(in https://almanaquesilva.wordpress.com/)
Ilustração de Julião Machado para o "Epigrama Imitado", incipit "Levando um velho avarento", primeiramente publicada no livro "Fábulas de Bocage" (Lisboa: Imp. de Libanio da Silva, 1905).
Fez hoje 260 anos que nasceu um dos maiores e também um dos mais desventurados poetas portugueses: Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage [https://purl.pt/1276/1/]. Evocamos o grande Elmano Sadino dando destaque a um poema de feição moralista: o "Epigrama Imitado", incipit "Levando um velho avarento". E fazemo-lo com dois registos, um recitado e um cantado: o primeiro por Manuela de Freitas e Mário Viegas, que faz parte do álbum "Poemas de Bibe: Grande Poesia Portuguesa Escolhida para os Mais Pequenos" (UPAV, 1990); e o segundo pelo grupo de rock progressivo Petrus Castrus, integrante do álbum "Mestre" (Guilda da Música/Sassetti, 1973).
O poema é, evidentemente, alegórico e pode, presentemente, aplicar-se com toda a propriedade a uns quantos indivíduos (os multimilionários) que, a cada dia que passa, concentram nas suas mãos mais e mais riqueza à custa do empobrecimento da maioria da população mundial, a do Primeiro Mundo incluída, e acarretando, simultaneamente, a destruição das condições de habitabilidade no planeta para o homo sapiens e para uma imensidade de outras espécies animais e vegetais, o que pode levar à extinção da própria Humanidade dentro de escassos séculos. Tal acontece porque a política que tem sido (cegamente) seguida em muitos países o permite e até incentiva, não sendo de admirar que as chamadas democracias liberais estejam a definhar ao mesmo tempo que medram os movimentos e as forças político-partidárias extremistas, mormente as de pendor fascista/fascizante. Nada que os governantes e os chefes de Estado desses países em crescente crise social não pudessem antever e evitar se fossem menos (voluntariamente) inconscientes da História e lessem (mais) textos de qualidade, como, por exemplo, a seguinte passagem de Almeida Garrett, em "Viagens na Minha Terra": «E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico.»
Boa escuta!
Quem escutou a emissão de hoje do programa "A Ronda da Noite" teve a oportunidade de ouvir três poemas de Bocage: dois ditos por Luís Caetano e um pelo seu convidado, o Prof. Daniel Pires, reputado estudioso bocageano e autor do livro "Bocage: A Imagem e o Verbo" [>> RTP-Play]. Cumpre-nos enaltecer Luís Caetano pelo cuidado que teve em assinalar a efeméride resgatando esta saborosa conversa originalmente emitida no seu sabatino "A Força das Coisas", de 12 Dez. 2015, no âmbito das comemorações do 250.º aniversário do nascimento do poeta [>> RTP-Play]. Contudo, fora de efemérides ou de outras ocasiões muito esporádicas é virtualmente impossível ouvir-se algo, por mais curto que seja, da abundante e valorosa poesia de Bocage na Antena 2, visto o apontamento "A Vida Breve" ter como objecto a poesia dita pelos próprios autores. E nas outras antenas de cobertura nacional da rádio pública a situação é ainda pior, uma vez que nas respectivas grelhas nada existe no que concerne a poesia dita/recitada...
Importa, pois, que sem prejuízo de manutenção do figurino que Luís Caetano gizou para o espaço que vem mantendo com assinalável diligência (nunca é de mais reconhecê-lo), haja também lugar, e não somente no canal mais cultural da estação pública de rádio, para a poesia de autores que viveram antes da invenção da fonografia ou que tendo já nela vivido não deixaram registos de poemas seus em voz própria, como foi o caso de Fernando Pessoa (apenas para citar o maior poeta português do século XX). E para esse efeito nem é preciso gastar um chavo a contratar actores/dizedores: basta fazer o uso do arquivo histórico da rádio pública, bem como de edições discográficas. No caso concreto de Bocage, não é nada diminuto o acervo de poesia registada em disco por reputados recitadores: além de gravações avulsas, como a de Manuela de Freitas e Mário Viegas ora apresentada, temos conhecimento de quatro discos integralmente bocageanos: um por Andrade e Silva ("Sonetos Eróticos de Bocage", Estúdio/Mundisom, 1974); outro por José Carlos Ary dos Santos ("Bocage: Líricas e Sátiras", Guilda da Música/Sassetti, 1975, reed. CNM, 2004, 2011); outro por Carlos César e Célia David, com música de Rui Serôdio ("Sonetos de Bocage", Som da Cultura/Ruquisom, 1996); e outro ainda por José Luís Nobre, com música de Rui Serôdio ("Perscrutando a Inquietude: 40 Poemas de Bocage", Centro de Estudos Bocageanos/JGC, 2007).
Epigrama
Poema de Bocage ("Epigrama Imitado", in "Rimas de Manoel Maria de Barbosa du Bocage, Dedicadas à Amizade", Tomo II, Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1802 – p. 244; "Fábulas de Bocage", Ilustrações de Julião Machado, Lisboa: Imp. de Libanio da Silva, 1905, 4.ª edição, Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2000; "Obras Completas de Bocage: Sonetos, Sátiras, Odes, Epístolas, Idílios, Apólogos, Cantatas e Elegias", Tomo I, Organização, fixação do texto e notas de Daniel Pires, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018 – p. 494)
Recitado por Manuela de Freitas e Mário Viegas* (in LP/CD "Poemas de Bibe: Grande Poesia Portuguesa Escolhida para os Mais Pequenos", UPAV, 1990, reed. Público, 2006)
Levando um velho avarento
Uma pedrada n'um olho,
Pôs-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.
Certo doutor, não das dúzias,
Mas sim médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.
«Dez moedas! (Diz o avaro)
Meu sangue não desperdiço:
Dez moedas por um olho!
O outro dou eu por isso.»
Nota: «Baseado no poema de Beaugeard «Un harpagon, en courant par la ville» (Daniel Pires).
Poema: Bocage ("Epigrama Imitado", in "Rimas de Manoel Maria de Barbosa du Bocage, Dedicadas à Amizade", Tomo II, Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1802 – p. 244; "Fábulas de Bocage", Ilustrações de Julião Machado, Lisboa: Imp. de Libanio da Silva, 1905, 4.ª edição, Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2000; "Obras Completas de Bocage: Sonetos, Sátiras, Odes, Epístolas, Idílios, Apólogos, Cantatas e Elegias", Tomo I, Organização, fixação do texto e notas de Daniel Pires, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018 – p. 494)
Música: José Castro e Pedro Castro
Intérprete: Petrus Castrus* (in LP "Mestre", Guilda da Música/Sassetti, 1973, reed. CNM, 2007)
Levando um velho avarento
Uma pedrada n'um olho,
Pôs-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.
Certo doutor, não das dúzias,
Mas sim médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.
«Dez moedas!
Meu sangue não desperdiço.
Dez moedas por um olho!
O outro dou eu por isso.»
* [Créditos gerais do disco:]
Petrus Castrus:
Pedro Castro – viola baixo, guitarras acústicas, voz, kazoo
José Castro – piano, xilofone, voz
Rui Reis – piano, órgão, cravo
Júlio Pereira – viola solo, baixo
João Seixas – bateria, percussão
Frontispício do livro "Rimas de Manoel Maria de Barbosa du Bocage, Dedicadas à Amizade", Tomo II (Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1802)
Capa da 1.ª edição do livro "Fábulas de Bocage", ilustrações de Julião Machado (Lisboa: Imp. de Libanio da Silva, 1905)
Capa da 4.ª edição do livro "Fábulas de Bocage", ilustrações de Julião Machado, introdução e actualização de texto: Daniel Pires (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2000)
Capa do livro "Obras Completas de Bocage: Sonetos, Sátiras, Odes, Epístolas, Idílios, Apólogos, Cantatas e Elegias", Tomo I, Organização, fixação do texto e notas de Daniel Pires (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Dez. 2018)
Capa do LP/CD "Poemas de Bibe: Grande Poesia Portuguesa Escolhida para os Mais Pequenos", de Mário Viegas e Manuela de Freitas (UPAV, 1990)
Fotografia – Rui Cunha
Capa do livro (com CD) "Poemas de Bibe", vol. 10 de "Mário Viegas: Discografia Completa" (Público, 2006)
Fotografia – Rui Cunha
Design gráfico – José Santa-Bárbara
Capa do LP "Mestre", do grupo Petrus Castrus (Guilda da Música/Sassetti, 1973)
Fotografia – Armando Vidal (alto-relevo representando um Tritão mitológico sobre a Porta dos Corais, no Palácio da Pena, Sintra) [mais informação em: https://www.parquesdesintra.pt]
Concepção/grafismo – José Soares
Capa do livro "Bocage: A Imagem e o Verbo", de Daniel Pires (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Set. 2015)
Capa do livro "Bocage ou O Elogio da Inquietude", de Daniel Pires (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Dez. 2019)
Capa do livro "O Essencial sobre Manuel Maria de Barbosa du Bocage", de Daniel Pires (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Ago. 2023)
Autor, compositor, intérprete vocal e instrumental, só em casos muito raros Sérgio Godinho partilhou com outros as maiores responsabilidades das suas peças (para lá do acompanhamento e da orquestração); [...]
As letras — quer dizer, os poemas, ou, para usarmos palavras hoje menos nobres, mas com prestígio histórico-literário, as poesias, as cantigas, as canções — de Sérgio Godinho não podiam fugir à tradição que se iniciou em língua portuguesa com as cantigas medievais. Naquelas, como nestas, abundam os jogos paralelísticos, as repetições de todo o tipo (da anáfora ao quiasmo), as oposições, as variações, as simetrias e dissimetrias (formais e semânticas) que marcam claramente, didacticamente, de modo a poderem ser retidas com facilidade na leitura ou na audição, as diferenças de sentido, as lutas com e pelo sentido, as hipóteses de mudança e de alternativa (da história, da sociedade, do sujeito).
[...]
As canções de Sérgio Godinho, estudante sem curso completo, refractário, homem de 7 instrumentos, viajante de vários países, cidadão duas vezes injustamente preso, pai de dois filhos, português com um percurso tão comparável ao de tantos portugueses do nosso tempo, cosmopolitas e «retornados», ajudam-nos a viver num Portugal moderno e livre — e a fugir cada vez mais da apagada e vil tristeza nacional.
ARNALDO SARAIVA
(Do estudo crítico "A Canção de Sérgio Godinho",
in "Canções de Sérgio Godinho", Lisboa: Assírio
& Alvim, 1983 – p. 22, 25 e 43)
"Romance de um Dia na Estrada" — o título deste poema narrativo rimado (rimance) de Sérgio Godinho, lançado no Outono de 1971, é bem explícito quanto ao assunto sobre que versa: a aventura amorosa de um andarilho (no caso, de um músico/cantor) numa das suas errâncias de viola ao ombro. Mas, ao contrário do que acontece no romance/rimance tradicional "Laurinda" [>> YouTube Music], a infidelidade feminina não é condenada, antes considerada a natural e emancipada expressão do amor livre, desamarrado de velhas e opressivas convenções sociais. Neste ponto, o sergiano (aparentemente inspirado no livro "On the Road", de Jack Kerouac) "Romance de um Dia na Estrada" distingue-se por ser inovador e revolucionário no contexto nacional, numa altura – convém ter isso presente – em que ainda vigorava o patriarcal e misógino Estado Novo, se bem que já bastante debilitado e exaurido, muito por causa da Guerra Colonial. Na moral da história, Sérgio Godinho corta com a tradição, mas mantém-se a ela fiel no que concerne à forma poética ao adoptar a popular estrutura estrófica de septilhas, só que com esquemas de rimas diferentes e mais elaborados. Assim, em vez do usual XAXABBA temos, em "Romance de um Dia na Estrada", XABBABB (1.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª e 8.ª estrofes), XAABABA (2.ª estrofe), XABABAA (6.ª estrofe) e XABAABB (7.ª estrofe). Também por esta construção poética mais sofisticada do que a tradicional, a que se acrescentam a inspirada melodia e a primorosa interpretação vocal (ambas de Sérgio Godinho) e a competente execução instrumental (viola de Gérard Crapoutchik), este romance ocupa um lugar bem elevado na extensa produção sergiana e, claro está, no património poético-musical português. E foi esse o entendimento do director editorial da Sassetti ao escolhê-lo para tema-título e abertura do alinhamento do primeiríssimo disco (EP) de Sérgio Godinho, publicado em Novembro de 1971 (o LP "Os Sobreviventes", de que também faz parte, já estava gravado – havia-o sido em fins de Abril de 1971 – mas o lançamento teria de esperar mais alguns meses, apenas por estratégia comercial da editora que resolvera apostar fortemente no álbum "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco). Todavia, este encantador rimance parece ter sido subestimado pelo distinto autor e intérprete, pois não consta em qualquer dos seus vários discos ao vivo. E em antologias de repertório gravado em estúdio também só figura em duas: no duplo LP "Era uma Vez um Rapaz" (Philips/Polygram, 1985) [na reedição em CD, de 1991, não foi incluído] e no CD "Biografias do Amor" (Universal Music Portugal, 2001). Por ser um dos espécimes do vastíssimo repertório de Sérgio Godinho que mais apreciamos, fazemos questão de dar-lhe destaque aqui e agora, para assim nos associarmos à homenagem que o país está a render ao autor de "Espalhem a Notícia", no dia do seu 80.º aniversário natalício.
Parabéns, Sérgio Godinho! E muito obrigado pelo relevantíssimo contributo que deu para o enriquecimento do património musical/fonográfico português!
Tendo em conta que a Antena 1 tem deixado passar em claro sucessivas efemérides de notáveis intérpretes e autores da Música Portuguesa, foi com surpresa, embora agradável, que verificámos ter sido adoptada atitude diferente ante as oito décadas de vida de Sérgio Godinho, atitude essa que se traduziu em cinco rubricas emitidas na semana finda e num programa alargado transmitido hoje mesmo após o noticiário das 13h:00, todos da autoria de João Gobern [>> RTP-Play]. Por lá passou um bom punhado de canções sergianas (em voz própria, evidentemente), entre elas os grandes hinos "A Noite Passada", "O Primeiro Dia" e "Com um Brilhozinho nos Olhos". Não obstante, atendendo à dimensão do artista e à importância da sua obra, pensamos que é curto: Sérgio Godinho merece mais. E esse "mais" podia muito ser uma série de programas retrospectivos, idealmente com a presença do próprio a falar sobre as várias fases do seu percurso artístico e, obviamente, a dizer o que lhe aprouvesse a respeito de umas quantas canções, designadamente as circunstâncias e as motivações que estiveram na sua génese...
Romance de um Dia na Estrada
Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Sérgio Godinho* (in EP "Romance de um Dia na Estrada", Guilda da Música/Sassetti, 1971; LP "Os Sobreviventes", Guilda da Música/Sassetti, 1972, reed. Philips/Polygram, 1990, Universal Music Portugal, 2001, 2019; 2LP "Era uma Vez um Rapaz": LP 1, Philips/Polygram, 1985; CD "Biografias do Amor", Universal Music Portugal, 2001)
Andava há já vinte dias
Ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos p'ra a morte
Um dia fraco, outro forte [bis]
[instrumental]
Quando um barulho de cama
A voltar-se de impaciente
Me fez parar de repente
Era noite e o casarão
Não tinhas lados nem frente
Dentro havia luz e pão
Me fez parar de repente [bis]
[instrumental]
Ó da casa, abram a porta,
Fiz as luzes se apagarem
Cheguei-me mais à janela
Vi acender-se uma vela
Passos de mulher andarem
E uma mulher muito bela
Chegou-se mais à janela [bis]
[instrumental]
Não tenhas medo, não trago
Nem ódio nem espingardas
Trago paz numa viola
Quase que não fui à escola
Mas aprendi nas estradas
O amor que te consola
Trago paz numa viola [bis]
[instrumental]
Meu marido foi p'ra longe
Tomar conta das herdades
Ela disse «Companheiro»
Eu disse «Vem», ela «Tu primeiro,
Tu que me falas de estradas
E eu só conheço um carreiro»
Ela disse «Companheiro» [bis]
[instrumental]
A contas com a nossa noite
Afundados num colchão
Entre arcas e um reposteiro
Descobrimos um vulcão
Era o mês de Fevereiro
E o Inverno se fez Verão
Descobrimos um vulcão [bis]
[instrumental]
E eu que falava de estradas
E só conhecia atalhos
E ela a mostrar-me caminhos
Entre chaminés e orvalhos
Pela manhã, sem agasalhos
Voltei a rumos sozinhos
E ela a mostrar-me caminhos [bis]
[instrumental]
Andarei mais vinte dias
Ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos p'ra a morte
Um dia fraco, outro forte [5x]
* Sérgio Godinho – voz
Gérard Crapoutchik – guitarra acústica
Capa do EP "Romance de um Dia na Estrada", de Sérgio Godinho (Guilda da Música/Sassetti, 1971)
Concepção – Guilherme Lopes Alves
Capa do LP "Os Sobreviventes", de Sérgio Godinho (Guilda da Música/Sassetti, 1972)
Fotografia – Michel Morange
Concepção – Armando Alves
Capa da compilação em duplo LP "Era uma Vez um Rapaz", de Sérgio Godinho (Philips/Polygram, 1985)
Fotografia – Álvaro Rosendo
Grafismo – Jorge Colombo
Capa da compilação em CD "Biografias do Amor", de Sérgio Godinho (Universal Music Portugal, 2001)
Fotografia – Rita Carmo
Grafismo – Espanta Espíritos
Capa da 1.ª edição do livro "Canções de Sérgio Godinho"; estudo crítico e notas de Arnaldo Saraiva (Lisboa: Assírio e Alvim, 1977)
Arranjo gráfico – Manuel Rosa
Capa da 2.ª edição (actualizada) do livro "Canções de Sérgio Godinho"; estudo crítico, organização e notas de Arnaldo Saraiva (Col. Rei Lagarto, vol. 8, Lisboa: Assírio & Alvim, Dez. 1983)
Concepção – Manuel Rosa
Foi com surpresa e consternação que recebemos a notícia da morte, ontem ocorrida, do actor Luís Lucas, vitimado por ataque cardíaco. Na difícil arte de bem dizer poesia, consideramo-lo um dos mais competentes que Portugal já teve. Damos como exemplo, à guisa de singela homenagem nesta hora triste, a sua magnífica leitura do "Soneto Já Antigo", de Álvaro de Campos, publicada no CD n.º 1 do audiolivro "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004).
Por acaso, Fernando Pessoa nem se conta entre os poetas que Luís Lucas mais gravou (a sua discografia incide sobretudo em Guerra Junqueiro, Mário de Sá-Carneiro, José Gomes Ferreira, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira e Pedro Tamen), mas quisemos dar realce àquele soneto do mais especulativo e niilista dos heterónimos pessoanos, por duas boas razões: primeira, por acontecer neste 2025 a efeméride dos 90 anos da morte do maior poeta português depois de Camões; e segunda, por o poema em apreço versar sobre a morte, assunto que se adequa plenamente à funesta ocorrência que subtraiu ao número dos vivos um dos mais dignos cultores e divulgadores da poesia portuguesa contemporânea. A vida que Álvaro de Campos impreca no último verso é, para bom entendedor, a vida videirinha daqueles que a consomem a acumular riquezas materiais e a conquistar glórias que a morte reduz a inutilidades, pois deixam de ter qualquer préstimo para quem muito se empenhou em obtê-las, não raramente em prejuízo do bem-comum.
No que à rádio pública diz respeito, damos boa nota da iniciativa de Paulo Alves Guerra ao consagrar, hoje, boa parte do seu programa da manhã na Antena 2, a Luís Lucas transmitindo uma mão-cheia de poemas ditos pelo malogrado actor/recitador intercalados com trechos de peças sacras de Johann Sebastian Bach. Recomendamos especialmente a primeira hora em que pontificaram poemas de Mário Cesariny, Herberto Helder, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão e Eugénio de Andrade, curiosamente todos extraídos do mesmo audiolivro com chancela da Assírio & Alvim [>> RTP-Play].
Na Antena 1, nada apanhámos em memória de Luís Lucas, nas breves incursões que fizemos à respectiva emissão, e não acreditamos, sinceramente, que nos períodos em que estivemos ausentes da sintonia do canal algum poema na voz do saudoso actor tenha sido ofertado ao auditório. O registo ora em destaque e tantos outros do valioso legado fonográfico de Luís Lucas podiam muito bem ser dados a escutar aos ouvintes do canal generalista da estação pública de rádio, de vez em quando, no âmbito de um apontamento regular de poesia dita/recitada emitido diariamente ou de segunda a sexta-feira. Ficamos então a fazer votos de que a nova direcção de programas seja menos hostil relativamente à poesia do que foi a direcção precedente, do autista Nuno Galopim de Carvalho. Oxalá!
SONETO JÁ ANTIGO
Poema de Álvaro de Campos (in revista "Contemporânea", N.º 6, Lisboa: Natal 1922 – p. 121; "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes; colaboração de Manuela Parreira da Silva e de Luísa Medeiros, Lisboa: Editorial Estampa, 1993 – p. 2)
Dito por Luís Lucas* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX": CD 1, Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)
Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não o sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de
Londres p'ra York, onde nasceste (dizes...
Que eu nada que tu digas acredito),
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes,
Embora não o saibas, que morri...
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará... Depois vai dar
A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...
(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes do Opiário, portanto) Dezembro 1913
Capa do N.º 6 da revista "Contemporânea" (Lisboa: Natal 1922)
Ilustração – José de Almada Negreiros
Página 121 da publicação anterior onde consta o "Soneto Já Antigo", de Álvaro de Campos.
Capa do livro "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes; colaboração de Manuela Parreira da Silva e de Luísa Medeiros (Lisboa: Editorial Estampa, 1993)
Capa da 3.ª edição do livro anterior (Lisboa: Editorial Estampa, 1997)
Capa do livro (com 2 CD) "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004).
Imagem heliográfica – Lourdes Castro ("Mangueiro", in Grand Herbier d'Ombres, 1972)
(in https://www.iwm.org.uk/)
Aspecto de Nagasaki alguns dias após a detonação da bomba atómica, a 9 de Agosto de 1945.
Às 11h:02 (hora local) daquele desditoso dia, uma segunda bomba atómica (de plutónio), apelidada de "Fat Man", foi lançada sobre outra cidade do Japão, Nagasaki. Embora aquela bomba fosse mais potente do que a "Little Boy" (de urânio-235), a destruição causada foi menor do que em Hiroxima devido à orografia acidentada (o alvo previsto era a cidade de Kokura, mas, ao deparar-se aí com um espesso manto de nuvens naquela manhã, o major Charles W. Sweeney, piloto do B-29 chamado Bockscar que transportava a bomba, resolveu rumar para Nagasaki, mais a sudoeste da ilha de Kyushu). Mesmo assim mais de 5 quilómetros quadrados da cidade foram pulverizados e cerca de 73 mil pessoas morreram.
Charanga, Construção e Pedra d'Hera são os nomes de três bons grupos que se estrearam, discograficamente, em 1982 e cujos trabalhos, parafraseando Mário Correia (in "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", Centelha/Mundo da Canção, 1984, p. 301), se enquadram na via ampla que foi aberta pelas propostas de síntese elaboradas pelo Trovante, sobretudo patentes em "Baile no Bosque" (1981). «O ponto da partida permanece o mesmo: a música tradicional funciona como referência musical de base, a partir da qual se incorporam influências diversas, com maior ou menor incidência em termos de resultado final, sem que qualquer dos elementos integrados na síntese criativa surja com predomínio sobre os restantes em termos limitativos. O que, acentue-se uma vez mais, tem muito a ver com a riqueza e a variedade da música tradicional.» (ibidem)
À distância de mais de quatro décadas, podemos rotular tal abordagem estético-estilística de folk progressivo português. No álbum do grupo Pedra d'Hera, de título homónimo (nome tomado de um miradouro no monte de São Brás, a 760 metros de altitude, na vertente norte da serra da Gardunha), vem, a fechar o lado A do LP, uma canção primorosa e ao mesmo tempo inquietante: "Nagasaki, Hiroshima". E o dia de hoje em que se completam 80 anos sobre o lançamento da segunda bomba atómica sobre uma cidade populosa, reeditando-se (intencionalmente) o ainda bem recente holocausto de Hiroxima, afigura-se uma excelente ocasião para resgatarmos aquele tocante trecho poético-musical, com letra, música e voz de José Reis Fontão, cujo arranjo é de raro e superlativo encanto. Estamos muito em crer que aqueles que aqui vierem ouvi-lo (a maioria deles pela primeira vez, é de supor) comungarão de tal apreciação e alguns até não deixarão de inquirir os seus botões: «Porque é que nenhuma rádio me deu a conhecer antes esta preciosidade? Para que servem, afinal, as Antenas 1 e 3?».
Nota: O grupo Pedra d'Hera voltou a gravar "Nagasaki, Hiroshima" no seu terceiro álbum, "Ventos" (1996), com um arranjo consideravelmente diferente (mais americano e menos japonês) que é rematado com o estrondo ribombante do engenho atómico em explosão [>> YouTube].
Letra e música: José Reis Fontão
Intérprete: Pedra d'Hera* (in LP "Pedra d'Hera", Promusix, 1982; CD "Pedra d'Hera I/II", Pedra d'Hera, 1994)
[instrumental]
Há tanto tempo, sr. Presidente,
Que eu ouvira falar
A um "velho branco"
Que se punha a cantar
... Nagasaki, Hiroshima...
Uma canção, que não sabia
Onde ela iria começar
Como estas bombas
Que chovem sem parar
... Nagasaki, Hiroshima...
[instrumental]
Sei que a cantava
Olhando pr'além de tudo
Quanto o rodeava...
Ah! Velho louco que cantava e chorava
... Nagasaki, Hiroshima...
Diga-me, sr. General e Chefe,
Nosso "guia poderoso",
Se esse homem idoso
Soubera o que foi
... Nagasaki, Hiroshima...
[instrumental / vocalizos]
* Pedra d'Hera:
José R. Fontão – voz e guitarra solo (introdução)
José Emílio Martins – guitarra de 12 cordas solo, pratos e caixa
Carlos J. Branco – baixo e guitarra de 6 cordas
Músico convidado:
Dino – piano Fender
Capa do LP "Pedra d'Hera", do grupo Pedra d'Hera (Promusix, 1982)
Criação e execução – Miguel Monteiro
Capa da compilação em CD "Pedra d'Hera I/II" (Pedra d'Hera, 1994)
Produtor – António Salvado (Tó-Nô)
Capa do livro "Música Popular Portuguesa: Um Ponto de Partida", de Mário Correia (Col. Cantares de Amigo, N.º 1, Centelha/Mundo da Canção, Abr. 1984)
Concepção – Arlindo Fagundes.
(in https://www.iwm.org.uk/)
Aspecto de Hiroxima alguns dias após a detonação da bomba atómica, a 6 de Agosto de 1945. A cúpula do Genbaku Dome, edifício que se mantém em ruínas para funcionar como memorial, foi o ponto de referência do coronel Paul Tibbets (1915-2007), piloto do bombardeiro B-29 baptizado de Enola Gay (em homenagem à sua mãe), para largar a bomba chamada "Little Boy" (64 kg de urânio-235), que explodiu a cerca de 550 metros acima da cidade. Com uma potência equivalente a cerca de 12,5 quilotoneladas de TNT, a bomba reduziu a cinzas uma área de 13 quilómetros quadrados do centro de Hiroxima e causou a morte a aproximadamente 70 mil pessoas nos primeiros quatro dias após a explosão, estimando-se que, posteriormente, outras tantas tenham morrido devido a complicações e a doenças causadas pela exposição a níveis elevados de radioactividade, designadamente leucemia e outros tipos de cancro.
Faz hoje 80 anos que a mais mortífera e devastadora das armas – a bomba atómica – foi lançada sobre a urbe nipónica de Hiroxima, na extremidade sudoeste da ilha de Honshu. Para descrever cabalmente tamanha catástrofe, ademais sendo antropogénica, que se traduziu na destruição repentina e intensa de uma cidade e na dizimação da maioria dos seus habitantes, parece não haver palavras à altura. Mas houve quem se esforçasse por encontrá-las e uma dessas pessoas foi o músico/compositor e artista plástico José Luís Tinoco, quando concebeu, no âmbito do seu grupo Saga, o álbum "Homo Sapiens" (1976), um dos trabalhos de referência do rock progressivo português. O poema intitula-se precisamente "Hiroxima" e, para dar-lhe voz, o autor convidou o actor Sinde Filipe. E o resultado é tocante e eloquente, desde a moldura sonora à mui impressiva recitação. Oxalá a escuta deste admirável registo pudesse fazer crescer o repúdio às armas nucleares tão ampla e arreigadamente que os dirigentes dos países que as possuem nem sequer ponderassem alguma vez usá-las!
Vem a propósito chamarmos a atenção, uma vez mais, para a gritante lacuna de uma rubrica, emitida diariamente ou de segunda a sexta-feira, de poesia dita/recitada, que persiste na grelha da Antena 1, e na qual gravações como a ora destacada pudessem ser divulgadas. Deploravelmente, Nuno Galopim de Carvalho optou por uma conduta autista ignorando sobranceiramente os apelos que o escrevente destas linhas e outros ouvintes lhe fizeram, para que tal lacuna fosse colmatada, em linha com a mui honrosa tradição do canal naquela modalidade cultural. Agora que a direcção de programas mudou de mãos (e bem), fazemos votos de que o novo homem forte da Antena 1, Nuno Reis, tenha a clarividência e a sageza de proceder de maneira diferente e mais consentânea com as obrigações de serviço público às quais o canal generalista da rádio do Estado está legal e moralmente vinculado.
HIROXIMA
Poema e música: José Luís Tinoco
Intérprete: Saga* com Sinde Filipe [in LP "Homo Sapiens", Movieplay, 1976, reed. M2U Records (Coreia do Sul), 2002]
6 de Agosto de 1945
8 e um quarto da manhã.
Já premiste o botão
que fez descer 100 milhões de graus centígrados-morte
e erguer da terra um belo clarão
enorme e deslumbrante.
Missão cumprida.
Espera-te um país reconhecido
e mais tarde
os pés no vazio
quando souberes que
em poucos segundos, sob as tuas asas,
desde as ruas e jardins do centro
até aos campos em redor,
homens, mulheres, crianças e animais
foram varridos por um vento
que pulverizou tudo o que encontrou no seu caminho,
que alguns sobreviveram gritando queimados de morte
entre cinzas e cascalho,
que os arrozais perderam a verdura
e a relva ardeu como palha seca.
Número total de mortos: cerca de 70 000.
Um belo clarão...
Um belo clarão...
enorme, sábio, deslumbrante.
A teu lado alguém pergunta:
Meu Deus, que fizemos?...
* [Créditos gerais do disco:]
Saga (instrumentistas):
José Luís Tinoco – piano, piano eléctrico, sintetizador, órgão, guitarras de 6 e 12 cordas
Zé da Ponte – viola baixo, guitarras de 6 e 12 cordas
Fernando Falé – bateria
Participação de:
Vasco Henriques – sintetizador Moog e flauta
Rão Kyao – saxofones tenor e soprano
Fernando Girão – percussão
Sinde Filipe – voz (recitação)
(in https://radio.hypotheses.org/4138)
Os actores Carmen Dolores e Jaime Santos numa sessão de gravação de teatro radiofónico – fotografia publicada na revista "Flama", 16 Mai. 1958.
A 4 de Agosto de 1935 foi inaugurada oficialmente, com a presença do presidente da República de então, Óscar Carmona, a Emissora Nacional de Radiodifusão. Porém, não foi naquela data que se deu a primeira emissão. Em regime experimental, é certo, as emissões em onda média haviam começado na Primavera de 1932 e em onda curta no ano de 1934. A inauguração da rádio do Estado (que já vinha tarde, ante a pujança de várias emissoras privadas que emitiam desde o início da década de 1920 – em 1923 fora criada a Sociedade Portuguesa de Amadores de Telefonia sem Fio) chegou a estar prevista para 28 de Maio de 1934, dia que era obviamente caro ao regime ditatorial, conforme se pode ler na notícia da publicação "Rádio-Ciência", de Maio de 1934, dirigida pelo conceituado jornalista Álvaro Contreiras [cf. artigo "Manual de aceitação da Emissora Nacional em 1934", do Prof. Rogério Santos]. Foi nesse período experimental que começou a produção e emissão em directo de teatro radiofónico na rádio oficial (nas privadas Rádio Graça, Rádio Luso e Rádio Clube Português essa nobre arte já tivera lugar). Segundo refere Eduardo Street, no seu livro "O Teatro Invisível: História do Teatro Radiofónico" (Página 4, 2006, p. 34), foi com "A Ceia dos Cardeais", peça em 1 acto da autoria de Júlio Dantas, que a Emissora Nacional deu início, a 28 de Agosto de 1934, à transmissão de teatro concebido expressamente para a rádio. O elenco era o seguinte: Alexandre de Azevedo (Cardeal Gonzaga), Henrique de Albuquerque (Cardeal Ruffo) e Samwel Diniz (Cardeal Montmorency). E os ouvintes gostaram tanto que muitos deles se deram ao cuidado de escrever e telefonar para a Emissora Nacional a pedir a reposição da mais conhecida obra dramática de Júlio Dantas. E foram atendidos: aconteceu a 18 de Setembro de 1934, dessa vez com António Sacramento no papel do cardeal francês [cf. artigo "Emissora Nacional: 1934? 1935?", de Rogério Santos]. Esse mês de Setembro de 1934 ficou também assinalado pelo início das emissões regulares da Emissora Nacional, sob a presidência do capitão Henrique Galvão em regime de comissão instaladora, por nomeação do ministro das Obras Públicas e Comunicações, Duarte Pacheco. E o teatro invisível, como o denominou Eduardo Street, logo conquistou os favores do público-ouvinte, tornando-se, nas décadas subsequentes, sob a avalizada direcção de Virgínia Victorino (usando o pseudónimo de Maria João do Valle), de Alice Ogando, de Odette de Saint-Maurice, de Samwell Diniz, de Álvaro Benamor, de Edgar Marques, de António Manuel Couto Viana, de Raul de Carvalho, de Fernando Gusmão, de Norberto Barroca, de Rogério Paulo, de Carlos Avilez, de Fernando Curado Ribeiro, de Filipe La Féria, de Eduardo Street, e de outros, a mais relevante modalidade de divulgação cultural da rádio pública, ao facultar inumeráveis textos de teatro (e também obras romanescas adaptadas) a tantos ouvintes residentes em lugares onde o teatro convencional não chegava, muitos deles analfabetos ou semi-analfabetos.
Neste dia em que se comemora o 90.º aniversário da inauguração oficial da rádio pública, fazemos questão de render homenagem a todos os homens e mulheres que estiveram ligados ao teatro do imaginário – autores, adaptadores, actores e seus directores/ensaiadores, locutores/narradores, técnicos de gravação, sonorização e montagem, produtores, realizadores – e aproveitamos o ensejo para deixar expresso o pedido à administração da empresa Rádio e Televisão de Portugal para que empenhe seriamente na disponibilização online do muito que ainda falta do acervo radiofónico da arte de Talma. Pedido que é extensivo aos espólios integrais de outros dois programas de absoluta referência na História da Rádio Portuguesa e detentores de valor cultural/documental perene e elevado: "Lugar ao Sul", de Rafael Correia, e "Questões de Moral", de Joel Costa.
Capa da 1.ª edição do livro "O Teatro Invisível: História do Teatro Radiofónico", de Eduardo Street, pref. Ruy de Carvalho (Col. Antestreia, vol. 7, Lisboa: Página 4, 2006)
Capa da 2.ª edição do livro "O Teatro Invisível: História do Teatro Radiofónico", de Eduardo Street, pref. Ruy de Carvalho (Lisboa: Glaciar, 2023)
Florência nos inícios da década de 1970 – fotografia publicada na capa do EP "Poema do Meu Anseio" (Orfeu ATEP 6449, 1972) e na capa da compilação em LP "Florência" (Orfeu SB-1061, 1973).
Não é raro intérpretes da canção ligeira competentes e dotados de bela e expressiva voz granjearem popularidade através de espécimes que, embora não sendo de deitar fora, não se incluem propriamente no melhor dos respectivos repertórios. Florência, que muitos apenas associam a duas joviais e despretensiosas cantigas parafolclóricas que alcançaram grande êxito – "Moda da Amora Negra" e "De Rosa ao Peito" –, é um desses casos paradigmáticos. João Carlos Callixto, na edição ontem emitida do seu programa "Gramofone" [>> RTP-Play], que consagrou por inteiro a Florência, falecida no passado 18 de Julho, teve a mui louvável preocupação de dar a ouvir alguns registos de conteúdo mais profundo e de padrão estético mais elaborado que ficaram na penumbra. E o blogue "A Nossa Rádio" preza em associar-se à homenagem a Florência, dona de uma voz de timbre muito belo e harmonioso, condizente com a sua bonita fisionomia, resgatando outro trecho poético-musical de verdadeira antologia que poucos dos visitantes deste sítio terão alguma vez ouvido: o primoroso fado "De Mãos Vazias", com letra e música, respectivamente, de José Guimarães e de Resende Dias, a parelha de autores que concebeu a maioria do repertório original de Florência (a artista também gravou, além de cantigas da tradição popular, um número apreciável de canções e de fados criados por colegas de ofício, com Amália em primeiro lugar). O mencionado fado foi primeiramente publicado no álbum "Florência Canta Fado" (Orfeu/Arnaldo Trindade, 1980) e incluído, vinte anos mais tarde, na compilação em CD dedicada à intérprete que integra a colecção Clássicos da Renascença editada pela Movieplay.
As palavras de José Guimarães, como é fácil de perceber, continuam bem actuais no presente mundo onde a maldade recrudesceu de modo despudorado e, ante ela, se impõe às pessoas de bem como absolutamente imperiosa a denúncia e – ainda mais importante! – a acção vigorosa e denodada para lhe pôr cobro. Porque ficar-se passivo, acomodado na indiferença ou tolhido pelo desânimo, é abrir mão da liberdade e renunciar à dignidade, condições essenciais ao ser humano. Boa escuta!
De Mãos Vazias
Letra: José Guimarães
Música: Resende Dias
Intérprete: Florência* (in LP "Florência Canta Fado", Orfeu/Arnaldo Trindade, 1980; CD "Florência", Col. Clássicos da Renascença, vol. 49, Movieplay, 2000)
De mãos vazias, sem nada de nada,
Um pouco de céu pretendo alcançar;
São os meus dias janela fechada
Onde não há madrugada,
Onde a luz não quer entrar;
Ai dos meus dias que são tudo e não são nada:
São liberdade amarrada,
São silêncios a falar.
Olhos fechados... para a maldade não ver;
Braços cruzados..., deixar a vida correr;
Lábios cerrados... e não dizer a verdade,
Mas ter voz e estar calada é perder a liberdade.
Meu grito aberto, meu grito calado
Eu atiro ao vento sem ninguém ouvir;
Longe e tão perto, princípio acabado
Onde o meu olhar cansado
Anda a sonhar sem dormir:
Tudo é deserto no meu sonho povoado,
Onde um povo amordaçado
Não sabe cantar nem rir.
Olhos fechados... para a maldade não ver;
Braços cruzados..., deixar a vida correr;
Lábios cerrados... e não dizer a verdade,
Mas ter voz e estar calada é perder a liberdade.
[instrumental]
Lábios cerrados... e não dizer a verdade,
Mas ter voz e estar calada é perder a liberdade.
* Florência – voz
António Chainho e José Luís Nobre Costa – guitarras portuguesas
José Maria Nóbrega e Francisco Gonçalves – violas de fado
Raul Silva – viola baixo