
(in https://www.hospitaldaluz.pt/)
«Soube-se recentemente que, pela primeira vez na História, um homem saiu de um hospital caminhando sem coração. Aconteceu na Austrália. O homem viveu mais de três meses com um coração de titânio, até chegar o dia do transplante e poder sentir de novo o batimento do "pedaço de carne inexplicado", se posso usar o modo como a grande Yourcenar se referiu ao músculo que nos bate no peito.
Há tipos que ameaçam falar-nos com "o coração nas mãos". É uma bengala tão frequente como aquela que leva os editores de notícias a dizerem dos temas destacados no alinhamento que eles estão "em cima da mesa". Os seus entrevistados tentam escapar ao cerco das perguntas argumentando que o tema não "está em cima da mesa". É uma expressão que me irrita particularmente, embora não me faça cair o coração aos pés.
O cientista Rómulo de Carvalho tratou deste caso na sua circunstância de poeta António Gedeão. No "Poema do Coração" ele começa por lamentar não poder falar-nos com o coração nas mãos. "Mas o meu coração é como o dos compêndios/ Tem duas válvulas (a tricúspide e a mitral) / e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos)".
Lembrei-me do homem que caminhou com o seu coração de titânio e lembrei-me do coração poético de Gedeão, lendo hoje no "El País" a entrevista com Natalia Trayanova, biofísica e especialista em cardiologia computacional numa universidade norte-americana. O jornal apresenta-a como "criadora de corações virtuais", explicando que ela cria "gémeos digitais" para cada paciente e que isso facilita cirurgias em casos de problemas cardíacos graves.
Já não posso conversar, de novo, com o gentil, ainda que austero, professor Rómulo de Carvalho a quem entrevistei há muitos anos, coração aos saltos, na sua qualidade de poeta António Gedeão. Talvez ele me respondesse diferentemente do poema: "Por vezes acontece/ ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados / e uma lâmina baça e agreste, que endurece/ a luz dos olhos em bisel cortados. / Parece então que o coração estremece./ Mas não./ Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,/ que esse vento que sopra e ateia os incêndios/ é coisa do simpático./ Vem tudo nos compêndios".
Procurei pegadas anteriores da mesma investigadora Natalia Trayanova. Há uns dois anos, ela procurava uma luz que incidisse no coração e pudesse substituir os choques dos desfibrilhadores e do bypass.
Pareceu-me poético, ela falava afinal de uma luz que seria transportada até ao coração por fibra óptica, alta engenharia, aguenta, coração.
Mas logo os últimos versos do poema me chamam para a realidade: "Então, meninos!/ Vamos à lição!/ Em quantas partes se divide o coração?"» [Fernando Alves, "Corações virtuais", in "Os Dias que Correm", 25 Mar. 2025]
Entre os que escutaram a crónica, aquando da radiodifusão, hoje de manhã, os amantes de poesia, pelo menos, depois de ouvirem Fernando Alves citar versos do "Poema do Coração", teriam certamente apreciado que a Antena 1 os presenteasse com a transmissão do poema completo, preferencialmente dito pelo autor, logo que o cronista se calasse. Mais uma vez, e infelizmente, Nuno Galopim de Carvalho e o seu homem de mão, Ricardo Soares, não mexeram uma palha, mostrando a desconsideração em que têm quem lhes paga o salário.
Eis, pois, o "Poema do Coração", de António Gedeão, na voz do autor. O registo saiu primeiramente no EP "A Poesia de António Gedeão dita pelo Autor" em 1969 (Colecção 'A Voz e o Texto', Decca/VC) e teve reedição em disco compacto no ano de 2018 pelas Edições Valentim de Carvalho no âmbito da colecção "...Dizem os Poetas". Boa escuta!
Poema do Coração
Poema de António Gedeão [in "Linhas de Força", Coimbra: Edição do autor, 1967 – p. 9-10; "Poesias Completas (1956-1967)", Col. Poetas de Hoje, N.º 17, 2.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1968 – p. 235-236, 5.ª edição, Lisboa: Portugália Editora, 1975 – p. 235-236; "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997 – p. 58-59; "Poesia Completa", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997; Obra Poética", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 2001; "Obra Completa", Lisboa: Relógio d'Água Editores, 2004, 2007, 2022]
Recitado pelo autor (in EP "A Poesia de António Gedeão dita pelo Autor", Col. 'A Voz e o Texto', Decca/VC, 1969; CD "António Gedeão", Col. '...Dizem os Poetas', Vol. 3, Edições Valentim de Carvalho, 2018)
Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.
Então poderia dizer-vos:
«Meus amados irmãos,
falo-vos do coração»,
ou então:
«com o coração nas mãos».
Mas o meu coração é como o dos compêndios.
Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue ao circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.
Por vezes acontece
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,
e uma lâmina baça e agreste, que endurece
a luz dos olhos em bisel cortados.
Parece então que o coração estremece.
Mas não.
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e que ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.
Então, meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?
* António Gedeão – voz
URL: http://cvc.instituto-camoes.pt/figuras/antoniogedeao.html
https://www.romulodecarvalho.net/
https://purl.pt/12157/1/index.html
https://dererummundi.blogspot.com/2019/10/poesia-e-ciencia-em-antonio-gedeao.html
https://music.youtube.com/channel/UCLAfs1EWokoUvjDzwdkC8QQ

Capa do livro "Linhas de Força", de António Gedeão (Coimbra: Atlântida Editora, 1967)

Capa da 2.ª edição do livro "Poesias Completas (1956-1967)", de António Gedeão (Col. Poetas de Hoje, N.º 17, Lisboa: Portugália Editora, 1968)
Concepção – João da Câmara Leme

Capa da 4.ª edição do livro "Poesias Completas (1956-1967)", de António Gedeão (Col. Poetas de Hoje, N.º 17, Lisboa: Portugália Editora, 1972)
Concepção – João da Câmara Leme

Capa da 8.ª edição do livro "Poesias Completas", de António Gedeão (Lisboa: Sá da Costa, 1982)
Concepção – Sebastião Rodrigues

Capa da 1.ª edição do livro "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", de António Gedeão (Lisboa: Edições João Sá da Costa, Mar. 1997)
Concepção e direcção gráfica – João Machado

Capa de outra edição do livro "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", de António Gedeão (Col. Cadernos de Poesia, Série Maior, Lisboa: Glaciar, Jun. 2022)
Concepção – Laura Quina

Sobrecapa do livro "Poesia Completa", de António Gedeão (Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997)
Pintura – Júlio Pomar

Capa do livro "Obra Poética", de António Gedeão (Lisboa: Edições João Sá da Costa, 2001)

Capa da 1.ª edição do livro "Obra Completa", de António Gedeão (Lisboa: Relógio d'Água Editores, Nov. 2004)

Capa da 3.ª edição do livro "Obra Completa", de António Gedeão (Lisboa: Relógio d'Água Editores, Mai. 2022)

Capa do EP "A Poesia de António Gedeão dita pelo Autor" (Col. 'A Voz e o Texto', Decca/VC, 1969)

Capa do CD "António Gedeão" (Col. "...Dizem os Poetas", Vol. 3, Edições Valentim de Carvalho, 2018)
Concepção – Maria Mónica
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Outros artigos com poesia de António Gedeão:
Adriano Correia de Oliveira: um grande cantor silenciado na rádio pública
António Gedeão: "Dia de Natal", por Afonso Dias
Carlos Mendes: "Calçada de Carriche" (António Gedeão)
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
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