22 setembro 2025

Ricardo Reis: "Quando, Lídia, vier o nosso outono", por Luís Lucas


© Drazen Nesic, Out. 2021
(in https://pixnio.com/)


[CARPE DIEM]

Tu não perguntes (é-nos proibido pelos deuses saber) que fim a mim, a ti,
os deuses deram, Leucónoe, nem ensaies cálculos babilónicos.
Como é melhor suportar o que quer que o futuro reserve,
quer Júpiter muitos invernos nos tenha concedido, quer um último,
este que agora o tirreno mar quebranta ante os rochedos que se lhe opõem.
Sê sensata, decanta o vinho, e faz de uma longa esperança
um breve momento. Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo:
colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã.

            HORÁCIO, ode 11 do Livro I,
            Trad. Pedro Braga Falcão
            (in "Odes e Epodos", de Horácio,
            Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2022 – p. 87)

Notas:
1. cálculos babilónicos – horóscopos;
2. colhe cada dia – tradução de carpe diem, a mais conhecida expressão horaciana, também passível de ser vertida como "colhe o dia", "colhe o fruto do dia" ou "colhe cada fruto do dia".


[...]
Como forma de concluirmos esta introdução, poderá ser também interessante colocar em contraste com este poeta renascentista [António Ferreira] outro dos maiores vultos da língua portuguesa, Fernando Pessoa, como forma de exemplificarmos o modo por vezes coincidente, outras irreconciliável como Horácio foi sendo reinterpretado nas diversas vozes da literatura ocidental. Referimo-nos mais concretamente a Ricardo Reis, o heterónimo pessoano «latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria» (tal como Pessoa o define numa carta a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935). Nas suas odes — conscientemente assim apelidadas pelo seu autor —, o poeta simula algo semelhante a uma «estrofe alcaica» e uma «estrofe sáfica» (tal como Álvaro de Campos as descreve), tentando recriar em português a sonoridade de uma ode horaciana, experimentando e variando tanto ou mais quanto o próprio António Ferreira tinha feito, desta vez já sem o espartilho da rima. Este experimentalismo é como que um manifesto artístico em alguém que estudou de forma atenta o latim métrico de Horácio, tal como podemos atestar no rascunho de um tratado que se intitularia Nova Métrica (cf. Fernando Lemos, Fernando Pessoa e a Nova Métrica, Inquérito, 1993): é a procura da tal varietas tão querida ao poeta romano. Mas a aproximação formal é apenas uma das diversas perspectivas com que podemos estudar a lírica ricardiana: ao nível da temática, aquilo que Reis decide ou não imitar diz muito da sua personalidade literária. Ao contrário de Ferreira, como seria de esperar, ao heterónimo pessoano pouco ou nada interessa a face mais política ou social das odes horacianas, nem a sua essência dialógica (quase não há dedicatórias nas odes de Reis, e grande parte não tem destinatário definido). Mesmo o discurso metapoético, ainda que aflorado em odes como «Quero versos que sejam como jóias» (ode 55 na ed. de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, 2007), poema onde aliás o nome de Horácio é explicitamente referido, não é central em Reis. Para além do formalismo da ode, da sua estrutura rítmica diversa, e daquele tal tom solene e rebuscado, típico da ode latina, são os poemas de Horácio sobre a natureza humana que mais parecem interessar ao heterónimo pessoano: a busca de uma simplicidade que escapa continuamente ao homem, o motivo do carpe diem e da inexorabilidade da morte, a omnipotência da fortuna, a efemeridade da alegria e do prazer, posta no contexto da imagética do banquete e do elogio do vinho, tão caros à estética horaciana. Mesmo na temática amorosa, temos de ter algum cuidado nas eventuais aproximações que possamos fazer. O nome de Lídia, obviamente, é uma vénia ao poeta romano, mas toda a sexualidade e erotismo típicos do autor latino são como que expurgados numa presença feminina que parece habitar nos poemas pessoanos, não no corpo de uma mulher, mas num espírito algo descarnado. De facto, os nomes das amadas de Horácio são interpelados nas odes de Reis apenas como isso: simples nomes, sem nenhuma daquela carga sexual com que o romano as encena nas suas odes, isto para além do facto de o amor homoerótico, comum na lírica de Horácio, estar de todo ausente das odes de Reis.
[...]

                   PEDRO BRAGA FALCÃO
                   (Da Introdução a "Odes e Epodos", de Horácio,
                   Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2022 – p. 44-46)


Prosseguindo a celebração de Fernando Pessoa, neste ano do noventenário da sua morte, assinalamos o equinócio do Outono com uma ode do seu heterónimo horaciano, Ricardo Reis: aquela que tem como incipit "Quando, Lídia, vier o nosso outono", na leitura irrepreensível do actor Luís Lucas, que os deuses chamaram a si há menos de um mês. Boa escuta! Carpe diem!

Ainda não nos demos conta, no ano em curso, o qual já só está a pouco mais de dois meses de 30 de Novembro (dia preciso da efeméride da morte de Fernando Pessoa), de qualquer inicitiva nas antenas nacionais da rádio pública visando celebrar o nosso maior poeta do século XX. Vão limitar-se a uma simples evocação naquela data, do tipo "toca-e-foge", e nada mais?



Quando, Lídia, vier o nosso outono



Poema de Ricardo Reis (in "Presença: Folha de Arte e Crítica", N.º 31-32, Coimbra: Mar.-Jun. 1931 – p. 10; "Odes de Ricardo Reis", Col. Obras Completas de Fernando Pessoa, Vol. IV, Lisboa: Edições Ática, 1946, 1987 – p. 120; "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva, Col. Obras de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, 2007, 2023; "Poemas de Ricardo Reis", Org. Luiz Fagundes Duarte, Col. Pessoana Edições, Vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015 – p. 25)
Dito por Luís Lucas* (in livro/2CD "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX": CD 1, Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004)


Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
          Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo actual que as folhas vivem
          E as torna diferentes.

                                             13-6-1930

* Luís Lucas – voz

Selecção de poemas e direcção de actores – Gastão Cruz
Coordenação editorial – Teresa Belo
Gravado e masterizado por Artur David e João Gomes, no Estúdio Praça das Flores, Lisboa, em Outubro de 2004
Supervisão de gravação – Vasco Pimentel
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Lucas
https://artistasunidos.pt/luis-lucas/



Capa do livro "Odes e Epodos", de Horácio; tradução, introdução e notas: Pedro Braga Falcão (Lisboa: Edições Tinta-da-China, Set. 2022)
Concepção – Vera Tavares (Edições Tinta-da-China)



Capa do N.º 31-32 da revista "Presença: Folha de Arte e Crítica" (Coimbra: Mar.-Jun. 1931)
Desenho – Sara Afonso



Página 10 da publicação anterior onde consta a ode "Quando, Lídia, vier o nosso outono", de Ricardo Reis



Capa da 1.ª edição do livro "Odes de Ricardo Reis" (Col. Poesia, Série 'Obras Completas de Fernando Pessoa', Vol. IV, Lisboa: Edições Ática, 1946)
Desenho – José de Almada Negreiros



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva (Col. Obras de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, Out. 2000)



Capa da 2.ª edição do livro "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva (Col. Obras de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007)



Capa da 3.ª edição do livro "Poesia de Ricardo Reis", Org. Manuela Parreira da Silva (Col. Obras de Fernando Pessoa, Porto: Assírio & Alvim, Mai. 2023)



Capa do livro "Poemas de Ricardo Reis", Org. Luiz Fagundes Duarte (Col. Pessoana Edições, Vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Abr. 2015)



Capa do livro (com 2 CD) "Ao Longe os Barcos de Flores: Poesia Portuguesa do Século XX" (Col. Sons, Assírio & Alvim, 2004).
Imagem heliográfica – Lourdes Castro ("Mangueiro", in Grand Herbier d'Ombres, 1972)

____________________________________________

Outros artigos com poesia de Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimos):
João Villaret: centenário do nascimento
Ser Poeta
Fernando Pessoa por João Villaret
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Dois Excertos de Odes", por Mário Viegas
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto
Em memória de Tereza Tarouca (1942-1919)
Cantos de Natal da Galiza e de Portugal
Celebrando Jorge Croner de Vasconcellos
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Álvaro de Campos: "Soneto Já Antigo", por Luís Lucas

____________________________________________

Outros artigos com poesia dita por Luís Lucas:
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Em memória de Herberto Helder (1930-2015)
Celebrando Eugénio de Andrade
Álvaro de Campos: "Soneto Já Antigo", por Luís Lucas

Sem comentários: