29 julho 2024

Mísia: "Da Vida Quero os Sinais" (Mário Cláudio)



Quando Mísia escolheu o repertório para o seu álbum autobiográfico "Animal Sentimental", que viria a ser lançado a 29 de Abril de 2022, já estava bem ciente de que os carcinomas que lhe haviam sido diagnosticados desde 2016, pese embora as intervenções cirúrgicas e as sessões de quimioterapia, poderiam vir a matá-la a não muito longo prazo. Não é, por isso, de admirar que a artista tenha incluído naquele álbum, talvez pressentindo que seria o último, alguns espécimes que, mais ou menos explicitamente, abordam o tema (ingrato) da morte. Um deles tem por título "Da Vida Quero os Sinais", foi escrito pelo reputado escritor Mário Cláudio, e Mísia canta-o de modo muito sentido e impressionante, com a voz dorida, somente acompanhada por piano, na melodia plangente do Fado Tango criada por Joaquim Campos, e cujos três versos finais («Que uma estrela se levante, / Quando este fado se cante. / E a terra me seja leve.») o prenúncio da morte veio tornar, infortunadamente, mais significantes e oportunos do que nunca. O registo é deveras pungente e o facto de ter sido produzido um 'videoclip' mostra o quanto tal fado (no seu todo de palavras e música) significava para a malograda artista [>> YouTube]. Não se trata, contudo, de um inédito, e a gravação original, que fecha o álbum "Garras dos Sentidos" (Erato, 1998), um dos melhores da sua discografia, não é menos tocante e comovente, muito graças ao acompanhamento por um quinteto de cordas friccionadas, que acentua o carácter merencório e pesaroso. Motivo determinante que nos impeliu a escolher esse primeiro registo para, dando-lhe aqui destaque, manifestarmos a nossa desolação pela partida daquela que foi (e continua a ser) a mais requintada, exigente e qualificada intérprete de fado após o ocaso amaliano (dos inícios dos anos 90 em diante) e deixarmos expresso o nosso penhorado agradecimento à categorizada artista pelo contributo muito significativo que deu para o enriquecimento estético do património fonográfico do Fado e, por extensão, de toda a Música Portuguesa.
Muito obrigado, Mísia, e até sempre!

Foi Graça Vasconcelos, no seu memorável programa "Imaginário", num dos serões da Antena 1 nos anos 1990, que proporcionou ao escrevente destas linhas a descoberta da arte de Mísia, quando passou o fado "Liberdades Poéticas" (letra e música de Sérgio Godinho), que abre o seu segundo álbum, "Fado" (BMG Ariola, 1993) [>> YouTube]. Não nos foi difícil perceber logo que se tratava de uma fadista diferente, original e de real talento: não, portanto, mais uma vulgar cantadeira de fado repisando os clássicos de Amália e de outras figuras gradas da típica canção de Lisboa. E desde então fomos adquirindo os seus trabalhos discográficos, que não raras vezes revisitámos, e com um prazer acrescido mesclado de sentimento de privilégio a partir do momento em que a cantora, apesar do justíssimo sucesso alcançado além-fronteiras, onde actuou nas mais prestigiadas salas de concertos (algumas das quais nunca antes franqueadas a artistas portugueses a não ser a Amália), foi impiedosamente posta à margem pela Antena 1 quando, em 2003, por iniciativa do inenarrável António Luís Marinho, se implantou uma 'playlist' monopolizada pelos produtos e subprodutos mais banais e rasteiros que as multinacionais do disco e a editora do grupo Media Capital (a Farol) queriam vender. O tempo foi passando e, actualmente, apesar da 'playlist' ter alguns salpicos de fado, Mísia não deixou de ser considerado um nome maldito por quem manda no canal e decide (prepotente e levianamente) o que entra e o que fica de fora da referida lista. Perguntamos: o soez ostracismo vai continuar? É verdade que a partir de agora a artista já não poderá tirar proveito material algum de estar representada na 'playlist', mas o reconhecimento de que é credora por parte do seu país reclama que a vergonhosa situação seja urgentemente corrigida. Assim o exigem os ouvintes/contribuintes que pugnam por um serviço público de rádio digno desse nome e, como tal, jamais atraiçoando a sua nobre missão de cultivar a obra e a memória dos nossos melhores autores (de poemas e de letras), compositores e intérpretes!



Da Vida Quero os Sinais
A Amir Hosseinpour



Letra: Mário Cláudio
Música: Joaquim Campos (Fado Tango)
Intérprete: Mísia* (in CD "Garras dos Sentidos", Erato, 1998; 2CD "Do Primeiro Fado ao Último Tango": CD 2 – "As Asas do Coração", Parlophone/Warner Music, 2016)




[instrumental]

Ó Deus do fado menor,
Que reinas dentro de mim,
Faz com que a taça da dor       | bis
Se encha de um vinho em flor, |
Me mate a sede do fim.           |

Da vida quero os sinais
De uma gaivota na areia,
O aroma dos laranjais,            | bis
E a morte em que durar mais  |
O amor sem eira nem beira.    |

No espelho nu que me encante,
Que fique um sopro de neve,
Que uma estrela se levante,  | bis
Quando este fado se cante.   |
E a terra me seja leve.          |

[instrumental]

Que uma estrela se levante,
Quando este fado se cante.
E a terra me seja leve.


* Mísia – voz
Fulvio Liviabella – 1.º violino
Ágnes Sárosi – 2.º violino
Massimo Mazzeo – violeta
Jonathan Tortolano – violoncelo
Mário Franco – contrabaixo
Direcção – João Paulo Esteves da Silva

Arranjos e direcção musical – Ricardo J. Dias
Co-direcção – Mísia
Produtor executivo – Ricardo J. Dias
Gravado nos Estúdios Xangrilá, Lisboa, em Outubro de 1997
Técnico de som – Nuno Pimentel
Mistura – Ricardo J. Dias e Mísia (Studios Plus XXX, Paris)
Técnico de som – Emmanuel Pothier
Masterização – Yves Delaunay (Dyam Studios, Paris)
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://www.misia-musik.com/
https://www.museudofado.pt/fado/personalidade/misia
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https://www.youtube.com/@misiafado/videos
https://music.youtube.com/channel/UChWigY2MXihQHcJkD9O0How
https://music.youtube.com/channel/UC-6Z1geTUs70mQoO9frPrDA



Capa do CD "Garras dos Sentidos", de Mísia (Erato, 1998)
Fotografia e concepção – C.B. Aragão



Capa da compilação em duplo CD "Do Primeiro Fado ao Último Tango" (Parlophone/Warner Music, 2016)

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