15 outubro 2025

Álvaro de Campos: "Aniversário", por Germana Tânger


© Américo Meira (in https://aopedaraia.blogspot.com/)
Álvaro de Campos segundo o traço de Almada Negreiros – pormenor das gravuras incisas no pórtico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1961.


Álvaro de Campos nasceu em Tavira, a 15 de Outubro de 1890, à uma e meia da tarde. Frequentou o liceu em Portugal e teve um tio padre [beirão] que lhe ensinou latim. Foi mandado para Glasgow, na Escócia, para estudar Engenharia, primeiro Mecânica e depois Naval. Foi aí que se formou. Viajou muito pela Europa e numa viagem ao Oriente colheu inspiração para «Opiário», um poema irónico sobre temas decadentes: o transatlântico, o ópio, o exotismo.
Viveu em Lisboa sem exercer nenhuma profissão, dedicando-se completamente à literatura e às polémicas modernistas, intervindo também nos jornais a propósito de actualidades da vida política portuguesa, o que lhe atraiu algumas antipatias.
Foi o único dos heterónimos a frequentar Fernando Pessoa, segundo uma confidência do próprio Pessoa:

«A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Álvaro de Campos.»

Era um homem alto, de cabelo preto e liso, risca ao lado, monóculo. A sua figura lembra, não só nas atitudes como no porte, um certo tipo de dandy entediado e blasé.
Fernando Pessoa constrói com Álvaro de Campos a figura do perfeito vanguardista do século XX. Quando nasce, esta figura já se encontra na sua plena maturidade criativa de vanguardista e manifesta-se com uma arrebatada ode de sabor futurista e whitmaniano intitulada «Ode Triunfal». Aí se cantam ruidosamente os mitos e os gostos típicos do início do século passado: a máquina, a velocidade, a metrópole, a electricidade...
Álvaro de Campos manifesta uma modernolatria que é o carácter mais vistoso da sua personagem. Modernolatria que se traduz muitas vezes numa forte polémica ou agressividade em relação à tradição literária vigente, ao statu quo cultural, ao conformismo. É sem dúvida esta atitude que inspira o «Ultimatum», um violento manifesto literário de ruptura com a tradição e que Pessoa publicará, em 1917, na revista «Portugal Futurista».
O facto de utilizar um instrumento expressivo como o manifesto é já em si sintomático na caracterização de uma personagem como Álvaro de Campos. O manifesto é o instrumento privilegiado de declaração poética para as mais importantes vanguardas do século XX e Campos sigla pertencer à vanguarda mais ruidosa precisamente com o seu «Ultimatum».
Esta chave vanguardista pode ler-se também na maior composição de Campos, a «Ode Marítima», na qual se revisitam, em termos novecentescos, os grandes temas e os grandes motivos da história e do imaginário colectivo português.
Ora Fernando Pessoa querendo construir uma personagem mais completa e auto-suficiente cogita um antes para Álvaro de Campos. Com o poema «Opiário» que publica retrodatado, Pessoa inventa para Campos um passado de irónico decadente, de tardo-simbolista blasé, de burguês culto e entediado.
Tem-se todavia a impressão de que na sucessiva evolução da figura de Campos, a vontade de pessoana fique mais na sombra e as mudanças sejam intrínsecas à própria figura da personagem — a qual parece ter adquirido total autonomia. Não nos podemos esquecer que Campos foi o único heterónimo que misturou a sua vida à vida de Pessoa e que se permitiu até a intrusões na esfera privada do seu criador.
O exemplo mais desconcertante ocorre durante a história afectiva que Pessoa viveu com Ophélia Queiroz e durante a qual Campos pôs em prática interferências que são evidentes na correspondência trocada com Ophélia.

«Ex.ma Senhora D. Ophélia Queiroz:

Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca — que V. Ex.ª está proibida de: pesar menos gramas, comer pouco, não dormir nada, ter febre, pensar no indivíduo em questão.
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
Cumprimenta V. Ex.ª

Álvaro de Campos, Engenheiro Naval»

É evidente que esta intrusão se verifica no plano de uma ironia paradoxal, mas mesmo assim a coisa não deixa de nos espantar devido à sua ambiguidade.
Quanto à escrita, propriamente dita, de Álvaro de Campos é o heterónimo Ricardo Reis que a caracteriza:

«O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior determina-os ele pelos fins dos versos.
Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.
Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo género de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmónica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela a ordem que no ritmo há.»

Esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Fernando Pessoa, da autoria de Maria José de Lancastre.
(in https://imprensanacional.pt/alvaro-de-campos/)



Capa da 1.ª edição do livro "O Essencial sobre Fernando Pessoa", de Maria José de Lancastre (Col. Essencial, Vol. 9, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985)



Capa da 2.ª edição do livro "O Essencial sobre Fernando Pessoa", de Maria José de Lancastre (Col. Essencial, Vol. 9, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998)


Assinalamos o 135.º aniversário natalício de Álvaro de Campos, dando destaque a um seu poema que não podia vir mais a propósito, embora a escolha seja a mais óbvia: "Aniversário". A 13 de Junho de 2018, por ocasião do 130.º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa, apresentámos o poema dito por Luís Lima Barreto [cf. Fernando Pessoa/Álvaro de Campos: "Aniversário", por Luís Lima Barreto], pelo que hoje, resgatamos a gravação mais antiga das duas de Germana Tânger que integram o audiolivro "Poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ditos por Germana Tânger", publicado em 2004, com chancela da Assírio & Alvim. O poema "Aniversário", de Álvaro de Campos, era dos mais queridos da distinta dizedora [é disso prova tê-lo escolhido para dizer no programa "Câmara Clara", de Paula Moura Pinheiro, emitido a 15 Jun. 2008 >> YouTube], o que nos permite imaginar que lá no assento etéreo onde repousa esboce um sorriso ao nosso gesto de trazer à tona, neste ano em que se comemora o seu 105.º aniversário (nasceu em 1920, a 16 de Janeiro), o registo de um momento feliz e jubiloso do recital que deu no Teatro de São Luiz, no limiar da década de 1970. Boa escuta!

Germana Tânger também disse muita e boa poesia de língua portuguesa na rádio pública, designadamente nos programas "Tempo de Poesia" e "Poesia de um Só Poeta" (1973) [>> RTP-Arquivos]. Seria bom que a nova direcção de programas das Antenas 1 e 3 não deixasse terminar o ano sem emitir um ciclo de homenagem à saudosa dizedora com registos extraídos daqueles programas, o qual poderia muito bem começar pela poesia pessoana, tendo em conta a efeméride que se aproxima do noventenário da morte do genial poeta dos heterónimos.



ANIVERSÁRIO



Poema de Álvaro de Campos (in "Presença: Folha de Arte e Crítica", N.º 27, Coimbra, Jun.-Jul. 1930 – p. 2; "Poesias de Álvaro de Campos", Col. Poesia, Série 'Obras Completas de Fernando Pessoa', Vol. II, Lisboa: Edições Ática, 1944, 1993 – p. 284-286; "Álvaro de Campos: Vida e Obras do Engenheiro", Introdução, organização, transcrição e notas de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Editorial Estampa, 1990; "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Editorial Estampa, 1993; "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes, Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, 2013, 2019 – p. 403-405)
Recitado por Germana Tânger* (in livro/CD "Poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ditos por Germana Tânger", Col. Sons, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004)


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

                                   15 de Outubro de 1929


* Germana Tânger – voz

Gravado ao vivo no Teatro São Luiz, no início da década de 1970, por ocasião de um recital de poesia e piano por Germana Tânger e Adriano Jordão
URL: https://www.facebook.com/100066840612877/posts/2826185817445900/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Germana_T%C3%A2nger
https://expresso.pt/cultura/2018-01-23-Morreu-a-declamadora-Germana-Tanger-a-voz-de-Alvaro-de-Campos
https://www.publico.pt/2018/01/23/culturaipsilon/noticia/morreu-a-actriz-e-declamadora-germana-tanger-a-voz-de-alvaro-de-campos-1800391
https://www.e-cultura.pt/artigo/22789
http://www.voxmedia.uc.pt/index.php/2018/01/29/germana-tanger-e-os-poetas-dizer-poesia/



Capa do N.º 27 da revista "Presença: Folha de Arte e Crítica" (Coimbra, Jun.-Jul. 1930)
Desenho – Olavo d'Eça Leal (com dedicatória ao escultor Diogo de Macedo)



Página 2 da publicação anterior onde consta o poema "Aniversário", de Álvaro de Campos



Capa da 1.ª edição do livro "Poesias de Álvaro de Campos" (Col. Poesia, Série 'Obras Completas de Fernando Pessoa', Vol. II, Lisboa: Edições Ática, 1944)
Desenho – José de Almada Negreiros




Capa do livro "Álvaro de Campos: Vida e Obras do Engenheiro", Introdução, organização, transcrição e notas de Teresa Rita Lopes (Lisboa: Editorial Estampa, 1990)



Capa do livro "Álvaro de Campos: Livro de Versos", Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes; colaboração de Manuela Parreira da Silva e de Luísa Medeiros (Lisboa: Editorial Estampa, 1993)



Capa da 3.ª edição do livro anterior (Lisboa: Editorial Estampa, 1997)



Capa da 1.ª edição do livro "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002)



Capa da 2.ª edição do livro "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013)



Capa da 3.ª edição do livro "Poesia de Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (Col. Obras de Fernando Pessoa, Vol. 16, Porto: Assírio & Alvim, 2019)



Capa da do livro "Fernando Pessoa: Vida e Obras do Engenheiro Álvaro de Campos", Org. Teresa Rita Lopes (São Paulo: Global Editora, 2019)



Capa do livro/CD "Poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ditos por Germana Tânger" (Col. Sons, Lisboa: Assírio & Alvim, Set. 2004)
Fotografia – Inês Gonçalves (2004).

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