
(in https://www.rtp.pt/programa/radio/)
«Um velho camarada de ofício que já cá não anda, necessitado de um papel carimbado de um qualquer balcão administrativo, enfrentou o inquérito da funcionária entufada, cujo olhar não acompanhava as perguntas. Ela despachou o questionário, sem uma só vez fitar a sua urgência resignada, ele respondeu com uma secura contrafeita. Nome? Fulano de tal. Idade? Tanta. Data de nascimento? Tantos do tal. Morada? Rua tal, em tal sítio. Profissão? E ele, impassível, tomado por secreto demónio, esticando a corda: Encantador de serpentes.
A funcionária entufada, escreveu, sem o mínimo sobressalto de sobrancelhas, sem inopinado estremecimento de espanto ou de menosprezo. Pergunta seguinte.
Muitas vezes me lembro desta história e logo entreteço um inventário de ofícios sublimes. Herberto Helder, que sabia das palavras a música secreta, regressou de Luanda e escreveu, na página 14 de "Photomaton & Vox": "Gostaria de ser entrançador de tabaco". Há tempos descobri que existem rebocadores de icebergs e especialistas em dormir, tipos pagos para dormir. Talvez haja tipos pagos para sonhar, talvez não. Se eu pudesse escolher ofício para os dias futuros procuraria aquele que me permitisse ver passar navios.
Manoel de Barros, meu poeta mais amado, imaginou-se apanhador de desperdícios. Ele acreditava que nascera para administrar o à toa, o em vão, o inútil. A fasquia dele era tanto mais alta quanto menos soprada de caganças. Ele passou a vida a colher palavras mágicas de tudo o que o seu olhar tocava, mas avisou: "Não gosto de palavra acostumada". Disse-o de mil maneiras. Assim, por exemplo: "Palavras que me aceitam como sou, eu não aceito".
Cada um é para o que nasce, será que sim? Quando nasci, nenhum anjo me disse "vai ser gauche na vida" e eu fui.
Mas na verdade não quis ser outra coisa além de recolector de palavras perdidas. Não fiz outra coisa senão colher da árvore prodigiosa as palavras mais belas, alaúde, cítara, veleiro, rododendro, andarilho. A pouco mais aspirei.
Mas os dias não se apresentam propícios.
Até sempre.» [Fernando Alves, "Nota final sobre os improváveis ofícios", in "Os Dias que Correm", 30 Jun. 2025]
Depois de escutarem esta crónica, quando foi transmitida hoje de manhã pela Antena 1, os ouvintes que conhecem razoavelmente a poesia de Eugénio de Andrade, terão dito para os seus botões ou para quem, porventura, que os acompanhava nessa experiência: «Que bem ficava o poema "As Palavras", do autor de "Coração do Dia", a rematar as que Fernando Alves redigiu e leu hoje aos microfones da rádio pública!» Ficava bem, sem dúvida alguma, mas assim não aconteceu. Nada de nada, mais uma vez! Para que conste, aqui vos deixamos o tal poema na voz do autor.
De entre os qualificativos que Eugénio de Andrade dá às palavras, o que não se aplica às de Fernando Alves, nas suas imperdíveis crónicas – outrora denominadas "Sinais" (na TSF-Rádio Jornal) e desde Setembro de 2024 "Os Dias que Correm" (na Antena 1) –, é "inocentes" e também escassíssimas vezes as suas palavras foram "de orvalho apenas". E grafamos 'foram' porque Fernando Alves fechou a crónica de hoje em tom de despedida dando a entender («os dias não se apresentam propícios») que não querem deixá-lo continuar a exercer, na rádio pública, o seu admirável mister de «recolector de palavras perdidas». Quer parecer-nos que o eminente cronista foi também incluído na purga, que a administração tem vindo a levar a cabo, de colaboradores aposentados altamente qualificados sob o argumento de que «os aposentados, reformados, reservistas fora de efectividade e equiparados encontram-se legalmente impedidos de exercer actividades profissionais remuneradas em empresas públicas». Acontece que a legislação vigente também prevê que «por razões de interesse público excepcional, sejam autorizados pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Administração Pública.» E o que representa a crónica de Fernando Alves se não interesse público excepcional? Excepcional e de todo insubstituível porque não há em Portugal alguém que consiga fazer algo idêntico e tão bom. Fernando Alves é, sem exagero, o Camões da crónica radiofónica portuguesa. Por conseguinte, compete à administração da empresa Rádio e Televisão de Portugal formular o pedido junto do ministro da tutela e do ministério das Finanças no sentido se ser permitido a Fernando Alves continuar a desempenhar o seu relevante serviço público aos ouvintes/contribuintes que não dispensam as suas sábias e tão cativantes palavras.
AS PALAVRAS
Poema de Eugénio de Andrade (in "Coração do Dia", Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958 – p. 12-13; "Coração do Dia / Mar de Setembro", Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 3, Porto: Limiar, 1977; "Coração do Dia / Mar de Setembro", Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, 2013; "Poesia", 2.ª edição, org. Arnaldo Saraiva, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005 – p. 88; "Poesia", Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, 2017)
Dito pelo autor* (in CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade", Numérica, 1997)
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
* Eugénio de Andrade – voz
URL: https://www.instituto-camoes.pt/activity/centro-virtual/bases-tematicas/figuras-da-cultura-portuguesa/eugenio-de-andrade
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=8993
https://www.bibliotecadigitaleugeniodeandrade.pt/

Capa do livro "Coração do Dia", de Eugénio de Andrade (Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958)

Capa do volume "Coração do Dia / Mar de Setembro", de Eugénio de Andrade (Col. Obra de Eugénio de Andrade, vol. 3, Porto: Limiar, 1977)
Direcção gráfica – Armando Alves

Capa da nova edição do volume "Coração do Dia / Mar de Setembro", de Eugénio de Andrade, pref. Fernando J. B. Martinho (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, Fev. 2013)
Desenho – Ilda David (2013)

Sobrecapa da 2.ª edição, revista e acrescentada do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Porto: Fundação Eugénio de Andrade, Dez. 2005)
Gravura – Ângelo de Sousa (1964)
Concepção – Armando Alves
Poesia reunida. Organização, nota de edição e bibliografia por Arnaldo Saraiva

Capa da nova edição do livro "Poesia", de Eugénio de Andrade (Col. Obras de Eugénio de Andrade, Porto: Assírio & Alvim, Set. 2017)
Pintura – Ilda David (2017)
Poesia reunida. Prefácio de José Tolentino Mendonça

Capa do CD "Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade" (Numérica, 1997)
Retrato por Jorge Ulisses (1980)
Contém quarenta e dois poemas de Eugénio de Andrade ditos pelo autor.
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Outros artigos com poesia de Eugénio de Andrade:
A infância e a música portuguesa
Eugénio de Andrade por Eugénio de Andrade
Celebrando Eugénio de Andrade
Camões recitado e cantado (V)
Eugénio de Andrade por João Perry
Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça: "Aquela Nuvem e Outras"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Cana rachada d'Azambuja
Janita Salomé: "Na Palestina"
Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
José Afonso: "Ali Está o Rio"
Jorge Palma: "A Escola"
Alexandre O'Neill: "Periclitam os grilos", por Mário Viegas
Chico Buarque com Milton Nascimento: "Cálice"
Irene Lisboa: "Pequeno Poema Mental", por José Rodrigues Miguéis
João Afonso: "Lagarto" (José Eduardo Agualusa)
Carlos Garcia com Luís Represas: "Noite Perdida" (António Feijó)
Mísia: "Sou de Vidro" (Lídia Jorge)
Teresa Rita Lopes: "Casa de Cacela"
Marta Pereira da Costa com Iván Melón Lewis: "Sem Palavras"
Amélia Muge: "O Robot Que Envelhece" (João Pedro Grabato Dias)
José Craveirinha: "Um Céu sem Anjos de África", por Trupe Barlaventina
Rodrigo Leão: "A Cidade Queimada"
Amália Rodrigues: "Naufrágio" (Cecília Meireles)
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