21 maio 2025

Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)


(in https://commons.wikimedia.org/)
Peter Paul Rubens, "El Juicio de Paris" ("O Juízo de Páris"), c. 1638, óleo sobre tela, 199 x 379 cm, Museu do Prado, Madrid [P01669]
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, é favor clicar aqui]

Sugestão a propósito para ouver: Mythos: Ep. 7 - Julgamento de Páris, 08 Jan. 2023 / Autoria e apresentação do Prof. José Pedro Serra [>> RTP-Play]


«Certa vez, Zeus perguntou a Páris qual a deusa mais bela do Olimpo. Não se tratou de um momento suave e aéreo, em conversa despreocupada entre o filho de Príamo e o rei dos deuses, senhor dos raios e dos relâmpagos. Qual a deusa mais bela, Hera, Afrodite ou Atena? – perguntou Zeus ao príncipe de Tróia. Na verdade, Zeus estava ordenando a Páris que lhe apresentasse um veredicto. Páris contemplou, despidas de véus, tal como o grande pintor Rubens no-las revelou, as três deusas. Cada qual lhe prometeu benesses tamanhas, se fosse dele a preferida. E Páris escolheu Afrodite, aquela que, a crer num poema de Saramago, nasceu "das algas trémulas, do trigo, dos braços da medusa,/ das crinas dos cavalos, do mar, da vida toda".
Grata por seu julgamento, Afrodite concedeu a Páris a mais bela mulher do mundo. E ele escolheu Helena, de Esparta. E com essa escolha provocou a guerra de Tróia.
O grande Rubens fez duas versões desses instantes em que o coração de Páris vacila diante da beleza sem véus de três deusas, muito antes de uma seta envenenar o calcanhar de Aquiles ou de Heitor ser arrastado pelo chão em redor das muralhas de Tróia.
O jornal "La Vanguardia" mostra-nos hoje o momento em que o magnífico óleo sobre madeira guardado no Prado é colocado por trabalhadores da Caixa Forum de Barcelona na parede onde ficará exposto juntamente com outros quadros de Rubens e de outros artistas do barroco flamengo, a partir de 29 de Maio, até 21 de Setembro.
O título de "La Vanguardia" para a notícia ilustrada com o "Julgamento de Páris" é primaveril: "A viagem de um Rubens leve de roupa".
A imagem dá-nos mais do que a beleza suspensa de três deusas diante do seu julgador. É em si mesma, esta fotografia, um quadro composto. Seis operários da Caixa Fórum e dois escadotes rodeiam a obra-prima acabada de pousar no chão da galeria. Há um operário no alto de cada escadote. Outros dois, mãos enluvadas, preparam-se para um último
esforço, elevando o quadro até ao ponto onde ele aguardará o olhar cativo dos visitantes. Os outros dois operários, ligeiramente curvados, vão segurar o quadro por baixo, sob os pés das deusas despidas diante de Páris. Que julgamento será o de cada um deles, na intimidade breve e periclitante com Hera, Atena e Afrodite?
Que julgamento seria o deles, se um deus do relâmpago os intimasse? Que Tróia estariam dispostos a defender?» [Fernando Alves, "Um Rubens leve de roupa", in "Os Dias que Correm", 21 Mai. 2025]


A citação que Fernando Alves fez de dois versos (o antepenúltimo e o penúltimo) do belo poema "Afrodite", de José Saramago, não deixava margem para dúvidas de que seria uma gravação do texto integral o remate mais ajustado e pertinente a esta crónica tendo como mote o episódio mitológico do Juízo de Páris retratado por Rubens no célebre quadro visitável no Museu do Prado. E uma vez que Pedro Barroso musicou e gravou o poema completo, com um primoroso arranjo partilhado com o maestro Sílvio Pleno, para o LP "Água Mole em Pedra Dura" (1978), álbum esse posteriormente (em 2000) reeditado em CD sob o título de "Cartas a Portugal", seria aquele, de preferência, o registo a transmitir logo a seguir à crónica, quando esta foi emitida pela Antena 1 no programa da manhã. Mesmo assim, se a opção de Nuno Galopim de Carvalho e/ou de Ricardo Soares fosse passar uma gravação na modalidade recitada eventualmente existente no arquivo histórico da rádio pública (editada em disco parece não haver), o escrevente destas linhas não se queixaria. Nada de nada é que não se pode aceitar. Os ouvintes pagam a contribuição do audiovisual para receberem em troca bom serviço público – não é para alimentar indivíduos preguiçosos e sem zelo profissional!



Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo



Poema: José Saramago (ligeiramente adaptado de "Afrodite") [texto original >> abaixo]
Música: Pedro Barroso
Intérprete: Pedro Barroso* (in LP "Água Mole em Pedra Dura", Diapasão/Lamiré, 1978, reed. CD "Cartas a Portugal", Strauss, 2000; livro/CD "Pedro Barroso", Col. Canto & Autores, vol. 10, Levoir/Público, 2014)




Ao princípio, é nada. Um sopro apenas,
Um arrepio de escamas, um perpassar de sombra
Como de nuvem marinha que se esgarça
Nos radiais tentáculos da medusa.
Não se dirá que o mar se comoveu
E que a onda vai formar-se deste frémito.
No embalo da água oscilam peixes
E das algas as hastes serpentinas
À corrente se dobram, como ao vento
As searas da terra e as crinas dos cavalos.
Entre dois infinitos de azul a onda vem,
Toda de sol vestida e rebrilhante,
Líquido corpo de reflexos cegos.
E da terra, o vento corre para ela,
Tal o macho cioso para a fêmea aberta,
Transportando consigo o pólen das flores.
Fecundada, a onda rola agora, trovejando,
Na corrida para o parto que a espera
No leito de negras rochas que, na costa,
Se adorna de mil vidas fervilhantes.
Mais alto ainda as águas se suspendem
No segundo final da gestação imensa.
E quando, num furor de vida que começa,
A onda se despedaça no rochedo,
O envolve, o cinge, o aperta e dilacera,
Da branca espuma, do sol e do vento que soprou,
Dos peixes, das flores e do seu pólen,
Das algas trémulas, do trigo e dos braços da medusa,
E das crinas dos cavalos, do mar, da vida toda,
Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo.


* Pedro Barroso – voz e viola
Orquestra Gulbenkian, dir. Sílvio Pleno – naipe de cordas
Cândida Branca Flor – voz feminina

Direcção de orquestra e orquestrações – Sílvio Pleno e Pedro Barroso
Gravado nos Estúdios Rádio Triunfo, Lisboa, em 1977
Técnico de som – José Manuel Fortes
Remasterização digital (edição em CD) – Jorge Avillez, no Strauss Studio, Lisboa, em 2000
Biografia e discografia em A Nossa Rádio
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Barroso
https://www.meloteca.com/portfolio-item/pedro-barroso/
https://pedro-sc-barroso.blogspot.pt/p/discografia.html
https://music.youtube.com/channel/UCObgev8wnn6NWUgsSQGTPYQ
https://www.youtube.com/@DoTempoDosSonhos/videos?query=pedro+barroso
https://www.youtube.com/@AlbanoCardosoLaranjeira/videos?query=pedro+barroso



AFRODITE

(José Saramago, do ciclo "Nesta Esquina do Tempo", in "Os Poemas Possíveis", Col. Poetas de Hoje, vol. 22, Lisboa: Portugália Editora, 1966 – p. 132-133; "Poesia Completa", Lisboa: Assírio & Alvim, 2022)


Ao princípio, é nada. Um sopro apenas,
Um arrepio de escamas, um perpassar de sombra
Como de nuvem marinha que se esgarça
Nos radiais tentáculos da medusa.
Não se dirá que o mar se comoveu
E que a onda vai formar-se deste frémito.
No embalo da água oscilam peixes
E das algas as hastes serpentinas
À corrente se dobram, como ao vento
As searas da terra, as crinas dos cavalos.
Entre dois infinitos de azul a onda vem,
Toda de sol vestida, rebrilhante,
Líquido corpo de reflexos cegos.
Da terra, o vento corre para ela,
Tal o macho cioso para a fêmea aberta,
Transportando consigo o pólen das flores.
Fecundada, a onda rola agora, trovejando,
Na corrida para o parto que a espera
No leito de negras rochas que, na costa,
Se adorna de mil vidas fervilhantes.
Mais alto ainda as águas se suspendem
No segundo final da gestação imensa.
E quando, num furor de vida que começa,
A onda se despedaça no rochedo,
O envolve, o cinge, o aperta e dilacera,
Da branca espuma, do sol, do vento que soprou,
Dos peixes, das flores e do seu pólen,
Das algas trémulas, do trigo, dos braços da medusa,
Das crinas dos cavalos, do mar, da vida toda,
Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo.



Capa da 1.ª edição do livro "Os Poemas Possíveis", de José Saramago (Col. Poetas de Hoje, vol. 22, Lisboa: Portugália Editora, 1966)



Capa do livro "Poesia Completa", de José Saramago (Lisboa: Assírio & Alvim, Out. 2022)



Capa do LP "Água Mole em Pedra Dura", de Pedro Barroso (Diapasão/Lamiré, 1978)
Concepção – Ormond Fannon



Capa do CD "Cartas a Portugal", de Pedro Barroso (Strauss, 2000)
Grafismo – Rogério Taveira [T-Raso]
Reedição do LP "Água Mole em Pedra Dura".



Capa do livro/CD "Pedro Barroso" (Col. Canto & Autores, vol. 10, Levoir/Público, 2014)
Ilustração – André Carrilho

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Outros artigos com repertório de Pedro Barroso:
Galeria da Música Portuguesa: Pedro Barroso
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Pedro Barroso: "Música de Mar"
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