27 julho 2009

Televisão e serviço público

Por: José Carlos Vasconcelos (advogado, escritor e jornalista, director do "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias")



As leis são ou não para cumprir? As leis servem ou não para alguma coisa, designadamente na parte em que são, digamos, ‘programáticas’ ou orientadoras? Não tenho qualquer dúvida que devem ser para cumprir e devem servir para alguma coisa. Se não, revoguem-se ou mudem-se. Se são injustas, erradas, defeituosas, lute-se contra elas. Mas, como princípio, têm de ser obedecidas, sob pena de estar em perigo o próprio Estado de Direito democrático (salvo se tais leis forem «ilegítimas», violarem os Direitos do Homem ou o Direito Natural – mas essa é outra conversa).
Ora, segundo a Lei da Televisão, os canais generalistas têm como objectivo: «Contribuir para a informação, a formação e o entretenimento do público»; «Promover o direito de informar e de ser informado, com rigor e independência»; «Favorecer a criação de hábitos de convivência cívica próprios de um Estado democrático e contribuir para o pluralismo político, social e cultural»; «Promover a língua portuguesa e os valores que exprimem a identidade nacional».
Veja cada leitor esses canais, aprecie a conformidade de grande parte da programação às finalidades definidas da lei – e tire as suas conclusões... Que são óbvias! Em particular quanto aos canais da estação de «serviço público», a única de que agora aqui cuido. Quer por ser de «serviço público», com tudo que isso implica e exige, quer porque a lei que define e regula a respectiva concessão no seu art.° 4, n.° 2, lhe impõe, em três alíneas, mais alguns deveres, incluindo o de «pautar a programação por exigências de qualidade e diversidade e de respeito pelo interesse público». E, mais, no n.° 3 especifica, da a) a t), 19 «obrigações», sendo a primeira «contribuir, sob diversas formas, para o esclarecimento, formação e participação cívica e política da população, estimulando a criatividade e a consciência crítica».
Ora, sem prejuízo de se reconhecer que em certos períodos já foi pior, a RTP em boa parte não cumpre o que as leis determinam e lhe compete, ‘concorrendo’ com as televisões privadas, porventura deslealmente, numa simples perspectiva de audiências e de mercado – e em alguns aspectos o mesmo se poderá dizer da Antena 1 (não da 2), o canal ‘generalista’ da rádio pública. Isso é bem notório desde logo no que a RTP não dá e devia dar, para cumprir aquelas finalidades. Basta dizer que não tem um só programa que hoje se possa considerar orientado fundamentalmente para estimular a formação e a participação cívica, o sentido crítico ou mesmo a criatividade; não tem um só programa capaz de conquistar novos públicos para a cultura e chegar a um grande número de pessoas, o que além do mais pressupõe um «horário nobre».
É legítimo, mais: indispensável, que uma estação pública tente chegar ao maior número possível de espectadores. É-o, porém, para ter mais eficácia a acção ou o papel que lhe compete prosseguir, com vista a alcançar os objectivos de interesse nacional que lhe estão consignados. Assim, até pode, aqui e ali, transigir no acessório, mas para alcançar o essencial. O problema, entre nós, é ser esquecido, desrespeitado, o «essencial», com a emissão de vários programas tão maus ou tão banais como os de outras estações. Ora, o que justifica o serviço público, se tiver uma filosofia de programação e/ou informação igual à delas, se repetir o mesmo tipo de programas, etc., etc.?
Só dois ou três exemplos. Numa altura em que superabundam, nas televisões e nas rádios, programas ditos humorísticos, alguns bons, outros vulgares ou mesmo indigentes, o que justifica a RTP ter mantido no ar, durante não sei quantos meses, no horário mais nobre, uma coisa chamada, salvo erro «Telerural»? Ou, pior, transmitir, e na 2:, um programa chamado «Cinco para a meia noite», que por azar de passagem vi, há uns dias, com o tão primário como famigerado Zezé Camarinha? Ou alterar as horas do principal jornal informativo para transmitir um jogo de futebol de dois clubes estrangeiros (e não a final dos Campeões Europeus...)? Ou passar um dia a dar directos do Cristiano Ronaldo em Madrid (a impressionante apresentação no Estádio, essa sim, justificava e justificou o «directo»)? Por outro lado, claro que também há bons programas, próprios do serviço público. Como, para nos ficarmos pela cultura, «Câmara Clara», na 2:, e «Cuidado com a Língua», no 1.º canal. Porém, enquanto a privada Globo, no Brasil, e no seu canal internacional, tem nos intervalos para a publicidade pequenos 'spots' sobre o novo Acordo Ortográfico, a RTP, que eu saiba, não fez nem está a fazer nada do género para o difundir e esclarecer as pessoas a seu respeito... (José Carlos Vasconcelos, in "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", 15.07.2009)


Subscrevo genericamente este artigo de opinião de José Carlos Vasconcelos, apenas ressalvando dois pontos – a exclusão que faz da Antena 2 da "perspectiva de audiências e de mercado" e a questão do acordo ortográfico. Mas antes de me debruçar sobre esses tópicos, quero tecer um breve comentário a respeito da televisão pública, para reforçar o ponto de vista do director do "JL". Sob a direcção de Luiz Andrade, a RTP-1 conseguiu libertar-se de muito do lixo televisivo herdado de Emídio Rangel, apostando na produção de séries de época ("Ferreirinha", "João Semana", "Pedro e Inês", "Bocage", "Quando os Lobos Uivam", etc.) e em documentários de temática ambiental, sociológica e histórica ("Portugal: Um Retrato Ambiental", "Portugal: Um Retrato Social", "A Guerra") que eram transmitidos em horário nobre e que atingiram boas audiências, como se veio a constatar, desmentindo a ideia rangelista segundo a qual programas desse tipo não tinham público. Durante o consulado de Nuno Santos essa filosofia foi esmorecendo até que com a sua saída para a SIC e a entrada de José Fragoso (um dos pupilos de Emídio Rangel), pela mão de António Luís Marinho, dificilmente seria de esperar outra coisa que o regresso do lixo "à Emídio Rangel", como o citado "Tele-Rural" e outras coisas do mesmo jaez: "Liga dos Últimos" e "Os Contemporâneos".
E como um mal nunca vem só, a RTP-2 que, antes da transformação que sofreu em 2003 a mando do então ministro Morais Sarmento (extinção dos programas "Acontece!", "Artes e Letras", "O Lugar da História", do espaço de cinema "Cinco Noites, Cinco Filmes", etc.), fora um modelo de qualidade e uma verdadeira alternativa ao canal 1 (e aos outros canais em sinal aberto), também deixou de estar a salvo da mediocridade e do lixo. Primeiro foi "A Revolta dos Pastéis de Nata", depois o "Sempre em Pé" e agora o "Cinco para a Meia-Noite", que ao contrário dos anteriores ainda tem a agravante de ser diário. A par disto, e ao contrário do que seria suposto num canal vocacionado para a cultura e para as artes, também já não há teatro, nem ópera, nem bailado. Apenas concertos de pop/rock e, mais recentemente, de jazz (com a reposição de gravações do AngraJazz). E quem é o culpado desta acentuada degradação da RTP-2, se o Governo já nem é o mesmo? Quem souber, que responda. Cada vez estou mais convencido de que existe um propósito deliberado (embora não assumido) de desqualificar a RTP-2 por forma a empurrar os seus naturais espectadores para os canais temáticos do cabo (História, Mezzo, Hollywood, etc.), contribuindo assim para engordar os lucros da Portugal Telecom.
Indo agora à rádio pública, a alusão que José Carlos Vasconcelos faz à Antena 1 não podia ser mais pertinente. O canal generalista da rádio do Estado que durante muito tempo teve uma identidade própria e dava uma atenção preferencial à música portuguesa mais qualificada e de maior valia estética (como lhe compete), acabou por ser transformado, primeiro por António Luís Marinho e depois por Rui Pêgo, numa coisa completamente abastardada e verdadeiramente imprópria para consumo continuado. Atente-se na profusão de poluição sonora – 'spots' e 'jingles' (longos e pirosos) constantemente disparados pelos locutores de continuidade, as ladainhas do trânsito e das temperaturas rezadas de dez em dez minutos, os noticiários em formato tablóide repletos de "chouriçada", os abundantes espaços de futebol... No tempo que sobra de todas estas enxúndias, rodam as musiquinhas pop do mais reles que é possível encontrar no mercado (a bem dizer, a música pimba do género pop). Alguém está a ganhar com isso, mas não certamente os melhores artistas portugueses e, ainda menos, os ouvintes/contribuintes.
No que toca à Antena 2, e vistas bem as coisas, a filosofia de programação que tem vigorado depois da saída de João Pereira Bastos não é assim tão diferente da praticada na Antena 1 e nas rádios comerciais. Veja-se, por exemplo, de que modo está a ser preenchido aquele larguíssimo período que vai das 7:00 às 20:00, de segunda a sexta-feira. À excepção do segmento 13-14 horas destinado a programas de autor ou de entrevista, nas restantes 12 horas funciona uma espécie de 'jukebox' de trechos de música clássica/erudita, misturando os mais diversos estilos, épocas e compositores numa imensa caldeirada. É verdade que não há propriamente uma máquina que vai debitando as músicas (ou mais correctamente, os excertos de obras musicais) de um lote restrito, nem existe um padrão de repetição como acontece nas 'playlists' em uso nas rádios comerciais (e nas Antenas 1 e 3), mas o conceito subjacente é muito semelhante. Não por acaso a Antena 2 foi também infestada de 'jingles' e 'spots' que, de hora a hora (às vezes menos), são bombardeados aos tímpanos dos ouvintes mais pacientes e perseverantes que ainda a sintonizam. E aqui os padrões de repetição são assustadoramente similares aos praticados nas rádios que dependem da publicidade. Mas tudo isto não será de admirar se atendermos aos indivíduos que estão na direcção – Rui Pêgo e João Almeida – que sempre trabalharam em rádios comerciais. E como se explica que na actual Antena 2 não haja um programa de História, nem de Ciência, nem de Poesia? Onde está o cumprimento das obrigações culturais do serviço público fora do estrito domínio da música?
Por último, a questão do acordo ortográfico e do alheamento da RTP perante o mesmo. Creio que tal tem acontecido não por uma decisão consciente e esclarecida da parte da direcção de programas mas por mero laxismo. E se o laxismo, por regra, se deve condenar, neste caso concreto há que louvá-lo. E porquê? Porque o dito acordo ortográfico, pelos erros, incoerências e aberrações que encerra, não é para levar a sério. Além do mais, existe uma
petição para a sua revisão que já conta com mais de 120 000 assinaturas, entre as quais as dos mais eminentes linguistas, escritores, artistas e professores. A televisão, embora por laxismo, tem tido uma postura correcta nesta matéria mas o mesmo não se pode dizer da rádio, digo da Antena 2, que tem um programa chamado "Páginas de Português", que há muito tomou partido a favor do acordo e lhe vem fazendo uma continuada promoção. Em todo o caso, no dia e à hora a que o programa é transmitido (domingos, 17:00) a audiência é residual pelo que o afã propagandístico dos seus autores, José Mário Costa e José Manuel Matias, terá um alcance bastante limitado.


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2 comentários:

Fernando G disse...

Estou de acordo com tudo no seu comentário excepto o pormenor do acordo ortográfico. É que a sua visão choca com o primeiro parágrafo do artigo do José Carlos Vasconcelos.
A lei do acordo ortográfico é, tal como as outras, para cumprir. Mesmo que se lute contra ela. Apesar de haver muitos contra a dita, muitos há a favor (incluindo também emininentes linguistas).
E, já agora, convém não esquecer que esta lei tem quase 20 anos, e que, durante todo este tempo, parece que ninguém se preocupou com o assunto. Agora, a única coisa decente a fazer é tentar melhorar os erros do acordo, mas não acabar com ele nem fingir que não existe, tal como o faz a RTP, que acaba por ver tal laxismo louvado pela sua pessoa.
Abraço.

Menina Marota disse...

Excelente e esclarecedor texto que gostei de ler.

Grata pela sua partilha