
Amália Rodrigues, 1952, fotografada em Nova Iorque por Bruno Bernard, mais conhecido por Bernard of Hollywood, Museu Nacional do Teatro e da Dança (MNTD 199519) [Raiz].
Considerando a data averbada no assento de nascimento de Amália, que é a que, mesmo carecendo de exactidão cronológica, conta para efeitos burocráticos, a preeminente artista completaria hoje 105 anos de idade. Assinalamos a efeméride dando destaque a um fado da nossa particular afeição e que ela também tinha entre os seus predilectos (prova-o tê-lo gravado várias vezes e incluído em múltiplas actuações ao vivo): "Que Deus me Perdoe". Escolhemos a versão presente no álbum "Amália no Olympia" que corresponde a uma gravação ao vivo feita na mítica sala parisiense em Abril de 1956. Não foi ela quem escreveu a letra [tem a assinatura do poeta Silva Tavares (1893-1964), que a concebeu expressamente para Amália cantar, em 1946, na opereta "Mouraria", evocativa da fadista oitocentista Maria Cesária], mas era como se tivesse saído do seu punho, tão esplendidamente exprime a sua alma fadista e define a sua personalidade e idiossincrasia artística. Aliás, Amália não era pessoa para cantar versos com os quais não se identificasse, atitude que só abona a favor da sua dignidade de artista grande e autêntica. Não surpreende, por isso, que ela se tenha recusado a cantar a letra original do "Fado da Cesária" que Adelina Fernandes interpretara, duas décadas antes, na mesma opereta [texto e áudio >> YouTube] e pedido ao autor que lhe escrevesse uma nova letra. E ele assim fez, a pensar menos na fadista Cesária do séc. XIX e mais em Amália que, aos 26 anos de idade, já era considerada a maior intérprete de fado de que havia memória.
Note-se na maneira superiormente inteligente como Amália canta este seu fado biográfico, com música de Frederico Valério, ajustando a voz ao sentido das palavras, contendo-a e só a alteando nos momentos em que a letra o pede, como acontece no dístico "Cantando dou brado / E nada me dói". E ali o seu portentoso brado justifica-se com a máxima propriedade! Uma lição de magistral interpretação que devia ser aprendida por certas cantadeiras (pretensamente fadistas) que por aí andam, cujo aparelho vocal é muito inferior do de Amália, e se esganiçam todas por dá cá aquela palha.
A talhe de foice, uma interrogação: está Amália acaso representada na 'playlist' da Antena 1? Temos sérias dúvidas de que sim, uma vez que nada do seu vastíssimo repertório lográmos apanhar nas incursões que ultimamente fizemos à emissão do canal generalista da rádio do Estado. A confirmar-se, a situação demonstra clamorosa leviandade e inconsciência da parte de quem administra a programação musical, pela simples razão de que o país tem uma colossal dívida de gratidão para com Amália – justamente por ter sido a maior embaixatriz da cultura portuguesa além-fronteiras e por ter legado a Portugal (e ao mundo lusófono, e não só) uma obra fonográfica de descomunal dimensão, em quantidade e qualidade.
Que Deus me Perdoe
Letra: Silva Tavares (para a opereta "Mouraria", 1946, Teatro Apollo, Lisboa)
Música: Frederico Valério
Intérprete: Amália Rodrigues* [in LP "Amalia à l'Olympia", Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, 1957; LP "Amália no Olympia", Columbia/VC, 1970, reed. EMI-VC, 1988, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008; CD "Amália no Olympia" (Remastered), Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011; 5CD "Amália em Paris": CD 1, Edições Valentim de Carvalho, 2020]
[instrumental]
Se a minha alma fechada
Se pudesse mostrar,
E o que eu sofro calada
Se pudesse contar,
Toda a gente veria
Quanto sou desgraçada,
Quanto finjo alegria,
Quanto choro a cantar...
Que Deus me perdoe
Se é crime ou pecado,
Mas eu sou assim
E fugindo ao fado
Fugia de mim;
Cantando dou brado
E nada me dói;
Se é pois um pecado
Ter amor ao fado,
Que Deus me perdoe.
Quando canto não penso
No que a vida é de má,
Nem sequer me pertenço,
Nem o mal se me dá:
Chego a crer, na verdade,
E a sonhar – sonho imenso –
Que tudo é felicidade
E tristeza não há.
Que Deus me perdoe
Se é crime ou pecado,
Mas eu sou assim
E fugindo ao fado
Fugia de mim;
Cantando dou brado
E nada me dói;
Se é pois um pecado
Ter amor ao fado,
Que Deus me perdoe.
[instrumental]
Cantando dou brado
E nada me dói;
Se é pois um pecado
Ter amor ao fado,
Que Deus me perdoe.
* Amália Rodrigues – voz
Domingos Camarinha – guitarra portuguesa
Santos Moreira – viola
Gravado no Teatro Olympia, Paris, em Abril de 1956
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g

Capa da 1.ª edição francesa do LP "Amalia à l'Olympia" (Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, Jan. 1957)
Fotografia – Sabine Weiss

Capa da 1.ª edição britânica do LP "Amália at the Paris Olympia" (Columbia, 1957)

Capa da 2.ª edição francesa do LP "Amalia à l'Olympia" sob o título "Les succès d'Amalia Rodrigues" (Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, 1965)

Capa da 3.ª edição francesa do LP "Amalia à l'Olympia" (Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, 1967)

Capa da 1.ª edição portuguesa do LP "Amália no Olympia" (Columbia/VC, 1970)

Capa da nova edição portuguesa (remasterizada) em CD do álbum "Amália no Olympia" (Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011)
Fotografia – Sabine Weiss

Capa da caixa (5CD + livro) "Amália em Paris" (Edições Valentim de Carvalho, 23 Jul. 2020)

Capa do livro "Amália at the Olympia", de Lila Ellen Gray (Col. 33 1/3 Europe, Nova Iorque: Bloomsbury, Ago. 2023)
Fotografia – Sabine Weiss
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Outros artigos com repertório interpretado por Amália ou da sua autoria:
Ser Poeta
Celebrando Vinicius de Moraes
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Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
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Amália: dez anos de saudade
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