12 março 2025

Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)


Camilo Castelo Branco, em 1882, aos 57 anos de idade
© União - Photographia da Casa Real-Porto
(in https://commons.wikimedia.org/)


«Notícia breve na primeira página do Diário de Lisboa de 12 de Março de há cem anos: Comemorando o centenário de Camilo, haverá na próxima segunda-feira tolerância de ponto nas repartições públicas e feriado nos estabelecimentos oficiais de ensino".
Na véspera o mesmo jornal anunciara que a 16 seria posto à venda "um interessante opúsculo intitulado 'Paisagem nas Obras de Camilo e Eça', com um retrato e uma carta autógrafa de Camilo, de que é autor o brilhantíssimo jornalista e homem de letras Bourbon e Menezes".
Cem anos volvidos, o concelho de Baião, onde a ficção queirosiana se fez pedra e geografia em Tormes, identifica no território marcas da presença de Camilo. E elas são várias, não apenas num certo palacete da Teixeira, onde se acolheu a "Doida do Candal". São tantas as pegadas do andarilho de tanto Norte, cuja liteira parou mais do que uma vez em Ovelhinha, em trânsito para Amarante. Nessa aldeia incendiada pelos franceses nasceu o pão de Padronelo, cuja fama ainda hoje persiste. Mas por certo não existirá a mesa onde Camilo fez sentar as personagens de "O Santo da Montanha". Foi nessa dobra de uma jornada e de uma novela que D. José de Noronha, fidalgo de pouca etiqueta, interrompeu a "estridente mastigação", cuidando de saber se a prima Mécia já havia provado galinha mourisca. A receita com que Camilo nos presenteia talvez seja recriada pelo chef António Pinto numa das noites de tertúlia que se anuncia para o mosteiro de Ancede, no último fim-de-semana do mês.
Nessa tertúlia participará o investigador Jorge Sobrado, vice-presidente da CCDR-Norte para a Cultura e reconhecido camilianista, que acaba de anunciar "um dilúvio editorial" a pretexto do bicentenário daquele a quem Teixeira de Pascoaes apelidou de "Penitente". Sobrado anunciou a reedição de 14 obras de Camilo, na sequência do ressurgimento de "No Bom Jesus do Monte" e desafiou os parceiros do projecto agora posto em marcha a devolverem as obras de Camilo "às ruas, às praças, aos cafés, às escolas, às bibliotecas e às livrarias", de tal modo que todos, os que leram e os que não leram "Eusébio Macário" ou "A Queda d'um Anjo", esbarrem em Camilo.
Talvez numa das noites de tertúlia alguém replique aquela fala do fidalgo de mais apetite que maneiras: "Meus amigos, nada de engulhos! É comer o que aparece e fazer de conta que a barriga é alforge de pedinte". Será coisa para o chef António Pinto mandar servir um pudim à madre Paula, iguaria do receituário camiliano. E pode ser que Etelvina, repetindo as noites de Lamego, decida comer o pastel. Enfim, já misturo ficção com apetite, o que for soará.
Então e no bicentenário não há, como houve no centenário, tolerância de ponto nas repartições públicas, nem feriado nos estabelecimentos de ensino? Admito que tal pergunta ocorra a muitos. Guardai, entrementes, a moção de censura. Desta vez, o 16 de Março calha a um domingo. E se o dilúvio encher a arca de leitores, no tricentenário vai ser um fartote.» [Fernando Alves, "Coisas espantosas", in "Os Dias que Correm", 12 Mar. 2025]


Foi sobretudo como ficcionista (romancista e novelista) que Camilo Castelo Branco se tornou uma das maiores glórias da Literatura (de Língua) Portuguesa. Bem menos conhecida e cultivada é a sua poesia, na qual se conta o soneto de acentuado cunho autobiográfico "Os Meus Amigos", escrito pouco tempo antes de se suicidar, quando, já cego, se viu abandonado pelos numerosos amigos "tão serviçais, / Tão zelosos das leis da cortesia" que anteriormente o reverenciavam em vénias de "curvaturas vertebrais". Publicado postumamente, no n.º 11 da "Revista Illustrada", datada de 15 de Setembro de 1890, o poema viria a cativar outro poeta, que é também compositor e intérprete, de seu nome Afonso Dias, que o musicou e gravou duas vezes: originalmente, para o seu primeiro álbum, o LP "O Que Vale a Pena" (Diapasão/Sassetti, 1979) e, depois, para o CD "Geometria do Sul" (Edere, 2002). Destacamos aqui a segunda gravação, que Fernando Alves – é nossa firme convicção – teria gostado de escutar como remate poético-musical à sua crónica de hoje quando foi radiodifundida pela Antena 1. E os ouvintes, na sua maioria, também teriam decerto apreciado serem presenteados com este mimo, se a rádio que pagam os tivesse em boa consideração.
A talhe de foice, outra nota: à parte a presente crónica da pessoalíssima iniciativa do seu autor, ainda nada nos constou na Antena 1 (bem como nas Antena 2 e 3) em matéria de evocações camilianas. Nesta semana que antecede o dia do bicentenário do nascimento de uma tão proeminente figura da Cultura Portuguesa era normal e expectável que a sua memória fosse devidamente honrada pelos vários canais da estação pública de rádio. Esqueceram-se? Ou não têm real noção de quem foi Camilo Castelo Branco?



Os Amigos



Poema: Camilo Castelo Branco (ligeiramente adaptado) [poema original >> abaixo]
Música: Afonso Dias
Intérprete: Afonso Dias* (in CD "Geometria do Sul", Edere, 2002)




[instrumental]

Amigos cento e dez, ou talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que sentia!
Supus que sobre a Terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente [bis]
Que não desfez os laços quase rotos.

— Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver... [bis]
Que cento e nove impávidos marotos!

[instrumental]

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente [bis]
Que não desfez os laços quase rotos.

— Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver... [bis]
Que cento e nove impávidos marotos!


* Afonso Dias – voz
Paulo Ribeiro – teclas, sintetizadores

Gravado no Estúdio InforArte, Chinicato - Lagos
Técnicos de som – Fernando Guerreiro e Joaquim Guerreiro
Mistura – Afonso Dias e Fernando Guerreiro
URL: https://www.algarvios.pt/members/afonso-dias/info/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Dias
https://www.facebook.com/afonso.dias.31
https://www.youtube.com/@afonsodias4584/videos
https://music.youtube.com/channel/UCChoajupsYfGsG5uIGj8XMA



OS MEUS AMIGOS

(Camilo Castelo Branco, in "Revista Illustrada", Lisboa, Ano 1, N.º 11, 15 Set. 1890 – p. 123)


Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

— Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos!



Capa do CD "Geometria do Sul", de Afonso Dias (Edere, 2002)
Fotografia – Telma Veríssimo
Arranjo gráfico – A. Dias, J. Guerreiro, F. Guerreiro

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Outro artigo com poesia de Camilo Castelo Branco:
Belaurora: "Saudade" (Camilo Castelo Branco)

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Outros artigos com repertório de Afonso Dias:
Galeria da Música Portuguesa: José Afonso
Amália: dez anos de saudade
A infância e a música portuguesa
Ser Poeta
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Al-Mu'tamid: "Evocação de Silves"
Cesário Verde: "De Tarde"
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Camões recitado e cantado (VI)
Natália Correia: "A Casa do Poeta", por Afonso Dias
Afonso Dias: "Dieta Algarvia"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
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