
(in https://www.imdb.com/)
Fotograma do filme de animação "A Pequena Sereia" ("The Little Mermaid", 1989), adaptado do conto homónimo de Hans Christian Andersen e produzido pelos estúdios Walt Disney, com realização de Ron Clements e John Musker.
Canção de embalar
O Carlos Paredes tinha a emoção à flor dos dedos. A timidez tornava a sua vida num permanente pedido de desculpas por achar que poderia ter sido melhor em tudo o que fazia, levando-o a estudar até ao limite das mãos a sangrar.
Uma enorme ternura escondia-se nesse homem enorme, capaz de uma intensidade e entrega excepcionais, que enchia os palcos com a sua música. Raramente ouvíamos a sua voz. E talvez nunca tenha juntado palavras às melodias que criava.
O virtuosismo de que era capaz tocando a uma velocidade estonteante em que as mãos mal se viam e as cordas pareciam ir rebentar, tal a força exercida, cedia lugar a passagens de enorme simplicidade técnica em que cada nota era tocada com o corpo debruçado sobre o instrumento, como se fosse apenas aquela e nenhuma outra a que poderia caber no fluxo melódico que criava.
Essa a ligação que encontro com as canções de embalar, talvez as primeiras ouvidas pelas crianças de todos os lugares, desde os tempos em que ainda mal tínhamos criado as palavras com que nos entendemos e pensamos. Adormecer as crianças, dar-lhes a segurança de uma voz que quebra os sons da noite e vence o escuro dos medos permitiu apurar as melopeias entoadas pelos cuidadores que compreenderam ser esse o veículo privilegiado de integrar no grupo os mais novos. Os sons da língua, mesmo quando as palavras são incompreensíveis, despertam o desejo de entender e ser parte da comunidade familiar.
As canções de embalar, esse saber tão velho como a Humanidade, têm de estar presentes em todas as casas onde vivam crianças. Ou mesmo, quando adultos, precisamos de recordar a criança que fomos. Tudo se diz através delas. Divino e profano parecem encontrar nelas o terreno ideal para se entenderem. Deus e os anjos são invocados para alívio dos males dos dentes e da tripa, do mau-olhado, das invejas e perigos que ameaçam o seu futuro.
Mas o embalo, essa toada tão especial, é também um desafio permanente para os músicos que o tomam como mote em obras que têm como referente as canções ouvidas na infância de pais e avós. Fernando Lopes-Graça, o amigo com quem Paredes tinha tantas afinidades, transcreveu para piano e violoncelo o embalo mirandês Ró-ró (Três canções populares portuguesas) e para quinteto de cordas Para uma criança que vai nascer, uma obra de 1961, dedicada a um casal que fez parte do Côro da Academia de Amadores de Música.
Carlos Paredes no seu Canto de Embalar invoca vivências próprias de que apenas ele saberia o significado profundo, inconsciente por certo, para escrever com o seu instrumento as notas organizadas em frases musicais que nos transmitem essa serenidade e equilíbrio de um tempo em que tudo é perfeito. Admito que mesmo sem sabermos tratar-se de um Embalo, numa audição descuidada, seríamos sensíveis a essa calma que nos remete para o universo da infância.
O poema de Pedro Ayres Magalhães que se cola à melodia de Carlos Paredes é um exercício conseguido de traduzir num poema as muitas palavras escondidas na música. Um dos poemas possíveis. Também transfigurado em dança pela Companhia de Dança de Lisboa e pelos MadredeDeus num memorável concerto realizado no Coliseu em Lisboa (1991) e num filme de Edgar Pêra de 2006, Movimentos Perpétuos, que nos revela a pessoa de Carlos Paredes, as suas preocupações, o seu percurso e a capacidade de improvisador capaz de gerar uma nova guitarra portuguesa em diálogo com os construtores Grácio.
A música de Paredes está no momento fundador do Novo Cinema português, em Os Verdes Anos de Paulo Rocha (1963). E continua a alimentar a imaginação de artistas. Pedro Jóia é um dos mais recentes, ao reinventar na sua viola dedilhada a música de Paredes.
A voz de Mariana Abrunheiro junta-se em boa hora a esse caudal de criadores.
DOMINGOS MORAIS
(in livro "Cantar Paredes", de Mariana
Abrunheiro, ed. BOCA - Palavras Que
Alimentam, 2015 – p. 38-39)
"Canto de Embalar" foi o nome que Carlos Paredes deu à terceira das seis peças da suite "Seis Cantos Improvisados sobre a Cidade" que apresentou ao vivo em Frankfurt, acompanhado à viola por Fernando Alvim, suite aquela que viria a constituir o lado A do LP "Concerto em Frankfurt" (Philips/PolyGram, 1983). O preeminente compositor e guitarrista voltaria a gravar a peça, com acompanhamento de Luísa Amaro à viola com cordas de nylon, para o álbum (edição em CD) "Espelho de Sons" (1988), surgindo aí integrada na suite "A Mãe e o Lar". Mas essa acabaria por não ser a última gravação. No concerto que o grupo Madredeus deu no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 30 de Abril de 1991, e teve edição fonográfica no ano seguinte, Carlos Paredes e Luísa Amaro foram os convidados de honra para aí tocaram "Mudar de Vida" e "Canto de Embalar". Este embalo musical, porém, ao contrário dos dois registos anteriores, não foi somente instrumental, pois Teresa Salgueiro cantou uma letra expressamente escrita para aquela melodia por Pedro Ayres Magalhães [>> YouTube Music].
Em 2015, esse cativante "Canto de Embalar" com palavras ganhou uma nova voz: a de Mariana Abrunheiro que se fez acompanhar por Ruben Alves (ao piano) e David Costa (no oboé). É, pois, com essa belíssima versão, que faz parte do primoroso álbum "Cantar Paredes", publicado com a chancela BOCA - Palavras Que Alimentam, que celebramos o presente Dia Mundial da Criança, o qual acontece no ano do centenário do nascimento de Carlos Paredes, génio da Música Portuguesa a quem todas as evocações e homenagens que se façam nunca serão de mais. Bom embalo!
Lançado a 22 de Novembro de 2015, o álbum "Cantar Paredes" foi disco Antena 1. E com inteiríssima justiça! Nessa ocasião o canal generalista estação pública de radiodifusão deu a ouvir algumas canções, mas não demorou muito até que o livro/CD fosse atirado para o baú dos intocáveis. Mariana Abrunheiro pode queixar-se – e com toda a razão – de ter sido incluída no rol dos artistas proscritos na rádio do Estado só porque quem põe e dispõe na famigerada 'playlist' tem os ouvidos tão conspurcados que ficaram insensíveis à boa música e se faz velar do seu poder discricionário para impingir aos ouvintes mais pacientes a escória da sua predilecção e, bem entendido, a que também convém às 'majors' vender. Neste ano do centenário de Carlos Paredes, ao menos, bem podia a Antena 1, atendendo às particulares e inalheáveis obrigações que tem no domínio da música portuguesa, resgatar do tal baú dos silenciados o "Cantar Paredes", bem como outros trabalhos de qualidade já publicados em tributo ao compositor de "Verdes Anos"...
Canto de Embalar
Letra: Pedro Ayres Magalhães
Música: Carlos Paredes
Intérprete: Mariana Abrunheiro* (in livro/CD "Cantar Paredes", Mariana Abrunheiro/BOCA - Palavras Que Alimentam, 2015)
[instrumental]
Alguém ouviu a sereia,
Ouviu de noite cantar:
Andava à noite à candeia,
Andava à noite no mar.
Eu fui contigo ao inferno,
Fomos ao fundo do mar;
Oh, meu amor que eu mais amo,
Deixa-me eu te embalar!
[vocalizos / instrumental]
Uma, duas ou três...
Tantas não sei contar;
Eu sei lá quantas vezes
Sai um barco p'ra o mar!
Mas à noite há segredos,
Deixa-me eu te embalar.
Uma, duas ou três...
Tantas não sei contar;
Eu sei lá quantas vezes
Sai um barco p'ra o mar!
Mas à noite há segredos,
Deixa-me eu te embalar.
[instrumental / vocalizos]
* Mariana Abrunheiro – voz
Ruben Alves – piano
Músico convidado:
David Costa – oboé
Direcção musical – Mariana Abrunheiro e Ruben Alves, com a preciosa maestria, criatividade, talento e sensibilidade dos músicos convidados
Produção musical – Mariana Abrunheiro
Produção executiva – Mariana Abrunheiro
Gravado nos estúdios Biscoito Fino (Rio de Janeiro), Conservatório de Música de Coimbra, Could Noise (Barreiro), A.P.S. (Oeiras), Orquestra de Câmara Portuguesa (Algés), de 8 de Março a 19 de Maio de 2015
Captação – António Pinheiro da Silva, Gonçalo Rui Santos, João Thiré, Paulo Cavaco e Pedro Carneiro
Mistura e masterização – António Pinheiro da Silva
Texto sobre o disco em: Público
URL: https://www.facebook.com/marianaabrunheiro/
https://www.youtube.com/user/cant0rinha/videos
https://music.youtube.com/channel/UCbsfa2JuPgwbQaJZQvDXd0g

Capa do livro/CD "Cantar Paredes", de Mariana Abrunheiro (Mariana Abrunheiro/BOCA - Palavras Que Alimentam, 2015)
Fotografia – Mário Príncipe
Design gráfico – Pedro Serpa.
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