28 julho 2025

Florência: "De Mãos Vazias" (José Guimarães)


Florência nos inícios da década de 1970 – fotografia publicada na capa do EP "Poema do Meu Anseio" (Orfeu ATEP 6449, 1972) e na capa da compilação em LP "Florência" (Orfeu SB-1061, 1973).


Não é raro intérpretes da canção ligeira competentes e dotados de bela e expressiva voz granjearem popularidade através de espécimes que, embora não sendo de deitar fora, não se incluem propriamente no melhor dos respectivos repertórios. Florência, que muitos apenas associam a duas joviais e despretensiosas cantigas parafolclóricas que alcançaram grande êxito – "Moda da Amora Negra" e "De Rosa ao Peito" –, é um desses casos paradigmáticos.
João Carlos Callixto, na edição ontem emitida do seu programa "Gramofone" [>> RTP-Play], que consagrou por inteiro a Florência, falecida no passado 18 de Julho, teve a mui louvável preocupação de dar a ouvir alguns registos de conteúdo mais profundo e de padrão estético mais elaborado que ficaram na penumbra. E o blogue "A Nossa Rádio" preza em associar-se à homenagem a Florência, dona de uma voz de timbre muito belo e harmonioso, condizente com a sua bonita fisionomia, resgatando outro trecho poético-musical de verdadeira antologia que poucos dos visitantes deste sítio terão alguma vez ouvido: o primoroso fado "De Mãos Vazias", com letra e música, respectivamente, de José Guimarães e de Resende Dias, a parelha de autores que concebeu a maioria do repertório original de Florência (a artista também gravou, além de cantigas da tradição popular, um número apreciável de canções e de fados criados por colegas de ofício, com Amália em primeiro lugar). O mencionado fado foi primeiramente publicado no álbum "Florência Canta Fado" (Orfeu/Arnaldo Trindade, 1980) e incluído, vinte anos mais tarde, na compilação em CD dedicada à intérprete que integra a colecção Clássicos da Renascença editada pela Movieplay.
As palavras de José Guimarães, como é fácil de perceber, continuam bem actuais no presente mundo onde a maldade recrudesceu de modo despudorado e, ante ela, se impõe às pessoas de bem como absolutamente imperiosa a denúncia e – ainda mais importante! – a acção vigorosa e denodada para lhe pôr cobro. Porque ficar-se passivo, acomodado na indiferença ou tolhido pelo desânimo, é abrir mão da liberdade e renunciar à dignidade, condições essenciais ao ser humano. Boa escuta!



De Mãos Vazias



Letra: José Guimarães
Música: Resende Dias
Intérprete: Florência* (in LP "Florência Canta Fado", Orfeu/Arnaldo Trindade, 1980; CD "Florência", Col. Clássicos da Renascença, vol. 49, Movieplay, 2000)


De mãos vazias, sem nada de nada,
Um pouco de céu pretendo alcançar;
São os meus dias janela fechada
Onde não há madrugada,
Onde a luz não quer entrar;
Ai dos meus dias que são tudo e não são nada:
São liberdade amarrada,
São silêncios a falar.

Olhos fechados... para a maldade não ver;
Braços cruzados..., deixar a vida correr;
Lábios cerrados... e não dizer a verdade,
Mas ter voz e estar calada é perder a liberdade.

Meu grito aberto, meu grito calado
Eu atiro ao vento sem ninguém ouvir;
Longe e tão perto, princípio acabado
Onde o meu olhar cansado
Anda a sonhar sem dormir:
Tudo é deserto no meu sonho povoado,
Onde um povo amordaçado
Não sabe cantar nem rir.

Olhos fechados... para a maldade não ver;
Braços cruzados..., deixar a vida correr;
Lábios cerrados... e não dizer a verdade,
Mas ter voz e estar calada é perder a liberdade.

[instrumental]

Lábios cerrados... e não dizer a verdade,
Mas ter voz e estar calada é perder a liberdade.


* Florência – voz
António Chainho e José Luís Nobre Costa – guitarras portuguesas
José Maria Nóbrega e Francisco Gonçalves – violas de fado
Raul Silva – viola baixo

Arranjos e direcção musical – António Chainho
Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa
Técnico de som – Moreno Pinto
URL: https://florenciarodrigues.tripod.com/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/florencia
https://www.youtube.com/c/Am%C3%A9ricoPereira/videos?query=florencia



Capa do LP "Florência Canta Fado" (Orfeu/Arnaldo Trindade, 1980)



Capa da compilação em CD "Florência" (Col. Clássicos da Renascença, vol. 49, Movieplay, 2000)

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Outro artigo com repertório de Florência:
A infância e a música portuguesa

23 julho 2025

Amália Rodrigues: "Que Deus me Perdoe" (Silva Tavares)


Amália Rodrigues, 1952, fotografada em Nova Iorque por Bruno Bernard, mais conhecido por Bernard of Hollywood, Museu Nacional do Teatro e da Dança (MNTD 199519) [Raiz].


Considerando a data averbada no assento de nascimento de Amália, que é a que, mesmo carecendo de exactidão cronológica, conta para efeitos burocráticos, a preeminente artista completaria hoje 105 anos de idade. Assinalamos a efeméride dando destaque a um fado da nossa particular afeição e que ela também tinha entre os seus predilectos (prova-o tê-lo gravado várias vezes e incluído em múltiplas actuações ao vivo): "Que Deus me Perdoe". Escolhemos a versão presente no álbum "Amália no Olympia" que corresponde a uma gravação ao vivo feita na mítica sala parisiense em Abril de 1956. Não foi ela quem escreveu a letra [tem a assinatura do poeta Silva Tavares (1893-1964), que a concebeu expressamente para Amália cantar, em Outubro de 1946, na opereta "Mouraria", evocativa da fadista oitocentista Maria Cesária], mas era como se tivesse saído do seu punho, tão esplendidamente exprime a sua alma fadista e define a sua personalidade e idiossincrasia artística. Segundo o testemunho de um dos espectadores da opereta, Vítor Pavão dos Santos, expresso no seu livro "Amália e os Poetas" (Bertrand Editora, 2014, p. 155), a artista não deu sinais de se deixar entusiasmar com as letras originais dos fados que Adelina Fernandes interpretara, duas décadas antes, na mesma opereta, entre os quais o "Fado da Cesária" [texto e áudio >> YouTube], o que bate certo com aversão amaliana a cantar versos com os quais não se identificasse, atitude que só abona a favor da sua dignidade de artista grande e autêntica. A sua interpretação de "Que Deus me Perdoe", essa foi empolgante e percebe-se muito bem que o tenha sido, porque Silva Tavares escreveu a letra a pensar menos na fadista Cesária do séc. XIX e mais em Amália que, aos 26 anos de idade, já era considerada a maior intérprete de fado de que havia memória.
Note-se na maneira superiormente inteligente como Amália canta este seu fado biográfico, com música de Frederico Valério, ajustando a voz ao sentido das palavras, contendo-a e só a alteando nos momentos em que a letra o pede, como acontece no dístico "Cantando dou brado / E nada me dói". E ali o seu portentoso brado justifica-se com a máxima propriedade! Uma lição de magistral interpretação que devia ser aprendida por certas cantadeiras (pretensamente fadistas) que por aí andam, cujo aparelho vocal é muito inferior do de Amália, e se esganiçam todas por dá cá aquela palha.

A talhe de foice, uma interrogação: está Amália acaso representada na 'playlist' da Antena 1? Temos sérias dúvidas de que sim, uma vez que nada do seu vastíssimo repertório lográmos apanhar nas incursões que ultimamente fizemos à emissão do canal generalista da rádio do Estado. A confirmar-se, a situação demonstra clamorosa leviandade e inconsciência da parte de quem administra a programação musical, pela simples razão de que o país tem uma colossal dívida de gratidão para com Amália – justamente por ter sido a maior embaixatriz da cultura portuguesa além-fronteiras e por ter legado a Portugal (e ao mundo lusófono, e não só) uma obra fonográfica de descomunal dimensão, em quantidade e qualidade.



Que Deus me Perdoe



Letra: Silva Tavares (para a opereta "Mouraria", 1946, Teatro Apollo, Lisboa)
Música: Frederico Valério
Intérprete: Amália Rodrigues* [in LP "Amalia à l'Olympia", Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, 1957; LP "Amália no Olympia", Columbia/VC, 1970, reed. EMI-VC, 1988, Edições Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008; CD "Amália no Olympia" (Remastered), Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011; 5CD "Amália em Paris": CD 1, Edições Valentim de Carvalho, 2020]




[instrumental]

Se a minha alma fechada
Se pudesse mostrar,
E o que eu sofro calada
Se pudesse contar,
Toda a gente veria
Quanto sou desgraçada,
Quanto finjo alegria,
Quanto choro a cantar...

Que Deus me perdoe
Se é crime ou pecado,
Mas eu sou assim
E fugindo ao fado
Fugia de mim;
Cantando dou brado
E nada me dói;
Se é pois um pecado
Ter amor ao fado,
Que Deus me perdoe.

Quando canto não penso
No que a vida é de má,
Nem sequer me pertenço,
Nem o mal se me dá:
Chego a crer, na verdade,
E a sonhar – sonho imenso –
Que tudo é felicidade
E tristeza não há.

Que Deus me perdoe
Se é crime ou pecado,
Mas eu sou assim
E fugindo ao fado
Fugia de mim;
Cantando dou brado
E nada me dói;
Se é pois um pecado
Ter amor ao fado,
Que Deus me perdoe.

[instrumental]

Cantando dou brado
E nada me dói;
Se é pois um pecado
Ter amor ao fado,
Que Deus me perdoe.


* Amália Rodrigues – voz
Domingos Camarinha – guitarra portuguesa
Santos Moreira – viola

Gravado no Teatro Olympia, Paris, em Abril de 1956
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2007
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g



Capa da 1.ª edição francesa do LP "Amalia à l'Olympia" (Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, Jan. 1957)
Fotografia – Sabine Weiss



Capa da 1.ª edição britânica do LP "Amália at the Paris Olympia" (Columbia, 1957)



Capa da 2.ª edição francesa do LP "Amalia à l'Olympia" sob o título "Les succès d'Amalia Rodrigues" (Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, 1965)



Capa da 3.ª edição francesa do LP "Amalia à l'Olympia" (Columbia/Les Industries Musicales et Electriques Pathé Marconi, 1967)



Capa da 1.ª edição portuguesa do LP "Amália no Olympia" (Columbia/VC, 1970)



Capa da nova edição portuguesa (remasterizada) em CD do álbum "Amália no Olympia" (Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011)
Fotografia – Sabine Weiss



Capa da caixa (5CD + livro) "Amália em Paris" (Edições Valentim de Carvalho, 23 Jul. 2020)



Capa do livro "Amália at the Olympia", de Lila Ellen Gray (Col. 33 1/3 Europe, Nova Iorque: Bloomsbury, Ago. 2023)
Fotografia – Sabine Weiss

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Outros artigos com repertório interpretado por Amália ou da sua autoria:
Ser Poeta
Celebrando Vinicius de Moraes
Camões recitado e cantado (II)
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"
Amália Rodrigues: "Naufrágio" (Cecília Meireles)
Amélia Muge: "A Lua" (Amália Rodrigues)

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Artigos com canções de tributo a Amália:
Amália: dez anos de saudade
«Do João Braga para a Amália»

20 julho 2025

Amélia Muge: "A Lua" (Amália Rodrigues)


Super-Lua de 23 Jun. 2013 sobre a Igreja de Nossa Senhora do Castelo, em Sesimbra, fotografada por Miguel Claro às 21h:22
(in https://www.miguelclaro.com/).


Havendo dias mundiais ou dias internacionais para tudo e mais alguma coisa, seria de estranhar que a Lua não tivesse também um dia do mesmo jaez. E tem: 20 de Julho, por resolução aprovada pela Assembleia Geral da ONU a 9 de Dezembro de 2021 instituindo o Dia Internacional da Lua. O vigésimo dia do sétimo mês do ano não foi, como é fácil de intuir-se, escolhido arbitrariamente, pois corresponde à efeméride em que pés humanos – no caso, os de Neil Armstrong – pisaram pela primeira vez o solo lunar: 20 de Julho de 1969.
Sendo o património fonográfico português profusamente rico em canções, poemas recitados e peças instrumentais alusivos ao astro mais próximo da Terra (o seu único satélite natural), que a alumia nas noites de céu não nublado ou com poucas nuvens, pensámos destacar uma gravação de temática lunar à guisa de cortesia aos prezados visitantes do blogue "A Nossa Rádio". E qual escolher entre as tantas e boas que existem? Ora, dado que o presente mês de Julho é o do 105.º aniversário do nascimento de Amália Rodrigues – figura maior da cultura portuguesa da contemporaneidade –, achámos por bem deitar mão ao belo poema amaliano "A Lua", publicado no seu livro "Versos" (1997), na versão musicada e cantada por Amélia Muge e que é parte integrante do primoroso álbum "Amélia com Versos de Amália" (2014). Boa escuta!

Poesia escrita e/ou cantada por Amália merece ser cultivada em qualquer altura do ano, e por maioria de razão no mês do seu aniversário natalício, Julho (o averbamento na conservatória do registo civil situa o nascimento a 23, mas sabia-se que a bebé viera ao mundo uns quantos dias antes, o que levou a artista a datar o seu aniversário no primeiro dia do mês). Em tal conformidade, bem podia a Antena 1 tomar aquele pretexto para fazer de Julho, a cada ano que passa, um mês amaliano. O repertório em voz própria teria, obviamente, lugar de primazia na 'playlist' e aproveitava-se para dar a ouvir poesia de Amália que outros gravaram, quer na forma recitada quer na cantada. Na segunda modalidade, o citado álbum de Amélia Muge é, claramente, o supra-sumo.



A Lua



Poema: Amália Rodrigues (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Amélia Muge
Arranjo: António José Martins e José Mário Branco
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Amélia com Versos de Amália", Amélia Muge/Leve Music, 2014)




Olha a Lua redondinha, [bis]
Tão redonda, coisa rara! [bis]
Nem lhe descubro a covinha
De cada lado da cara...

Anda cá, ó Lua Cheia [bis]
De cantigas p'ra me dar!
Nem o mundo faz ideia [bis]
Das cantigas ao luar...

Na lua já ando eu
Mesmo sem ter ido à Lua:
Meu amor é todo meu;
Meu amor, sou toda tua!

Lua no quarto minguante [bis]
Algum desgosto ela tem: [bis]
Foi cantiga de estudante
Que cantou p'ra mais alguém.

Lua Nova não se vê, [bis]
Anda de cara escondida; [bis]
Não me perguntem porquê
Que é uma pergunta atrevida.

Tantas cantigas de amor
Já terá ouvido a Lua:
Se as sabe todas de cor
Sabe a minha e sabe a tua.

[instrumental]

Será que de amores cresce [bis]
Lua no quarto crescente? [bis]
Ou será que a Lua desce
P'ra estar mais perto da gente?

As luas são separadas: [bis]
Quartos minguante crescente; [bis]
Já tem quatro assoalhadas,
Tem muito mais do que a gente. [bis]


* Amélia Muge – voz e viola braguesa
António Pinto – guitarras acústicas (cordas de nylon e de aço)
António Quintino – contrabaixo
Tatiana Rosa – flautas em Dó

Direcção artística – Amélia Muge, José Mário Branco, António José Martins e Michales Loukovikas
Direcção musical – José Mário Branco
Direcção musical das gravações na Grécia – Michales Loukovikas
Produção – Amélia Muge
Co-produção – António José Martins
Gravado no Estúdio da Ribeira, Sintra, por António José Martins, em Junho de 2014
Gravações adicionais de viola braguesa e percussões por Amélia Muge no estúdio AJM (Sobreda - Almada), em Julho de 2014
Misturado por António Pinheiro da Silva e José Mário Branco com a colaboração de Michales Loukovikas, António José Martins e Amélia Muge
Masterizado por António Pinheiro da Silva
Texto sobre o disco em: Público
URL: https://www.facebook.com/ameliamuge
https://www.facebook.com/Am%C3%A9lia-Muge-Michales-Loukovikas-315928531775833/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Am%C3%A9lia_Muge
https://www.uguru.net/artista/amelia-muge/
https://www.youtube.com/channel/UC9pldcsocJWRX6mIP5w2viw
https://www.youtube.com/@macajm51
https://www.youtube.com/@UGURUMusica/videos?query=amelia+muge
https://music.youtube.com/channel/UCEWggHi4NJVs7BYz1VmaOfg



A LUA

(Amália Rodrigues, Da secção "Se me Quiseres Ver Descalça", in "Versos", Lisboa: Edições Cotovia, 1997 – p. 57-58)


Olha a lua redondinha
Tão redonda coisa rara
Nem lhe descubro a covinha
De cada lado da cara

Anda cá ó lua cheia
De cantigas p'ra me dar
Nem o mundo faz ideia
Das cantigas ao luar

Lua no quarto minguante
Algum desgosto ela tem
Foi cantiga de estudante
Que cantou p'ra mais alguém

Lua nova não se vê
Anda de cara escondida
Não me perguntem porquê
Que é uma pergunta atrevida

Será que de amores cresce
Lua no quarto crescente
Ou será que a lua desce
P'ra estar mais perto da gente

Tantas cantigas de amor
Já terá ouvido a lua
Se as sabe todas de cor
Sabe a minha e sabe a tua

Na lua já ando eu
Mesmo sem ter ido à lua
Meu amor é todo meu
Meu amor sou toda tua

As luas são separadas
Quartos minguante crescente
Já tem quatro assoalhadas
Tem muito mais do que a gente



Capa da 1.ª edição do livro "Versos", de Amália Rodrigues; coordenação, nota final e cronologia: Vítor Pavão dos Santos (Lisboa: Edições Cotovia, Out. 1997)



Capa da 7.ª edição do livro "Versos", de Amália Rodrigues; coordenação, nota final e cronologia: Vítor Pavão dos Santos (Lisboa: Livros Cotovia, 2005)



Capa da 9.ª edição do livro "Versos", de Amália Rodrigues; coordenação, nota final e cronologia: Vítor Pavão dos Santos (Lisboa: Livros Cotovia, Mai. 2018)



Capa do livro "Poems", de Amália Rodrigues; ed. e introd.: Rui Vieira Nery; trad.: Jamie Rising (Lisboa: Dilúvio, Out. 2022)
Ilustração – André Carrilho
Edição bilingue em português e inglês



Capa do CD "Amélia com Versos de Amália", de Amélia Muge (Amélia Muge/Leve Music, 2014)
Fotografia – Egle Bazaraite
Ilustrações – Amélia Muge
Design gráfico – Cristiana Serejo

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Outros artigos com repertório alusivo à Lua:
A infância e a música portuguesa
Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)
"Quando os Lobos Uivam"

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Outros artigos com repertório de Amélia Muge:
A infância e a música portuguesa
Camões recitado e cantado
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
Amélia Muge: "Os Novos Anjos" (ao Zeca Afonso)
Amélia Muge: "Dia em Dia"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Amélia Muge: "O Robot Que Envelhece" (João Pedro Grabato Dias)

14 julho 2025

Álamo Oliveira: "Os Piratas"


Fotograma do telefilme "Balada do Atlântico", com dramatizações de Álamo Oliveira, realização de José Medeiros e produção de Bruges da Cruz para a RTP-Açores (1987).


João Carlos Callixto fez o serviço público de consagrar por inteiro a edição do seu programa "Gramofone", que ontem de manhã foi para o ar nas ondas da Antena 1, a homenagear seis figuras ligadas à música portuguesa (e não só) que recentemente nos deixaram: as fadistas Adelina Silva e Maria da Nazaré, o produtor Luís Jardim, o guitarrista Luís Fernando, o baterista Paulo Neto (do grupo Essa Entente) e o letrista/poeta Álamo Oliveira (1945-2025). Com letras/poemas da autoria do último, quem ouviu a emissão em directo ou se socorreu do arquivo na plataforma RTP-Play teve a oportunidade de escutar duas canções com música de Carlos Alberto Moniz: "Recados da Ilha", por Samuel (1979) [>> YouTube], e "Navegar o Teu Corpo", na voz do compositor (2020) [>> YouTube Music].
O blogue "A Nossa Rádio" faz questão de enaltecer a iniciativa de João Carlos Callixto – um dos mais sabedores, atentos e zelosos profissionais hodiernamente a laborar na rádio pública –, e aproveita o ensejo para reforçar a homenagem ao autor açoriano (terceirense) Álamo Oliveira, que, além de ter escrito letras/textos para serem musicados/cantados, distinguiu-se como poeta, ficcionista e dramaturgo com vasta obra publicada [>> bibliografia]. Fazemo-lo dando destaque à maravilhosa xácara "Os Piratas", que ele escreveu e Luís Gil Bettencourt musicou para o telefilme "Balada do Atlântico" (RTP-Açores, 1987) [Parte I >> RTP-Arquivos / Parte II >> RTP-Arquivos], realizado por José Medeiros, cujas dramatizações têm a avalizada assinatura precisamente de Álamo Oliveira. O trecho poético-musical em apreço foi também – e bem – objecto de edição fonográfica, primeiramente no LP homónimo (DisRego, 1987), com honras de abertura do alinhamento, e depois nas compilações "O Barco e o Sonho | Balada do Atlântico | Xailes Negros" (2LP, Philips/Polygram, 1989) e "7 Anos de Música (2.ª edição)" (CD, DisRego, 1992).
Vem a talhe de foice apontar o dedo acusador/reprovador a quem manda na programação musical da Antena 1 pelo vil ostracismo a que tem votado a música açoriana, quer a tradicional quer a de autor, ao negar-lhe a merecida e justa presença na 'playlist'. A fascinante xácara aqui apresentada é apenas uma das numerosas pérolas que já se criaram nas nove Ilhas de Bruma, preciosidades essas que por serem portuguesas não podem (não devem) ficar escondidas dos continentais.



Os Piratas



Letra: Álamo Oliveira
Música: Luís Gil Bettencourt
Intérpretes: Nélia Freitas, Carlos Medeiros, Henrique Ben-David, Henrique Álvares Cabral, Paulo Andrade e Luísa Alves [in LP "Balada do Atlântico", DisRego, 1987; 2LP "O Barco e o Sonho | Balada do Atlântico | Xailes Negros": LP 1, Philips/Polygram, 1989; CD "7 Anos de Música (2.ª edição)", DisRego, 1992]




[instrumental]

[A Donzela:]
— «Minha mãe, vinde ao balcão
Ver quem vem aí!
Pelo mar do nosso chão
Vêm barcos de roubar.
São corsários, são piratas,
Oh, valei-me aqui!
Ó pirata, porque matas
O que não te posso dar?»

[instrumental]

[1.º Pirata:]
— «Tenho sangue no meu peito
P'ra me lambuzar...»
[2.º Pirata:]
Esse corpo, amor-perfeito,
Quero-o bem dentro de mim.»
[1.º Pirata:]
— «Dou-te um par de arrecadas
P'ra te aliciar.»
[2.º Pirata:]
— «Tenho homens com espadas
P'ra me ajudarem no fim.»

[Os Piratas:]
— «Somos os piratas,
O terror do mar,
Os heróis da prata,
Oiro a nadar.
Somos gente que até gosta de roubar.
Somos os herdeiros
De aventuras vãs;
Fomos os primeiros
A romper manhãs,
E no corpo a tatuagem fica bem.»

[O Morgado:]
— «Ó corsário, ó ladrão,
Deixa-me a fazenda!
Não vês que isso é o pão
Dos meus filhos e mulher?
Sempre vivo em sobressalto
Por cada moenda...
Há navios no mar alto
Com o oiro que quiser.»

[1.º Pirata:]
— «Se me deres o que é teu
Vou-me logo embora...»
[2.º Pirata:]
— «Se te armares em judeu
Nem sequer o ar te deixo.»
[O Morgado:]
— «Senhor meu, a minha vida
Nada vale agora...»
[2.º Pirata:]
— «Tens a morte preferida...
Da escolha não me queixo.»

[Gente da ilha:]
— «São ladrões da terra!
São ladrões do mar!
Os senhores da guerra
De espadas no ar!
E um sorriso estampado no matar.
Querem nosso pão,
Querem nossas vidas.
São piratas, são!
São almas perdidas,
E não sabem que este medo vem do chão.

[instrumental]

[3.º Pirata:]
— «Há aqui um frade coxo
P'ra vos confessar...»
[A Religiosa:]
— «Ah, senhor, que não vos ouço,
Deixa-nos viver em paz!»
[2.º Pirata:]
— «Cara linda, minha freira,
Venho p'ra ficar
Aqui uma noite inteira...»
[3.º Pirata:]
— «O que já o satisfaz...»
[A Religiosa:]
— «Tenho medo, tenho medo
Desta tentação...»
[2.º Pirata:]
— «Posso até guardar segredo,
Juro à porta do sacrário:
Se trouxerem as alfaias
Para a minha mão,
Respeitarei essas saias
E a cruz do escapulário.»

[Os Piratas:]
— «Somos os piratas,
O terror do mar,
Os heróis da prata,
Oiro a nadar.
Somos gente que até gosta de roubar.»

[Gente da ilha:]
— «Querem nosso pão,
Querem nossas vidas.
São piratas, são!
São almas perdidas,
E não sabem que este medo vem do chão.»

[Todos:]
— «Foram outros ventos,
Cofres por abrir;
Foram outros tempos
Neste descobrir
Que os piratas continuam a existir.»


* Nélia Freitas – voz (A Donzela)
Carlos Medeiros – voz (1.º Pirata)
Henrique Ben-David – voz (2.° Pirata) e percussão
Henrique Álvares Cabral – voz (O Morgado)
Paulo Andrade – voz (3.º Pirata), percussão e cavaquinho
Luísa Alves – voz (A Religiosa)
Luís Gil Bettencourt – percussão e teclas
José Medeiros – percussão e teclas
Gil Alves – flauta

Direcção musical – Luís Gil Bettencourt e José Medeiros
Produção – RTP-Açores
Produtor executivo – Victor Toste
Gravado no Angel Studio, Lisboa, em Abril de 1987
Técnico de som – Jorge Barata
Técnico assistente – Luís Flor



Álamo Oliveira retratado por Rui Melo, 2020, acrílico sobre tela, 80 × 90 cm
(in https://philangra.blogspot.com/)



Capa do LP "Balada do Atlântico" (DisRego, 1987)
Fotografia – Raul Resendes
Modelo – Luísa Madruga
Design – Luís Gil Bettencourt e Carlos Elias Rodrigues



Capa da compilação em duplo LP "O Barco e o Sonho | Balada do Atlântico | Xailes Negros" (Philips/Polygram, 1989)
Fotografia – Rui Martins (A partir de uma imagem de "O Barco e o Sonho" – Paint Box: António Luís Moniz)



Capa da compilação em CD "7 Anos de Música (2.ª edição)" (DisRego, 1992)
Ilustração – Michael Hudec
Design gráfico – Digiarte.

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Outro artigo com poesia de Álamo Oliveira:
Aníbal Raposo: "Balada de Outono" (Álamo Oliveira)

12 julho 2025

Sum Alvarinho: "Cacau"


(in https://viagemasaotome.com/)


Cacau: o ouro de São Tomé e Príncipe

O cacau é obtido a partir das sementes de uma árvore perenifólia de pequeno porte (4 a 8 metros de altura) – o cacaueiro –, nativa da América Central e da zona setentrional da América do Sul.
O nome científico (Theobroma cacao) foi-lhe atribuído pelo famoso naturalista sueco Lineu (1707-1778) na obra em dois volumes "Species Plantarum" (1753), que fundou e estabeleceu a taxonomia botânica moderna. Lineu utilizou parte do nome que outros autores haviam atribuído a esta planta (cacao) e criou um novo género (Theobroma) que significa alimento divino (do grego: theós = deus; broma = alimento).
O cacaueiro apresenta um tipo de floração e frutificação pouco comum, ou seja, as flores (e os subsequentes frutos) nascem no tronco principal e nas pernadas. Este tipo de floração (cauliflora) também ocorre nas olaias (Cercis siliquastrum). Após a colheita dos frutos, as sementes são submetidas a um processo de fermentação e oxidação para desenvolverem o aroma característico do cacau. Segue-se a secagem, que tem como objectivo reduzir o teor de água, sendo depois processadas industrialmente (em geral, nos países consumidores).
O cacau foi levado para São Tomé na década de 1850 por João Mário de Sousa e Almeida, vindo de uma família da Bahia com raízes na ilha do Príncipe, que começou a sua plantação na roça Água Izé de que era proprietário. E foi assim que começou o ciclo do cacau no arquipélago, sendo sucessivamente fundadas mais roças, entre as quais Monte Café, Rio do Ouro (hoje Agostinho Neto), Diogo Vaz, Bela Vista, São João dos Angolares, São Nicolau, Boa Entrada, Java, Saudade, e Sundy. Muitas dessas roças tinham uma envergadura colossal e funcionavam como uma comunidade autónoma: tinham capela, escola, creche e hospital – regalias conquistadas após críticas estrangeiras, mormente britânicas, às condições de trabalho escravo ou semi-escravo no arquipélago. Estima-se que em 1898 as roças ocupassem 90% do território de São Tomé e Príncipe. Em 1895, a roça de Água Izé, que nessa altura já pertencia ao Banco Nacional Ultramarino (BNU), ocupava uma área de 8000 hectares, com mais de metade dessa terra a ser reservada ao cultivo de cacau (a outra cultura era a do café). Tinha ainda 50 quilómetros de caminhos-de-ferro e contava com 50 empregados europeus e forros nos escritórios e 2500 contratados, oriundos maioritariamente de Angola, Moçambique e Cabo Verde, no trabalho das plantações.
Graças à Natureza fértil das ilhas e à estrutura de exploração de mão-de-obra implantada nessas antigas roças coloniais, São Tomé e Príncipe tornou-se, em 1909, o maior produtor mundial de cacau, com uma produção anual de 30 300 toneladas. A independência ditou a nacionalização das roças, mas a gestão estatal não foi bem-sucedida, levando à degradação do património edificado e ao acentuado declínio da actividade económica, acabando várias dessas roças por ser convertidas em empreendimentos turísticos de luxo [cf. https://turismodesaotomeeprincipe.com/]
Hoje, a produção de cacau em São Tomé e Príncipe faz-se em pequena escala, no âmbito de cooperativas de produção biológica, rondando as 10 toneladas por ano.
[Fontes principais: https://viagemasaotome.com/ e https://www.rfi.fr/pt/]



(in https://viagemasaotome.com/)


Cinquenta anos volvidos sobre a proclamação solene da independência, São Tomé e Príncipe não logrou atingir os padrões de desenvolvimento desejados e merecidos pelo seu afável povo. O país ainda é um dos mais pobres de África e o facto de ser um micro-estado insular não explica tudo. A população santomense viveria hoje bem melhor e sem necessidade de emigrar se os dirigentes políticos, no último meio século, tivessem valorizado e fomentado convenientemente a cultura do cacau, a exemplo do que fizeram (sem sair do Golfo da Guiné) a Costa do Marfim e o Gana que são, à data, os dois maiores produtores do mundo. Uma das pessoas que tinha perfeita consciência da importância da produção de cacau para a economia e a tão necessária prosperidade de São Tomé e Príncipe era o cantautor Sum Alvarinho (1940-2022), que deixou isso bem e claramente expresso na canção "Cacau" (Cacau é ouro, é prata / É nosso diamante também...) que gravou para o álbum homónimo, com direcção musical e arranjos seus e do reputado músico cabo-verdiano Paulino Vieira, que foi editado em 1982. Aqui vo-la deixamos em (singela) homenagem ao distinto artista santomense nesta dia do cinquentenário da independência do seu país, que ele muito amava apesar de desgostoso e desiludido (afirmou-o em Julho de 2019, numa entrevista) com os governantes que não souberam ou não foram capazes de desenvolver cabalmente São Tomé e Príncipe. Boa escuta!

O escrevente destas linhas não é ouvinte da RDP-África mas quer acreditar que repertório de Sum Alvarinho faça parte da respectiva 'playlist' (seria assaz anormal se tal não acontecesse, considerando que se trata de uma das figuras gradas da música santomense e da África lusófona). Na Antena 1, durante os larguíssimos períodos em que reina a 'playlist', nada da sua discografia alguma vez apanhámos. Mas era bom que o canal generalista da rádio do Estado desse mais atenção e divulgação ao património musical/fonográfico dos países africanos de língua oficial portuguesa. O fortalecimento dos laços culturais entre Portugal e os países que com ele partilham um passado comum também passa por aí...



Cacau



Letra e música: Sum Alvarinho (Álvaro Victor de Menezes Trigueiros)
Intérprete: Sum Alvarinho* (in LP "Cacau", IEFE Discos/Intercontinental Fonográfica, 1982, Vidisco, 1989, reed. Sonovox, 1994)




[instrumental]

Escutem o que eu digo
Não pretendo engraxar
É um conselho de amigo
Para salvaguardar
Não os oportunistas
Que agora estão-se a rir
Mas sim o povo, povo e
Gerações que hão-de vir

Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém

Desperdícios à toa
Beneficia ninguém
É prejuízo, é ruína
Se a nossa bolsa nada tem
Produzamos para ter
Pois se malta não produz
Não saímos da miséria
Com tanta gente xem-xém

Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém

Desperdícios à toa
Beneficia ninguém
É prejuízo, é ruína
Se a nossa bolsa nada tem
Introduzir alternativas
É reforçar a produção
São novas fontes de divisas
Que farão face à flutuação

Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém

[instrumental]

Desperdícios à toa
Beneficia ninguém
É prejuízo, é ruína
Se a nossa bolsa nada tem
Produzamos muito para ter
Pois se malta não produz
Não saímos da miséria
Com tanta gente xem-xém

Cacau é ouro, é prata
É nosso diamante também
Ele é que a tudo movimenta
Quando o contravalor vem
Por isso, na apanha, na quebra
E no secador também
Não deite fora um bago
Porque isso não convém


* [Créditos gerais do disco:]
Sum Alvarinho – voz, timbales, percussão, coros
Paulino Vieira – viola solo, piano, órgão Solina, bongós e coros
Adler Ramos – viola ritmo, percussão e coros
Bebet (Humberto Lopes Almeida) – viola baixo
Eduardo Vaz – bateria

Direcção musical e arranjos – Sum Alvarinho e Paulino Vieira
Produção – José Augusto
Gravado nos Estúdios Musicorde, Lisboa
Engenheiros de som – Fernando Santos e Rui Remígio
URL: https://www.telanon.info/cultura/2022/10/14/38839/rip-sun-alvarinho/
https://soundcloud.com/sumalvarinho
https://music.youtube.com/channel/UCqkSEmomske8EGoghX_Ce9Q



Capa da edição original do LP "Cacau", de Sum Alvarinho (IEFE Discos/Intercontinental Fonográfica, 1982)
Fotografia e maquete – Jorge Jacinto



Capa da reedição portuguesa do LP "Cacau", de Sum Alvarinho (Vidisco, 1989)
Fotografia e maquete – Jorge Jacinto



Capa da reedição holandesa do LP "Cacau", de Sum Alvarinho (José Manuel Mestre, 1989?)
Fotografia – Jorge Jacinto
Maquete – Manuel Mestre



Capa da reedição em CD do álbum "Cacau", de Sum Alvarinho (Sonovox, 1994)
Fotografia e maquete – Jorge Jacinto

05 julho 2025

Travadinha: "Toi"


Travadinha, em finais de 1984, tocando a sua rabeca durante um evento comemorativo do 10.º aniversário da tomada da Rádio Barlavento (ex-Rádio Clube do Mindelo), episódio histórico que ocorreu a 9 de Dezembro de 1974.
© "Voz di Povo" (in https://www.caboverdeamusica.online/travadinha/)


«TRAVADINHA, de seu nome de registo António Vicente Lopes, tocador de rabeca, é um dos artistas mais consagrados na música de Cabo Verde.
Nascido na Ilha de Santo Antão, berço também de outros bons violinistas, em criança teve como brinquedos os instrumentos musicais que encontrava em casa, onde desde o pai ao irmão mais novo — eram sete — todos tocavam. Ele, porém, foi o único da família que se dedicou à rabeca e aos nove anos já tocava em festas e bailes.
Jovem ainda, mudou-se para a ilha vizinha de São Vicente, mais cosmopolita, onde se fixou e vive até hoje.
Embora alguns amigos e até músicos de fama, como Luís de Morais e Manuel de Novas, sempre lhe tenham reconhecido o talento, foi só a partir de 1981, depois de uma pequena tournée em Portugal, que o seu nome se popularizou e hoje pode dizer-se que Travadinha é já uma legenda e uma referência obrigatória.
As interpretações que faz dos temas populares, sendo profundamente enraizadas na tradição, têm um cunho pessoalíssimo de onde se destaca uma contínua reinvenção da linha melódica e um grande poder de improvisação, que são notáveis, ainda mais se considerarmos que para Travadinha a música é apenas um passatempo, pois não existe a profissão de músico no meio social que é o seu.
A expressividade com que toca a sua música é altamente contagiante: não é preciso saber crioulo para entendermos o que ele diz. António Travadinha é, por tudo isto, um artista que merece ser ouvido, não só pelo prazer que propicia, mas também pelo muito que nos ensina.

A edição deste disco de António Travadinha insere-se, com toda a simplicidade de um gesto natural, na actividade da Associação de Amizade Portugal/Cabo Verde.
Cada país, cada povo, tem as manifestações que lhe são próprias, que melhor o caracterizam, e Cabo Verde, os cabo-verdianos têm na música um sinal da sua indelével personalidade colectiva.
Arquipélago na encruzilhada de quatro continentes, ponto de rota, local de fuga e de encontro, o povo foi-se construindo na mistura que identifica, na miscigenação que caracteriza. Com a música sempre presente a apôr como que um selo de garantia... nacional.
Assim sentimos, sem veleidades de investigação aprofundada, assim vivemos na calorosa experiência de conviver com os cabo-verdianos no seu quotidiano, na sua terra, na luta/labuta em que se afirmam e são.
E como o que queremos é fortalecer os laços de amizade entre os nossos povos, pela via do conhecimento mútuo, da compreensão fraterna do que somos e como somos, a divulgação da música cabo-verdiana tem de ser um gesto natural. Assim tem sido, e assim o é nesta procura de contribuir para o registo e a divulgação do que Travadinha faz com a sua rabeca.
António Travadinha é, na sua maneira de estar na vida, no seu modo de ser vida, uma ilustração de Cabo Verde. Queremos contribuir para gravar essa maneira, esse modo, em documento. O documento aqui está: é este disco; a nossa tarefa de dar a conhecer Cabo Verde vai-se cumprindo: na continuidade de outras acções, exigindo continuidade.»

O Conselho Directivo da Associação de Amizade Portugal/Cabo Verde
[textos publicados na contracapa do LP "Feiticeira de Cor Morena", ed. Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986]


«O violino de Travadinha é como a guitarra de Paredes. Coisas belas, misteriosas, insondáveis, que retratam os povos sem necessitarem de palavras», assim escrevia o crítico musical António Duarte, na página 14 do semanário "O Jornal" de 14 de Agosto de 1987, no obituário do malogrado rabequista cabo-verdiano, sob o título "Travadinha: só a morte não foi improvisada". O músico falecera a 8 de Agosto, vitimado por doença oncológica, e foi numa das estadias em Lisboa, para tratamento, menos de um ano antes, que gravou o seu segundo e último álbum em nome próprio, "Feiticeira de Cor Morena" (1986). Na posição terceira do alinhamento figura a mazurca "Toi", nome que parece ser um diminutivo popular de António, um outro António do arquipélago de Cabo Verde certamente, mas que não obstava Travadinha de tocá-la como se fosse ele o autor ou o dedicatário, conferindo-lhe um fascínio a que não é indiferente ouvido algum, mesmo que não familiarizado com as cativantes sonoridades da música popular cabo-verdiana. E o 50.º aniversário da independência do país de Travadinha afigura-se um excelente pretexto para resgatarmos tão brilhante pérola e assim homenagearmos aquele que foi um dos maiores músicos cabo-verdianos de sempre, mas – e infelizmente – hoje bastante ignorado em Portugal, pelo menos por quem escolhe a música que passa nas principais rádios, a pública Antena 1 incluída. Boa escuta!



Toi



Música: Popular (mazurca)
Intérprete: Travadinha* (in LP "Feiticeira de Cor Morena", Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986, reed. CD "Travadinha: Le Violon du Cap Vert", Buda Records, 1993)




(instrumental)


* [Créditos gerais do disco:]
Antoninho Travadinha – violino, viola de dez cordas, cavaquinho
Armando Tito – violão solo, viola de dez cordas, cavaquinho, baixo eléctrico, chocalho, reco-reco, voz
Ildo Ramos – violão
Micau – bongós, reco-reco, chocalho
Ana Firmino – voz

Produção – João Freire
Gravado no estúdio Jorsom, Lisboa, em Novembro de 1986
URL: https://www.caboverdeamusica.online/travadinha/
https://www.youtube.com/playlist?list=PL089E689B31DDDB56



Capa do LP "Feiticeira de Cor Morena", de Travadinha (Associação de Amizade Portugal-Cabo Verde e Associação Cabo-Verdiana/distr. Dargil, 1986)
Travadinha no Centro Cultural São Lourenço, Almancil, Loulé
Escultura de João Cutileiro [uma fotografia da obra integral in situ >> abaixo]
Fotografia – João Freire
Arranjo gráfico – José Santa-Bárbara



© James Spinks, 16 Set. 2005
(in https://www.flickr.com/)



Capa do CD "Travadinha: Le Violon du Cap Vert", de Travadinha (Buda Records, 1993)
Reedição francesa do álbum anterior.