miguel é um dos pilares do projecto Terra Velhinha e fala das canas com uma simplicidade sábia. Palavras de Ouro: "As canas, no canavial, falam com o tocador; por isso o tocador sabe quais as canas que estão prontas para ser tocadas".
Lembro-me de um poema de Ferreira Gullar, sobre o açúcar com que adoça o café em Ipanema. Esse açúcar, lembra o poema, "veio dos canaviais extensos/ que não nascem por acaso/ no regaço do vale./ Em lugares distantes onde não há hospital/ nem escola,/ homens que não sabem ler e morrem de fome/ aos 27 anos/ plantaram e colheram a cana/ que viraria açúcar".
Não assim estes canaviais de Aveiras de Cima ou da Azambuja. As canas que hão-de ser rachadas com a arte fina da navalha, são canas para o vento, para a batida do vento, castanholas de vento esguias, ao vento dançam, no vento se fazem batida, nas mãos em concha, no corpo feito tambor, chamando para a festa o pote e o cavaquinho.
Entretanto encontro noutra janela de conversa mestre Filipe Carapinha, do grupo de Aveiras de Baixo para o qual fez, com o seu canivete, quase trezentas canas rachadas, com canas que apanhou num caniçal junto a um curso de água. São as melhores para a função, acredita e garante o mestre de Aveiras. "A boa irrigação dá canas mais fortes e resistentes". Mais explica que a cana deve ser retirada do canavial nem muito verde nem muito seca. Só assim será uma cana rachada perfeita. É sabedoria muito próxima daquele que podemos colher no poema de João Cabral de Melo Neto sobre o que o mar, sim, aprende do canavial, e o canavial, sim, aprende do mar. O poema explica, também, o que não aprendem. É como as vozes, as de cana rachada.
Desaprenderam de ser vozes, talvez por vento a mais.» [Fernando Alves, "Oficina de cana rachada", in "Os Dias que Correm", 26 Mai. 2025]
A esta crónica que Fernando Alves teve a mui louvável ideia de consagrar à cana rachada, ficou a faltar um trecho ilustrativo da sonoridade daquele instrumento de percussão típico da Azambuja. Se não estava à mão uma gravação publicada em disco – idealmente uma versão instrumental de um fandango ribatejano – na qual o ritmo seja marcado pela cana rachada e se ouça bem, podia respigar-se um trecho do videograma apresentado no sítio "Portugal num Mapa" referido pelo cronista e cujo autor é o mencionado animador Miguel Ouro. Estamos em crer que ele não levantaria objecções a tal, fosse ou não possível a Antena 1 contactá-lo em tempo útil para lhe solicitar permissão...
Aqui fica, pois, o interessantíssimo mini-documentário que Miguel Ouro em boa hora decidiu produzir para divulgação do instrumento musical azambujense cana rachada.
Cana Rachada d'Azambuja
Assista neste mini-documentário à construção dum instrumento de percussão emblemático das Terras Azambujenses. A cana rachada é um daqueles instrumentos improvisados e feitos a partir dos recursos naturais existentes. Uma simples cana de caneira transforma-se em alguns minutos num belíssimo instrumento rítmico de acompanhamento musical com uma sonoridade idêntica às castanholas ou patas de cavalo. É um produto típico de Azambuja e apesar de aparentemente ter uma manufacturação e manuseio simples, esta prática requer já alguma técnica. Na segunda parte do mini-doc observe as potencialidades rítmicas da cana rachada d' Azambuja com outros instrumentos de percussão e também com o cavaquinho e o harmónio. Destaque para o melhor tocador de cana rachada português e provavelmente do Mundo, João Paulo Mota que nos mostra o seu desempenho musical através duma cana-da-índia que tem desde 1988. Mais uma produção MOA a captar o melhor do que se faz numa terra velhinha de talentos artísticos e capacidades ilimitadas. Assim saibamos preservá-las.
Uma produção MOA com realização ZDT. Miguel Ouro