01 dezembro 2024

Fausto Bordalo Dias: "Uns Vão Bem e Outros Mal"


© LPP - Lisboa para Pessoas
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Muitos jovens portugueses, desconhecendo que a canção "Uns Vão Bem e Outros Mal" foi gravada no Inverno de 1976/77, ao ouvirem-na, hoje, pela primeira vez, poderão afirmar, e com inteira legitimidade: «esta bela canção bailada, de inspiração tradicional, trata de problemas candentes actuais que a nós, jovens, dizem muito respeito e nos afectam de sobremaneira». E, de facto, a letra de Fausto Bordalo Dias, descontando algumas referências de contexto que remetem para o Portugal do rescaldo do PREC, ao dar enfoque à crise da habitação, ao desemprego e ao trabalho indigentemente remunerado, toca em cheio em pontos muito negros da realidade portuguesa hodierna que, embora não sendo exclusivos de um só escalão etário, afectam mais agudamente os jovens adultos. E se são eles os mais atingidos em questões sociais que, volvido quase meio século, se mantêm não resolvidas ou que, o tendo sido em parte, retrocederam, não é de admirar que esses enjeitados pela democracia a encarem com muita desconfiança, para não dizer hostilidade, e dêem o seu apoio a forças político-partidárias protofascistas. E se isso é preocupante, maiores são ainda os motivos de preocupação quando as principais e mais sistémicas forças políticas do país, que deviam ser as mais interessadas em zelar pela democracia, mostram incapacidade e falta de empenho na efectiva resolução dos problemas que afectam a maioria dos jovens (aqueles que são oriundos das classes menos privilegiadas, obviamente). E uma vez que aumentou, nos últimos anos, o número dos que vivem mal, resultado do incremento das desigualdades sociais, o verso de Fausto, «uns vão bem e outros mal» até poderia modificar-se para a seguinte forma: «uns vão bem e muitos outros mal». E o presente dia em que o país reflecte (ou devia reflectir) sobre si mesmo é assaz apropriado para darmos destaque a essa canção de teor tão assustadoramente actual, tendo em mente que a sua audição atenta e reflexiva possa contribuir para o tão necessário fomento da justiça social, que é – convém ter cabal noção disto – o principal pilar de sustentação das democracias modernas. Boa escuta pró-activa!

Quem foi ouvinte da TSF-Rádio Jornal, em 2023, desde 20 de Março até 22 de Dezembro, de segunda a sexta-feira, teve a oportunidade de escutar múltiplas vezes um fragmento desta canção de Fausto, precisamente o correspondente ao dístico "E assim se faz Portugal, / uns vão bem e outros mal", pois serviu de indicativo à soberba crónica "Assim se faz Portugal" em que Maria Rueff lia textos de humor, sátira e reflexão escritos por Luísa Costa Gomes, Filipe Homem Fonseca, Afonso Cruz e Manuel Monteiro (linguista). E vale bem a pena visitar o arquivo, por exemplo na plataforma Apple Podcasts, porque é o Portugal hodierno que ali está admiravelmente retratado. Quem preferir a leitura poderá ler o livro homónimo, com chancela Minotauro, onde estão compilados os textos das primeiras 80 crónicas.
Fausto terá, certamente, ficado honrado por alguém se ter lembrado de usar um pedacinho de uma sua antiga e semi-esquecida canção como indicativo de uma crónica em que, de modo superiormente inteligente, se disseca a realidade portuguesa do tempo presente. Palpitamos também que aquele lamiré terá impelido muitos ouvintes a irem à procura da canção integral e os que foram não tiveram dificuldade em encontrá-la, já que está em vários canais do YouTube. Essas pessoas e todas as outras podem, aqui e agora, (re)ouvir este cativante espécime do superlativo legado musical/fonográfico de Fausto Bordalo Dias e, desse modo, honrarem a sua memória.
Na pública Antena 1, escusado seria referi-lo, é virtualmente impossível ouvir esta e tantas outras das canções menos conhecidas de Fausto Bordalo Dias. Já assim acontecia em vida do genial cantautor e nem a morte, ocorrida em Julho passado, fez alterar tão vergonhoso estado de coisas. De facto, só muito esporadicamente algo do autor de "Madrugada dos Trapeiros" surge na 'playlist', e esse algo é invariavelmente uma das suas canções mais batidas, fazendo transparecer a ideia aos menos bem informados de que o seu repertório se resume a um reduzido lote.



Uns Vão Bem e Outros Mal



Letra e música: Fausto Bordalo Dias
Intérprete: Fausto Bordalo Dias* (in LP "Madrugada dos Trapeiros", Orfeu, 1977, reed. Movieplay, 1999)




[instrumental]

Senhoras e meus senhores,
façam roda por favor!...

Senhoras e meus senhores,
façam roda por favor,
cada um com o seu par!
Aqui não há desamores,
se é tudo trabalhador
o baile vai começar.

Senhoras e meus senhores,
batam certos os pezinhos,
como bate este tambor!
Não queremos cá opressores,
se estivermos bem juntinhos
vai-se embora o mandador. [bis]

Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]

[instrumental]

De velhas casas vazias,
palácios abandonados,
os pobres fizeram lares;
mas agora todos os dias,
os polícias bem armados
desocupam os andares.

P'ra que servem essas casas,
a não ser p'ra o senhorio
viver da especulação?
Quem governa faz tábua-rasa,
mas lamenta com fastio
a crise da habitação.
        E assim se faz Portugal,
        uns vão bem e outros mal.

Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]

[instrumental]

Tanta gente sem trabalho,
não tem pão nem tem sardinha
e nem tem onde morar;
do frio faz agasalho,
que a gente está tão magrinha
da fome que anda a rapar.

O governo dá solução:
manda os pobres emigrar
e os emigrantes que regressaram;
mas com tanto desemprego,
os ricos podem voltar
porque nunca trabalharam.
        E assim se faz Portugal,
        uns vão bem e outros mal.

Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]

[instrumental]

E como pode outro alguém,
tendo interesses tão diferentes,
governar trabalhadores,
se aquele que vive bem
vivendo dos seus serventes
têm diferentes valores?

Não nos venham com cantigas,
não cantamos p'ra esquecer;
nós cantamos p'ra lembrar
que só muda esta vida
quando tiver o poder
o que vive a trabalhar.
        Segura bem o teu par,
        que o baile vai terminar!

Faz lá como tu quiseres, [3x]
folha seca cai ao chão; [bis]
eu não quero o que tu queres, [3x]
que eu sou doutra condição. [bis]

[instrumental]


* Fausto Bordalo Dias – voz e guitarras acústicas
Hélder Reis – acordeão
Rui Monteiro – percussão (adufes, bombos, caixa de guerra e ferrinhos)
Aristides, Fernando Laranjeira, Sabine – coros

Gravado nos Estúdios Arnaldo Trindade, Lisboa, durante o Inverno de 1976/77
Engenheiro de som – Moreno Pinto
URL: https://www.facebook.com/p/Fausto-Bordalo-Dias-P%C3%A1gina-Oficial-100044468348123/
https://fausto-bordalodias.blogspot.com/p/discografia.html
https://viriatoteles.com/livros/contas-a-vida/41-fausto-bordalo-dias.html
https://viriatoteles.com/imprensa/imprensa-1990-2000/89-por-favor-leiam-estes-discos.html
https://music.youtube.com/channel/UCH_869XTh5lFDKiCKvmuV_w
https://www.youtube.com/channel/UCh5tYA07B0Uur5Mo1gbPmYQ/videos?query=fausto



Capa do LP "Madrugada dos Trapeiros", de Fausto Bordalo Dias (Orfeu, 1977)
Arranjo gráfico – José Brandão



Capa do livro "Assim se Faz Portugal", de Luísa Costa Gomes, Filipe Homem Fonseca, Afonso Cruz e Manuel Monteiro; prefácio de Maria Rueff (Coimbra: Minotauro, Out. 2023)
Fotografia (Maria Rueff) – Paulo Spranger / Global Imagens
Concepção – Joana Carvalho
Reúne os textos das 80 crónicas radiodifundidas de 20 de Março a 7 de Julho de 2023.

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