11 novembro 2025

Ruy Mingas: "Monangambé" (António Jacinto)


Ruy Mingas (1939-2024) – fotografia publicada na capa do LP "Temas Angolanos" (Zip-Zip/Sassetti, 1974)


                                        Apresentação da voz
Quem está cantando? Negro ou voz de um povo?
Assim que a gente sente, logo-logo. A voz é dolorosa, cheia demais para ser duma pessoa só, madura demais. Voz mais-velha, esta que a gente está ouvir. Não nasceu ontem, não é filha alheia — vem de cinco séculos, não cala nunca, não cala. E a gente ouve o berro: monangambéééé! — e somos capazes de começar sorrir já na dor que a palavra tem, a dor de lhe sabermos sinónimo de escravo. Porque damos encontro a sabedoria deve sofrimento de séculos, um filho do povo já afirma: "eu não espero" / "eu sou aquele por quem se espera".
O povo angolano sabe, Rui Mingas sabe, sua voz marca hierarquias: "desdém" (mal se ouve!) "fuba podre" (constata só) "peixe podre" (quase um rir), "panos ruins" (ironia numa «civilização colonizadora») "cinquenta angolares" — é aqui que a voz berra, a mais desumana violência dum sistema de opressão é o capital. E o "porrada se refilares" final é já dito como quem reza na igreja, oração sabida de cór: se a gente nascemos já com a porrada na barriga da mãe!…
Aqui está uma das vozes libertadores de Angola — de Africa, do Mundo portanto. Com Agostinho Neto, negro poeta angolano, denuncia; denuncia com António Jacinto, poeta branco angolano; denuncia com Mário de Andrade, mestiço, poeta, angolano. E com aquele que o nosso irmão e filho e tudo mais quanto é, brasileiro, nosso mais-velho poeta, Solano Trindade, ainda pergunta:
                Quem está gemendo?
                Negro ou carro de bois?
Este disco é a resposta: quem está gemendo é carro de bois! Negro, esse, já está cantando — Rui Mingas, angolano.


                          LUANDINO VIEIRA
                          [texto publicado na contracapa do
                          EP "Monangambé", de Ruy Mingas,
                          Zip-Zip/Sassetti, 1974]


Quando musicados e cantados, alguns poemas têm o sortilégio de se tornarem os hinos de uma causa ou de denúncia de determinada injustiça. Foi o caso do poema "Monangamba", escrito por António Jacinto, poeta branco angolano, como o definiu o seu compatriota José Luandino Vieira, e publicado em letra de forma na colectânea "Poemas", pela Casa dos Estudantes do Império, em 1961, por coincidência o ano da eclosão, em terras de Angola, da Guerra Colonial – texto esse que, treze anos mais tarde, o também angolano (negro) Ruy Mingas gravou, com música da sua autoria, sob o título "Monangambé", para o EP homónimo editado pela Sassetti, com o selo Zip-Zip. Antes de 1974, Ruy Mingas já havia gravado outras canções (o seu primeiro álbum saiu em 1970) e mais viria a gravar, mas o "Monangambé" ficou como o seu grande cartão-de-visita. Sempre que o nome do artista é referido, de imediato alguém minimamente informado o associa àquela emblemática canção.
A independência de Angola, formalizada há precisamente meio século, permitiu que os "monangambés" (escravos) passassem a ser só uma memória da opressão colonial salazarista, que embora triste é avisado não esquecê-la, ademais verificando-se hoje o recrudescimento de ideários racistas e xenófobos um pouco por todo o mundo desenvolvido a par da indecorosa e feroz sanha neoliberal de ataque a direitos básicos e elementares dos trabalhadores. Actualmente, patrões sem escrúpulos e certos políticos do chamado Primeiro Mundo (Portugal incluído) desprovidos de sentido humanista/ético mostram não ter o menor pejo em (querer) fazer dos trabalhadores os novos "monangambés". A tais ímpetos desumanizantes é imperioso contrapor firme resistência e as palavras certeiras de António Jacinto impressivamente cantadas por Ruy Mingas ajudam, sem dúvida, a fortalecer o ânimo para a luta. Monangambés (qualquer que seja a cor da pele) nunca mais!

Não costumamos ouvir a RDP-África, mas queremos acreditar que Ruy Mingas lá passe com alguma frequência (seria assaz anormal se acontecesse o contrário, tratando-se de um dos nomes grandes da música angolana). Seria bom que a Antena 1 desse igualmente a escutar aos seus ouvintes, uma vez por outra, algo do repertório de Ruy Mingas. A relação amistosa que Portugal deve manter com Angola exprime-se também por essas acções.



Monangambé



Poema: António Jacinto (ligeiramente adaptado) [texto original >> abaixo]
Música: Ruy Mingas
Intérprete: Ruy Mingas* (in EP "Monangambé", Zip-Zip/Sassetti, 1974; LP "Monangambé e Outras Canções Angolanas", Zip-Zip/Sassetti, 1976, reed. Strauss, 1994, CNM, 2000)




Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações,

Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

        O café vai ser torrado,
        pisado, torturado,
        vai ficar negro, negro da cor do contratado!

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

        Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
        Quem traz pela estrada longa
        a tipóia ou o cacho de dendém?
        Quem capina e em paga recebe desdém
                fuba podre, peixe podre,              | bis
                panos ruins, cinquenta angolares  |
                «porrada se refilares»? [bis]

        Quem faz o milho crescer
        e os laranjais florescer?

        Quem dá dinheiro para o patrão comprar
        máquinas, carros, senhoras
                e cabeças de pretos para os motores?

        Quem faz o branco prosperar,
        ter barriga grande — ter dinheiro?
        — Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:

                        — «Monangambééé...» [bis]

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

                        — «Monangambééé...» [5x]


* Ruy Mingas – voz
Direcção musical – Jorge Palma
Produção – Sassetti
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ruy_Mingas
https://www.publico.pt/2024/01/04/culturaipsilon/noticia/morreu-ruy-mingas-musico-lutador-liberdade-cantor-homem-politico-2075758
https://music.youtube.com/channel/UCgoa6Oms8IAEoycukvf07ag



MONANGAMBA

(António Jacinto, in "Poemas", Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961, 2.ª edição, Lisboa: UCCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa/Jornal 'Sol', 2015 – p. 21-23; "No Reino de Caliban – Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa: Vol. II – Angola, São Tomé e Príncipe", Organização, selecção, prefácio e notas de Manuel Ferreira, Lisboa: Seara Nova, 1976, 2.ª edição, Lisboa: Plátano Editora, 1988 – p. 135-136; "50 Poetas Africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe", Org. Manuel Ferreira, Lisboa: Plátano Editora, 1989, 2.ª edição, 1997 – p. 39-41; "António Jacinto: Obra Reunida", Organização, introdução e notas de Zetho Cunha Gonçalves, Lisboa: Maldoror, 2025)


Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações,

Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

        O café vai ser torrado,
        pisado, torturado,
        vai ficar negro, negro da cor do contratado!

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

        Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
        Quem traz pela estrada longa
        a tipóia ou o cacho de dendém?
        Quem capina e em paga recebe desdém
                fuba podre, peixe podre,
                panos ruins, cinquenta angolares
                «porrada se refilares»?

        Quem?

        Quem faz o milho crescer
        e os laranjais florescer
        — Quem?

        Quem dá dinheiro para o patrão comprar
        máquinas, carros, senhoras
                e cabeças de pretos para os motores?

        Quem faz o branco prosperar,
        ter barriga grande — ter dinheiro?
        — Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:

                        — «Monangambééé...»

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

                        — «Monangambééé...»



O poeta António Jacinto (1924-1991)
(in https://www.facebook.com/ospoetasdeangola)



Capa do livro "Poemas", de António Jacinto (Col. Autores Ultramarinos, N.º 9, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1961)
Concepção – Luandino Vieira



Capa do volume "Obra Reunida", de António Jacinto; Organização, introdução e notas de Zetho Cunha Gonçalves (Lisboa: Maldoror, Abr. 2025)



Capa da 1.ª edição do livro "No Reino de Caliban – Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa: Vol. II – Angola, São Tomé e Príncipe", Organização, selecção, prefácio e notas de Manuel Ferreira (Lisboa: Seara Nova, 1976)



Capa da 2.ª edição do livro "No Reino de Caliban – Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa: Vol. II – Angola, São Tomé e Príncipe", Organização, selecção, prefácio e notas de Manuel Ferreira (Lisboa: Plátano Editora, 1988)



Capa do livro "50 Poetas Africanos: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe", Org. Manuel Ferreira (Lisboa: Plátano Editora, 1989)



Capa do EP "Monangambé", de Ruy Mingas (Zip-Zip/Sassetti, 1974)



Capa do LP "Monangambé e Outras Canções Angolanas", de Ruy Mingas (Zip-Zip/Sassetti, 1976)
Reedição do álbum "Angola: Canções por Rui Mingas" (Zip-Zip, 1970), tendo o tema "Mu Cinkola" (primeira faixa) sido substituído por "Monangambé".



Capa da mais recente reedição em CD do álbum anterior (CNM, 2000).

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Outro artigo com poesia de António Jacinto:
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)

05 novembro 2025

Amália Rodrigues: "Quando a Noite Vem" (Charlie Chaplin e David Mourão-Ferreira)


Gravura de Gustave Doré, c.1880, para uma edição oitocentista da "Divina Comédia", de Dante Alighieri – Canto II do "Purgatório".


A Charlie Chaplin, o criador do imortal vagabundo Charlot (Carlitos, no Brasil), se devem algumas das mais belas e inspiradas melodias da sétima arte, concebidas, como é fácil de intuir, para os seus próprios filmes. Uma delas é o "Terry's Theme", do filme "Luzes da Ribalta" ("Limelight", 1952), que sendo originalmente apenas instrumental [>> YouTube] não tardou a ser guarnecida de palavras, pelos britânicos John Turner e Geoff Parsons, a fim de que, feita canção, sob o título "Eternally", pudesse ser cantada e assim tornar mais facilmente apreensível o significado expresso. A primeira intérprete a fazê-lo, em 1953, foi a norte-americana Dinah Shore [>> YouTube], logo seguida, no mesmo ano, pelo compatriota Vic Damone [>> YouTube], pelos britânicos Ray Burns [>> YouTube] e Jimmy Young [>> YouTube], e pela brasileira Nora Ney, esta com letra de Antônio Almeida & João de Barro (Braguinha) [>> YouTube]. Também a nossa grande Amália se deixou seduzir por aquela tocante e cativante melodia chapliniana, gravando a sua versão, em 1953, para a Valentim de Carvalho, com versos da autoria de David Mourão-Ferreira, tendo sido acompanhada por Mário Simões e Seu Conjunto. Essa preciosa e sublime gravação amaliana, a única que se conhece no seu extenso acervo fonográfico, foi primeiramente publicada em 1954 sob o selo Columbia, na face B no disco de 78 r.p.m. "Alamares / Quando a Noite Vem", e já neste século incluída nas compilações "Amália canta David" (2011) e "Amália no Chiado" (2014). É pois dando destaque a esta pérola, tão insuficientemente divulgada e desconhecida de muitos, que nos associamos à celebração do presente Dia Mundial do Cinema. Boa escuta!

Na rádio, a melhor maneira de celebrar o cinema, mais do que transmitir falas de actores e os sons da envolvência, é mesmo transmitir música composta expressamente para filmes ou que por eles tenha sido apropriada. E ao longo do dia de hoje, a Antena 2 celebrou amplamente a sétima arte dessa maneira, iniciativa que aplaudimos. Contudo, houve duas coisas menos positivas que nos cumpre reportar: a primeira diz respeito ao modo algo caótico como foi transmitida música relacionada com a sétima arte fora dos programas de autor; a segunda prende-se com a fraquíssima atenção que foi dada ao cinema português e à música que o serviu. Que nos tenhamos dado conta, apenas foi trazido à liça o filme "Os Verdes Anos", de Paulo Rocha, e dada a ouvir a música de Carlos Paredes e a poesia de Pedro Tamen que para ele foi composta e escrita, respectivamente. Esperamos que as deficiências apontadas sejam debeladas no próximo ano, pois não falta excelente material musical usado no cinema nacional, quer feito de raiz quer pré-existente, que se adequa perfeitamente a um canal com o figurino editorial da Antena 2. Dois exemplos que nos vêm de repente à tona da memória: a música que Bernardo Sassetti compôs e tocou para o filme "Alice", de Marco Martins, e as "Claire de Lune", de Fauré e de Debussy, bem como outras peças tocadas ao piano por Nuno Vieira de Almeida, que Manoel de Oliveira incluiu na banda sonora do seu aclamadíssimo "Vale Abraão".



Quando a Noite Vem



Poema: David Mourão-Ferreira
Música: Charlie Chaplin ["Terry's Theme", do filme "Luzes da Ribalta" ("Limelight", 1952)]
Intérprete: Amália Rodrigues* (in disco 78 r.p.m. "Alamares / Quando a Noite Vem", Columbia/VC, 1954; CD "Amália canta David", Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011; 2CD "Amália no Chiado": CD 2, Edições Valentim de Carvalho, 2014)




[instrumental]

O mar se desfaz em sonho e fumo
quando a noite sobe ao alto céu.
Também a minh'alma, triste mar,
oh, céu!, também
se evola em fumo
e segue um rumo
que se perdeu.

Vibram minhas mãos por entre o vento,
nem o vento vê quem me perdeu.
Mas nele o meu corpo só, no vento,
oh, céu!, no vento,
tem por sustento
o esquecimento
dum outro céu.

[instrumental]

Quando a noite vem nem só no céu
os anjos se cansam de nos ver.
E sobre os meus sonhos, noite negra,
oh, céu!, também
um espesso véu
se desprendeu.
Já nem sequer
sou eu.


* Amália Rodrigues – voz
Mário Simões e Seu Conjunto:
Mário Simões – piano
Jaime Nascimento – guitarra

Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Lisboa (Rua Nova do Almada), em 1953
Técnico de som – Hugo Ribeiro

Coordenação de edição ("Amália canta David") – David Ferreira, com Frederico Santiago
Remasterizações – Joel Conde, nos Estúdios Tcha Tcha Tcha, Miraflores (Oeiras), com Frederico Santiago
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g



Capa da compilação em CD "Amália canta David" (Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2011)
Design gráfico – Roda Dentada
Pós-produção de imagem – Mackintóxico



Capa da compilação em duplo CD "Amália no Chiado" (Edições Valentim de Carvalho, 2014)
Design gráfico – José Dias
Ideia original, pesquisa e coordenação da edição – Frederico Santiago

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Outros artigos com repertório interpretado por Amália ou da sua autoria:
Ser Poeta
Celebrando Vinicius de Moraes
Camões recitado e cantado (II)
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
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Amália Rodrigues: "Naufrágio" (Cecília Meireles)
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Amália Rodrigues: "Que Deus me Perdoe" (Silva Tavares)
Linhares Barbosa por Amália

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Outro artigo com poesia de David Mourão-Ferreira:
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)