
Ruy Mingas (1939-2024) – fotografia publicada na capa do LP "Temas Angolanos" (Zip-Zip/Sassetti, 1974)
Apresentação da voz
Quem está cantando? Negro ou voz de um povo?
Assim que a gente sente, logo-logo. A voz é dolorosa, cheia demais para ser duma pessoa só, madura demais. Voz mais-velha, esta que a gente está ouvir. Não nasceu ontem, não é filha alheia — vem de cinco séculos, não cala nunca, não cala. E a gente ouve o berro: monangambéééé! — e somos capazes de começar sorrir já na dor que a palavra tem, a dor de lhe sabermos sinónimo de escravo. Porque damos encontro a sabedoria deve sofrimento de séculos, um filho do povo já afirma: "eu não espero" / "eu sou aquele por quem se espera".
O povo angolano sabe, Rui Mingas sabe, sua voz marca hierarquias: "desdém" (mal se ouve!) "fuba podre" (constata só) "peixe podre" (quase um rir), "panos ruins" (ironia numa «civilização colonizadora») "cinquenta angolares" — é aqui que a voz berra, a mais desumana violência dum sistema de opressão é o capital. E o "porrada se refilares" final é já dito como quem reza na igreja, oração sabida de cór: se a gente nascemos já com a porrada na barriga da mãe!…
Aqui está uma das vozes libertadores de Angola — de Africa, do Mundo portanto. Com Agostinho Neto, negro poeta angolano, denuncia; denuncia com António Jacinto, poeta branco angolano; denuncia com Mário de Andrade, mestiço, poeta, angolano. E com aquele que o nosso irmão e filho e tudo mais quanto é, brasileiro, nosso mais-velho poeta, Solano Trindade, ainda pergunta:
Quem está gemendo?
Negro ou carro de bois?
Este disco é a resposta: quem está gemendo é carro de bois! Negro, esse, já está cantando — Rui Mingas, angolano.
LUANDINO VIEIRA
[texto publicado na contracapa do
EP "Monangambé", de Ruy Mingas,
Zip-Zip/Sassetti, 1974]
Quando musicados e cantados, alguns poemas têm o sortilégio de se tornarem os hinos de uma causa ou de denúncia de determinada injustiça. Foi o caso do poema "Monangamba", escrito por António Jacinto, poeta branco angolano, como o definiu o seu compatriota José Luandino Vieira, e publicado em letra de forma na colectânea "Poemas", pela Casa dos Estudantes do Império, em 1961, por coincidência o ano da eclosão, em terras de Angola, da Guerra Colonial, que, treze anos mais tarde, o também angolano (negro) Ruy Mingas gravou, com música da sua autoria, sob o título "Monangambé", para o EP homónimo editado pela Sassetti, com o selo Zip-Zip. Antes de 1974, Ruy Mingas já havia gravado outras canções (o seu primeiro álbum saiu em 1970) e muitas mais viria a gravar mas o "Monangambé" ficou como o seu grande cartão-de-visita. Sempre que o nome do artista é referido, de imediato alguém minimamente informado o associa àquela emblemática canção.
A independência de Angola, formalizada há precisamente meio século, tornou os "monangambés" (escravos) uma memória triste da opressão colonial salazarista, mas é avisado não esquecê-la, ademais verificando-se hoje o recrudescimento de ideais racistas e xenófobos um pouco por todo o mundo desenvolvido a par da indecorosa e feroz sanha neoliberal de ataque a direitos básicos e elementares dos trabalhadores. Actualmente, patrões sem escrúpulos e certos políticos do chamado Primeiro Mundo (Portugal incluído) desprovidos de sentido humanista/ético mostram não ter o menor pejo em (querer) fazer dos trabalhadores os novos "monangambés". A tais ímpetos desumanizantes é imperioso contrapor firme resistência e as palavras certeiras de António Jacinto impressivamente cantadas por Ruy Mingas ajudam, sem dúvida, a fortalecer o ânimo para a luta. Monangambés nunca mais!
Não costumamos ouvir a RDP-África mas queremos acreditar que Ruy Mingas lá passe com alguma frequência (seria assaz anormal se acontecesse o contrário, tratando-se de um dos nomes grandes da música angolana). Seria bom que a Antena 1 desse igualmente a escutar aos seus ouvintes, uma vez por outra, algo do repertório de Ruy Mingas. A relação amistosa que Portugal deve manter com Angola exprime-se também por essas acções.
Monangambé
Poema: António Jacinto (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Ruy Mingas
Intérprete: Ruy Mingas* (in EP "Monangambé", Zip-Zip/Sassetti, 1974; LP "Monangambé e Outras Canções Angolanas", Zip-Zip/Sassetti, 1976, reed. Strauss, 1994, CNM, 2000)
Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações,
Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado,
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado!
Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre, | bis
panos ruins, cinquenta angolares |
«porrada se refilares»? [bis]
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande — ter dinheiro?
— Quem?
E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
— «Monangambééé...» [bis]
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
— «Monangambééé...» [5x]
* Ruy Mingas – voz
Produção – Sassetti
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ruy_Mingas
https://www.publico.pt/2024/01/04/culturaipsilon/noticia/morreu-ruy-mingas-musico-lutador-liberdade-cantor-homem-politico-2075758
https://music.youtube.com/channel/UCgoa6Oms8IAEoycukvf07ag
MONANGAMBA
(António Jacinto, in "Poemas", Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961 – p. 21-23; "No Reino de Caliban – Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa: Vol. II – Angola, São Tomé e Príncipe", Organização, selecção, prefácio e notas de Manuel Ferreira, Lisboa: Seara Nova, 1976, 2.ª edição, Lisboa: Plátano Editora, 1988 – p. 135-136; "50 Poetas Africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe", Org. Manuel Ferreira, Lisboa: Plátano Editora, 1989, 2.ª edição, 1997 – p. 39-41; "António Jacinto: Obra Reunida", Organização, introdução e notas de Zetho Cunha Gonçalves, Lisboa: Maldoror, 2025)
Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações,
Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado,
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado!
Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
«porrada se refilares»?
Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
— Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande — ter dinheiro?
— Quem?
E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
— «Monangambééé...»
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
— «Monangambééé...»

O poeta António Jacinto (1924-1991)
(in https://www.facebook.com/ospoetasdeangola)

Capa do livro "Poemas", de António Jacinto (Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961)
Concepção – Luandino Vieira

Capa do volume "Obra Reunida", de António Jacinto; Organização, introdução e notas de Zetho Cunha Gonçalves (Lisboa: Maldoror, Abr. 2025)

Capa da 1.ª edição do livro "No Reino de Caliban – Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa: Vol. II – Angola, São Tomé e Príncipe", Organização, selecção, prefácio e notas Manuel Ferreira (Lisboa: Seara Nova, 1976)

Capa da 2.ª edição do livro "No Reino de Caliban – Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa: Vol. II – Angola, São Tomé e Príncipe", Organização, selecção, prefácio e notas Manuel Ferreira (Lisboa: Plátano Editora, 1988)

Capa do livro "50 Poetas Africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe", Org. Manuel Ferreira (Lisboa: Plátano Editora, 1989)

Capa do EP "Monangambé", de Ruy Mingas (Zip-Zip/Sassetti, 1974)

Capa do LP "Monangambé e Outras Canções Angolanas", de Ruy Mingas (Zip-Zip/Sassetti, 1976)
Reedição do álbum "Angola: Canções por Rui Mingas" (Zip-Zip, 1970), tendo o tema "Mu Cinkola" (primeira faixa) sido substituído por "Monangambé".

Capa da mais recente reedição em CD do álbum anterior (CNM, 2000).
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Outro artigo com poesia de António Jacinto:
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)







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