02 outubro 2024

"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel


Mestre Miguel Pimentel (viola da terra) e Emanuel Medeiros (violão) – fotografia tirada por Manuel Medeiros no claustro do Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, e reproduzida no caderno do CD "Sons d'Outrora" (DisRego, 1997).


«Quem em algum momento tenha intuído uma estranha música secreta produzida no interior da Terra pode acompanhar hoje, ao fim da tarde, a primeira de uma série de conferências on-line de acesso livre promovidas pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. O chapéu largo da iniciativa acolhe uma abordagem da sismologia que abre múltiplos corredores entre a ciência e a sociedade. A professora Ana Ferreira, que há uma década dá aulas numa universidade londrina onde dirige uma equipa de investigação em sismologia global, dá hoje uma entrevista ao "Diário de Notícias". Na entrevista, a sismóloga (cuja conferência nos convida a sondar o interior da Terra) explica o que a levou a estabelecer contactos profissionais com o pianista e compositor de jazz Liam Noble. Ela acredita que "a música e a sismologia têm muitas semelhanças" e isso não nos deve remeter para as notícias sobre a actividade sísmica registada no sismógrafo da Escola Delfim Santos e comprovadamente provocada pelo concerto de Taylor Swift em Lisboa. Não é disso que se trata, mas da música que irrompe de cada abalo sísmico. Neste dia oficialmente consagrado à viola da terra, apetece ouvir um dos tangedores das ilhas, como lhes chamou Gaspar Frutuoso. O chão da Terceira tem revelado uma caixa-de-ressonância alta que parece pedir uma sapateia ou um pezinho com acordes dolentes da viola dos dois corações.
A sismóloga Ana Ferreira partilha hoje com o DN o seu desejo de vir a construir, na parceria com o pianista de jazz Liam Noble, "novas composições musicais com base nos sons de uma expedição marítima" que coordenou recentemente.
Ela acredita que "os dados sísmicos são, no fundo, como canções ou sons vindos do interior da Terra".
Já cá não está a compositora Berta Alves de Sousa que em 1949 criou a versão para piano de um tema de pouco mais de dois minutos a que chamou Tremor de Terra. Composto com instrumentos sintéticos, o Tremor de Terra da pianista que estudou com Vianna da Motta antes de dar aulas de música de câmara no Conservatório de Música do Porto, conheceria ainda, em 52, uma versão para orquestra.
Desconheço a existência de um registo sonoro desta criação da pedagoga e compositora que foi também, em meados dos anos 40, crítica musical do desaparecido "Primeiro de Janeiro".
Mas gostaria de cruzar a partitura deste Tremor de Terra com o registo sismográfico do mais recente abalo no chão da Terceira.
Em fundo à conferência de logo à tarde da sismóloga Ana Ferreira faria soar o gemido dolente de uma viola da terra cruzado com a onda jazzística de Liam Noble, assim sondado o mais fundo e ígneo estremecimento da música sob os nossos pés.» [Fernando Alves, "Escuta como a Terra se faz música", in "Os Dias que Correm", 2 Out. 2024]


«Neste dia oficialmente consagrado à viola da terra, apetece ouvir um dos tangedores das ilhas, como lhes chamou Gaspar Frutuoso. O chão da Terceira tem revelado uma caixa-de-ressonância alta que parece pedir uma sapateia ou um pezinho com acordes dolentes da viola dos dois corações.»
Este excerto da crónica de Fernando Alves emitida pela Antena 1, hoje pouco antes das 9h:00 da manhã, estava mesmo a pedir que, mal o cronista terminasse de lê-la, surgisse na mesma frequência do espectro hertziano um trecho musical em viola da terra. Assim não aconteceu. O locutor Ricardo Soares apressou-se a rezar a ladainha da meteorologia e das temperaturas previstas para todas as capitais de distrito de Portugal. Não sabemos se não quis dar-se ao trabalho de procurar uma gravação de viola da terra, para rematar a crónica, pondo esta no ar um tempinho antes (o mesmo que durasse o instrumental da viola típica açoriana, que viria a seguir), ou se recebeu instruções expressas de Nuno Galopim de Carvalho para jamais fazer a ilustração musical da imperdível crónica de Fernando Alves. Qualquer que seja o caso, tem a nossa veemente reprovação porque tal ilustração musical – é oportuno frisar –, além de fazer justiça ao teor da crónica, seria uma soberana e excelente oportunidade para dar a ouvir repertório e intérpretes ausentes da 'playlist' e, nessa medida, um sinal diferenciador e distintivo da emissão da Antena 1 no éter nacional, pelo menos em comparação com a TSF e a RR.
À boleia da sugestão de Fernando Alves, o blogue "A Nossa Rádio" celebra o presente Dia da Viola da Terra, apresentando sete fascinantes peças instrumentais, todas da tradição açoriana (micaelense), eximiamente tocadas por Mestre Miguel Pimentel (1940-2022), que são parte integrante do seu primoroso álbum "Sons d'Outrora" (DisRego, 1997). Servem de homenagem, ainda que singela, ao notabilíssimo tangedor de viola da terra natural da localidade da Maia (concelho de Ribeira Grande, Ilha de São Miguel), fazendo assim jus às palavras de Fernando Alves.
Qualquer um destes sete espécimes, epítomes da superlativa arte de Mestre Miguel Pimentel, seria um magnífico remate musical à crónica de hoje de Fernando Alves.



Sapateia



Música: Tradicional (Maia, Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores)
Intérprete: Miguel Pimentel* (in CD "Sons d'Outrora", DisRego, 1997)


(instrumental)


* Miguel Pimentel – viola da terra
Emanuel Medeiros – violão



Pezinho Velho (1.ª versão)



Música: Tradicional (Maia, Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores)
Intérprete: Miguel Pimentel* (in CD "Sons d'Outrora", DisRego, 1997)


(instrumental)


* Miguel Pimentel – viola da terra
Emanuel Medeiros – violão



Mouraria



Música: Tradicional (Maia, Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores)
Intérprete: Miguel Pimentel* (in CD "Sons d'Outrora", DisRego, 1997)


(instrumental)


* Miguel Pimentel – viola da terra
Emanuel Medeiros – violão



Chamarrita do Meio



Música: Tradicional (Maia, Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores)
Intérprete: Miguel Pimentel* (in CD "Sons d'Outrora", DisRego, 1997)


(instrumental)


* Miguel Pimentel – viola da terra
Emanuel Medeiros – violão



Saudade (1.ª versão)



Música: Tradicional (Maia, Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores)
Intérprete: Miguel Pimentel* (in CD "Sons d'Outrora", DisRego, 1997)


(instrumental)


* Miguel Pimentel – viola da terra
Emanuel Medeiros – violão



Pezinho da Vila (2.ª versão)



Música: Tradicional (Maia, Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores)
Intérprete: Miguel Pimentel* (in CD "Sons d'Outrora", DisRego, 1997)


(instrumental)


* Miguel Pimentel – viola da terra
Emanuel Medeiros – violão



Aurora



Música: Tradicional (Maia, Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores)
Intérprete: Miguel Pimentel* (in CD "Sons d'Outrora", DisRego, 1997)


(instrumental)


* Miguel Pimentel – viola da terra
Emanuel Medeiros – violão

Gravado no Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, em Fevereiro de 1997, pela RDP-Açores
Captação – Jorge Santos
Mistura – Raul Resendes e Jorge Santos
Master – Nuno Miguel (RDP-Antena 3)
URL: https://audiencia.pt/miguel-de-braga-pimentel-o-homem-que-impulsionou-a-viola-da-terra/
https://www.youtube.com/@carvalhorafa1980/videos?query=miguel+pimentel



Capa do CD "Sons d'Outrora", de Miguel Pimentel (DisRego, 1997)
Concepção – Miguel Pimentel.

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Outro artigo com repertório tocado por Miguel Pimentel:
Miguel Pimentel com Maria José Victória: "Bons Anos"

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Outros artigos com repertório tocado em viola da terra:
Um Natal à viola da terra, por Rafael Carvalho
Rafael Carvalho: "Bons Anos e Anos Bons"

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Outro artigo relacionado com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"

01 outubro 2024

Ana Barroso: "Música"


© Pilar Torres.
Euterpe, a musa da música, na mitologia grega, representada em escultura de mármore pelo austríaco Josef Klieber, 1824, actualmente em exposição no Museu Albertina, Viena, Áustria.


A música é, para os verdadeiros compositores/intérpretes, a amante e a deusa que amam e veneram incondicionalmente, apesar de nem sempre receberem, em troca desse amor e dessa adoração, a compensação material considerada justa e digna (a gratificação espiritual, essa está garantida). É dessa relação dos autores/executantes de mérito com a arte dos sons – irresistível mas não raras vezes espinhosa e dolorosa para os sujeitos que a mantêm – que nascem as obras/interpretações com o poder de transformar (e até transfigurar) aqueles que as fruírem, tornando-os menos animalescos e mais divinos.
O que acabámos de enunciar foi-nos suscitado pela bela canção de Ana Barroso simplesmente intitulada "Música", com letra da cantora e música de José Peixoto, à qual fazemos a justiça de dar destaque neste Dia Mundial da Música, à beira de se completar um decénio sobre a edição do álbum respectivo, "Diário", que aconteceu a 6 de Outubro de 2014. Estamos em crer que será mais uma boa descoberta para a maioria dos visitantes do blogue "A Nossa Rádio", porque a cantautora Ana Barroso tem sido bastante maltratada pelas rádios nacionais. No caso da estatal, o CD "Diário", embora tenha sido Disco Antena 1 e de, na ocasião, terem sido transmitidas algumas canções, rapidamente foi atirado para o baú dos intocáveis por quem administra a 'playlist', a mesma onde é dado lugar – de primazia – a uma quantidade descomunal de produtos sonoros medíocres e rascas (chamar-lhes música seria ofender a musa) que poluem o canal e constituem um torpe insulto aos tímpanos mais asseados e menos tolerantes ao lixo. Acaso quem manda na programação musical da Antena 1 tem real noção do mal que está a fazer a tantos e tantos bons artistas portugueses, especialmente àqueles que mais beneficiariam com a divulgação radiofónica do seu trabalho? E os pagantes da contribuição do audiovisual que apreciam a música portuguesa de qualidade e têm todo o direito de ouvi-la na rádio que financiam, por quanto tempo mais estarão dispostos a suportar tamanho desvario?



Música



Letra: Ana Barroso
Música: José Peixoto
Intérprete: Ana Barroso* (in CD "Diário", Ana Barroso, 2014)




[instrumental]

Eu só quero a música,
Essa amante incerta, ingrata,
Que me vence e persegue,
Mais parece que me mata.

E eu deixo-me encantar
Na cantiga do bandido,
Nas promessas que ela faz
Quando faz amor comigo.

Logo me deixo tomar
Com fogo e mansidão;
Ela pede o que não dá:
Cobra em dor e sem razão.

És mais forte do que a força
Que me esventra sem quebrar;
Dás o sopro, tiras fôlego,
Não há como te deixar.

[instrumental]

Eu deixo-me encantar
Na cantiga do bandido,
Nas promessas que ela faz
Quando faz amor comigo.

Logo me deixo tomar
Com fogo e mansidão;
Ela pede o que não dá:
Cobra em dor e sem razão.

És mais forte do que a força
Que me esventra sem quebrar;
Dás o sopro, tiras fôlego,
Não há como te deixar.

Quanto mais tomas e prendes,
Mais eu tenho p'ra te dar:
Abro as portas, desarmada,
Para ti, de par em par.

Quanto mais tomas e prendes,
Mais eu tenho p'ra te dar:
Abro as portas, desarmada,
Para ti, de par em par;

Para te fazer a deusa,
A reza, o meu altar.
Para te fazer a deusa,
A reza, o meu altar.
Para te fazer a deusa,
A reza, o meu altar.


* Ana Barroso – voz
José Peixoto – guitarra acústica
Carlos Barretto – contrabaixo
Vicky Marques – percussão

Arranjos e direcção musical – José Peixoto
Gravado nos Estúdios Primetime, Miraflores - Oeiras, por Luís Delgado
Misturado e masterizado por Luís Delgado
URL: https://www.facebook.com/anabarroso.pt
https://antena1.rtp.pt/musica/discos/disco-a1-ana-barroso-diario/
https://www.youtube.com/channel/UC_IIDVXStRRGbPWKm8YSZKQ
https://music.youtube.com/channel/UCsbDkE9WKlxShXG3cY-GjxQ



Capa do CD "Diário", de Ana Barroso (2014)
Fotografia – Rodrigo Cabral.

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Outros artigos comemorativos do Dia Mundial da Música:
Fernando Tordo: "Bendita Música"
Pedro Barroso: "Música de Mar"
Sérgio Godinho: "Mão na Música"
José Barros e Navegante: "Músicos, Cravos e Rosas"
Luiza Todi por Carmen Dolores segundo Margarida Lisboa
Franz Schubert: "An die Musik" (Franz von Schober)
Vai de Roda: "Minha Roda 'stá Parada; Quadrilha Mandada"