19 dezembro 2008

A 'macdonaldização' da Antena 2

Por: Mário Vieira de Carvalho (musicólogo, professor universitário e ex-secretário de Estado da Cultura)



Carecemos de uma esfera pública mais forte e dinâmica e com maior incidência em questões de cultura. Como explicar, por isso, o retrocesso na missão de serviço público da RTP/RDP através da Antena 2 - um retrocesso que remonta a 2003?
Antes de mais, a Antena 2 tem de fixar o seu público-alvo, que não pode ser o mesmo de uma rádio generalista. Tem de estimular aquilo a que poderíamos chamar a literacia da escuta e definir, a partir daí, uma estratégia de alargamento da sua audiência. Mas não se pode ganhar mais pessoas para a literacia, se se começa por promover a iliteracia.
Eis, precisamente, o que se passa com a música. Assiste-se a um recuo histórico da sua presença na Antena 2 e, portanto, na esfera pública. Deixou de haver em Portugal uma rádio que cultive realmente a integridade da escuta musical. Só por excepção se consegue ouvir uma sinfonia ou uma sonata completas. O andamento desgarrado de um quarteto de cordas é transmitido com o mesmo à-vontade caprichoso e arbitrário, a mesma falta de escrúpulos, o mesmo alvar "porreirismo" com que se apresentaria ao ouvinte a estrofe desgarrada de um soneto. A programação começa logo por pressupor o enfado do ouvinte, a sua incapacidade de concentração, ou simplesmente a sua preferência pelo 'entertainer' (locutor) a pretexto da música. Exclui-se, ao mesmo tempo, um tipo de ouvinte muito comum: o que mergulha subliminarmente no discurso ininterrupto da música enquanto se ocupa de outras coisas. Um modo de percepção que não impede que a música se entranhe e se reconstrua no seu todo, deixando intactas no subconsciente as associações que permitem depois reconhecê-la e antecipá-la no seu desenrolar - a base da literacia da escuta.
"Vibrato", "Baile de máscaras", "Boulevard", etc., que preenchem manhãs e tardes inteiras, são nomes diferentes para a mesma receita: a dos antigos "serões para trabalhadores". Coisas truncadas, mutiladas, aligeiradas, abreviadas... para "o Outro inferior". Música a metro, ou a retalho, leiloada a pataco - "quatro minutos" deste, "três minutos" daquele -, como quem propusesse "20cm x 10cm" de tal ou tal tela pintada. O alinhamento espartilhado em "horas" impõe o tempo burocrático ao tempo musical. Para uma sinfonia de Mahler, só cortando as "extremidades"...
Amordaçada, estropiada, a linguagem da música deixa de falar por si. Mal a gente mergulha no universo do indizível, logo a palavra irrompe, banal e intrusiva, liquidando a experiência musical. Bombardeiam-nos com comentários fúteis ou pormenores pitorescos, observações a despropósito, erros, imprecisões... A pseudo-abertura à comunicação informal esconde o défice de profissionalismo. Nunca houve tantos profissionais da música e da musicologia em Portugal, e nunca a Antena 2 teve tão poucos deles nos seus quadros!... A programação planificada cede o lugar à improvisação atabalhoada. Por isso, se recuou também no aproveitamento das novas possibilidades oferecidas pela Internet.
Salvo os programas ou apontamentos de divulgação assinados por colaboradores com créditos firmados, a Antena 2 transformou-se numa rádio de apartes, de 'spots' publicitários, de reclames a música que não chega a ser difundida. Os ouvintes que se contentem com as amostras. Se querem mais, que comprem o CD.
Mas, qualquer dia, nem isso. A iliteracia vicia. Como os 'hamburguers'. Acaba-se o gosto pela música, e resta apenas a frequência aditiva do 'fast food' musical. A obesidade da mente.

[in jornal "Público", 13.12.2008]


Não podia estar mais de acordo com o artigo de opinião do Prof. Mário Vieira de Carvalho a respeito da Antena 2. Aliás, as deficiências apontadas e outras, como o imperdoável desaparecimento de programas culturais (não musicais) – nas áreas da História, da Literatura, etc. –, já este escrevinhador, ainda de que modo não tão eloquente, as enunciou neste sítio em vários textos (por exemplo, "Antena 0,2: a arte que destoca") e de que tem tido o cuidado de enviar cópias aos altos responsáveis da Rádio e Televisão de Portugal (presidente do conselho de administração, directores de programação e informação, Provedor do Ouvinte). Só que ao contrário do cidadão Álvaro José Ferreira, que não tem ao seu alcance outros meios para intervir na coisa pública, o Prof. Mário Vieira de Carvalho foi, até há poucos meses, governante, mais concretamente secretário de Estado da Cultura. Nesta conformidade, eu não posso deixar de lhe formular esta pergunta: o que fez o Prof. Mário Vieira de Carvalho, quando esteve no Governo, com vista à resolução dos problemas da Antena 2, que, como muito bem diz, não começaram agora? Poderá dar-me uma resposta nestes termos: «Não me cabia a mim resolver esses problemas porque a rádio pública não estava sob a minha tutela, mas do Ministro dos Assuntos Parlamentares, Augusto Santos Silva, e, em última análise, do Primeiro-Ministro, Eng.º José Sócrates.» Sim, isso é verdade, mas enquanto membro do Governo, e à luz do princípio da subsidiariedade que deve reger as relações entre titulares de cargos governamentais, nada nem ninguém o impedia de solicitar uma audiência ao Sr. Primeiro-Ministro para lhe apresentar a questão ou, pelo menos, de pedir à titular da pasta ministerial a que pertencia, a Prof.ª Isabel Pires de Lima, para levar o assunto ao Conselho de Ministros. Fez alguma dessas coisas? É claro que agora, enquanto cidadão já livre de responsabilidades governamentais, o Prof. Mário Vieira de Carvalho faz muito bem em manifestar-se publicamente, mas de uma coisa não se livra: a de ser acusado de ter pecado por omissão quando se encontrava no seio do Poder (retiro o que referi se, acaso, fez alguma daquelas diligências e não lhe deram ouvidos).
Bem, os problemas da Antena 2 estão identificados e os responsáveis pela sua existência também são conhecidos: Rui Pêgo e João Almeida. Se perante o estado crítico a que as coisas chegaram, a administração da Rádio e Televisão de Portugal continuar impávida e serena, fazendo de conta que tudo está bem, e mantendo a confiança em indivíduos que já mostraram à saciedade que não têm a competência nem a idoneidade cultural que o serviço público pressupõe, então resta apelar à intervenção do Poder Político. A fim de evitar a crescente desqualificação do canal clássico/cultural da rádio pública e não se caia numa situação tão degradada que quando finalmente lhe quiserem acudir já seja tarde demais.

2 comentários:

Paulo disse...

Perfeitamente apoiado.
Quem é que colocou os senhores João Almeida e Rui Pêgo nos lugares onde estão?

MGomes disse...

Triste País que tão maltrata a sua cultura por gente completamente divorciada dos valores mais sublimes nas àreas sociais e artísticas!

Abraço!