23 julho 2024

Schubert por Maria João Pires




O viajante magnífico

Era um homem que esperava tudo, não esperava nada, atirado de vaga em vaga, perdido no espaço, no tempo, sem objectivo, como um pára-quedista aterrado no mundo por acaso, e que envidava todos os seus esforços para que essa opacidade que o envolvia e esse mistério de que ele era feito não se quedassem alheios um ao outro.
Sentia-se qual absurda peça de cartão ficada nas mãos do jogador, quando afinal o puzzle está formado, terminado: perfeito.

                                  *

O deserto não é a ausência.
É o estado anterior à presença, antes de os nómadas o atravessarem, antes de os aventureiros lá se deterem para em seguida tornarem a partir noutra direcção. Ele é. Sem precisarmos de lhe delimitar contornos, uma geografia, uma superfície, ele é o deserto. Esse lugar onde nos perdemos, onde o mundo é aniquilado, onde o tempo é desprovido de velocidade, onde o dia e a noite se sucedem sendo um qualquer dia e uma qualquer noite, com o mineral presente, de formas efémeras, a poeira, a pedra, os rochedos, a areia... E a toda a volta, o espaço e o céu... Ele é o lugar de nenhures onde por vezes uma palavra pode apoderar-se do seu infinito.

                                  *

De onde vem esta nostalgia que trazemos em nós e que nos dá por vezes o sentimento de termos perdido uma imensidade? Não uma saudade de paraíso desaparecido onde tudo teria sido belo, simples e duradouro. Antes um mal-estar, como em certos despertares, após uma noite em que o sonho nos deu o direito de voar acima das árvores e dos telhados dos prédios. Ter perdido um poder.
Os nossos olhares projectados na direcção do oceano ou das noites estreladas do Verão reconduzem-nos invariavelmente a esta perturbação que parece tão banal e partilhada que ninguém dela fala por receio do ridículo.
Haverá um espaço perdido que é capaz de ressurgir a cada um dos nossos confrontos com as imensidades que estão ao alcance da mão, o céu, os oceanos, os desertos, a noite... Encerrará porventura o código genético, além dos testamentos do pai e da mãe, a marca de uma viagem sem moderação através de cada recanto daquilo a que se chama o Universo?...
Há nestes impulsos misteriosos para espaços infinitos e na ideia que deles fazemos, a marca de uma tentativa que se esforça por reencontrar uma imensidade de que a determinado momento tivemos conhecimento mas que desapareceu. Cada criança que vem ao mundo ver-se-á acaso privada de uma imensidade de que teria disposto, antes de nascer, muito antes de possuir um cérebro e uma consciência, e com a qual brincava sem lugar, sem referência, aqui e em toda a parte, livre?
A vida seria então o fabrico de um invólucro que desprende do mundo uma parcela de infinito, para lhe outorgar um peso, um lugar, um início e um fim.

                  YVES SIMON (1987, Éditions Grasset &
                  Fasquelle)
                  (Tradução: G. Cascais Franco)


Impromptus

Schubert compõe como nos confiamos ao nosso melhor amigo, quando o temos. Sem fraseado, sem grande eloquência, e isso cria entre ele e nós um segredo partilhado. Mãos e bolsos vazios: a música nua, para além, muito para além de todo o impudor... É como a nudez de uma criança, que é porém a nossa. Cada um reconhece-se nele, reconhecendo-o a ele próprio. [...] A música de Schubert parece-se a Schubert e a todos nós, tal como a infância. A solidão. A morte. Dir-se-ia uma confissão, ou melhor (porque se dirige unicamente a nós, sem padre, sem sacramento nem remorso), uma longa e vã confidência pela simples emoção do dizer e do escutar, como uma plenitude da alma, um soluço ou um sorriso, e esse ardor de ser ou de amar, no instante que precede a morte, essa lentidão, esse langor, essa solidão infinita...

                  ANDRÉ COMTE-SPONVILLE
                  (Tradução: Ana Pires)


Na sua forma mais sublime, e dela faz parte a obra de Schubert, a música detém um poder universal — poder que lhe advém da forma prodigiosa como se insinua no mais profundo dos códigos misteriosos pelos quais o corpo transmite os seus sinais ao cérebro. Assim, o cérebro trata as mensagens musicais como se elas viessem do coração e não do ouvido. Esta música apropria-se da transmissão e chega ao cérebro não somente enquanto som, mas também como sentimento puro. E que sentimento é este para um organismo vivo senão a enunciação dos estados graças aos quais a Natureza compõe as emoções mais diversas, desde o desejo ardente do inatingível ou da angústia da partida, à resignação da viagem de inverno, à febre da aventura, à visita sempre adiada a um lugar desprendido deste mundo?... Quando esta apropriação acontece, o espírito do ouvinte privilegiado tem a sensação de estar a escutar as portas da sua própria vida interior, de estar ligado à fonte da existência, longe, bem longe do quadro mundano da experiência.

                  ANTÓNIO R. DAMÁSIO, neurocientista
                  (Tradução: Margarida Luz)

[Textos retirados do caderno do álbum "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus", de Maria João Pires, Deutsche Grammophon, 1997 – p. 18-22]


Tendo Maria João Pires uma discografia vasta e recheada de gravações de absoluta referência, não se afigurava fácil, à partida, escolher uma peça ou conjunto de peças para aqui lhe darmos destaque e, desse modo, exprimirmos as nossas felicitações à grande (enorme) pianista portuguesa pelo seu 80.º aniversário e, simultaneamente, manifestarmos-lhe a nossa gratidão por tanta e boa música que já gravou e por ser a maior embaixatriz de Portugal no campo da música erudita pelo mundo fora. A nossa escolha teria de incidir obrigatoriamente num dos seguintes compositores: Bach, Mozart, Beethoven, Schubert ou Chopin. Depois de algumas voltas e reviravoltas, decidimo-nos por Schubert, mais concretamente pelos maravilhosos quatro Improvisos D. 899 e pelo belíssimo Allegretto D. 915, que preenchem o primeiro disco do duplo CD "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus" (Deutsche Grammophon, 1997). Estas cinco peças contam-se entre as mais encantadoras que o génio de Schubert concebeu e a abordagem de Maria João Pires faz-lhes a máxima justiça testemunhando a superlativa mestria da notabilíssima pianista e a sua fina sensibilidade interpretativa, mostrando ter entendido na perfeição o pensamento do compositor, a tal ponto que ele, lá no assento etéreo onde descansa, deve ter esboçado um sorriso aquando da gravação, sorriso esse que lhe sobrevém sempre que alguém a cada audição se enleva e emociona. Esperamos que seja precisamente esse o sortilégio espiritual que se apodere daqueles que aqui vierem fruir tão sublimes momentos musicais. Boa escuta e mui prazenteiras experiências auditivas!
E votos de vida longa para a Senhora D. Maria João Pires, preeminente artista e digníssima servidora de muita da melhor música para tecla!


Na estação pública de rádio, de que modo tem sido celebrado o 80.º aniversário de Maria João Pires?
Em primeiro lugar, cumpre-nos enaltecer o realizador Germano Campos pelo louvável cuidado que teve ao resgatar do arquivo histórico da RDP para a edição de domingo do seu "Café Plaza" a interessante entrevista que a artista concedeu a Ana Sofia Carvalhêda, em 2001, poucos dias após o lançamento do CD "Moonlight | Beethoven Sonatas 'Quasi Una Fantasia'" [>> RTP-Play]. Hoje, designadamente nos espaços da manhã e do fim da tarde, respectivamente pela mão de Paulo Alves Guerra, de André Pinto e de João Rodrigues Pedro, também foi feita menção ao aniversário redondo da ilustre pianista e transmitidas algumas das suas gravações. Registamos isso com agrado, mas fica-nos a saber a pouco. O canal público mais vocacionado para a música erudita tinha (tem) a obrigação de fazer muito mais por Maria João Pires. E esse 'mais' seria, sem prejuízo de outras iniciativas, uma temporada de transmissões, idealmente à cadência diária, abarcando a discografia e as gravações de recitais/concertos que existem no arquivo da RDP. Fica a sugestão porque ainda se está a tempo. Seria bom que quem ocupa a direcção de programas da Antena 2 tivesse presente esta coisa elementaríssima: o reconhecimento aos nossos valores maiores da Cultura, por parte das entidades públicas, deve fazer-se primeiramente quando eles estão entre nós...
Não nos demos ao cuidado de escrutinar a emissão da Antena 1 e, por isso, não sabemos se algo foi feito em prol de Maria João Pires. Se acaso nada se fez, o canal generalista (e frisamos bem a palavra generalista) da rádio do Estado procedeu muito mal, por um lado, porque não se trata de uma artista qualquer, e, por outro lado, porque não é admissível que a Antena 1 se limite a ser uma espécie de rádio temática de música pop, como hoje praticamente é...



4 Impromptus, Op. 90, D. 899 - N.º 1 em dó menor: Allegro molto moderato



Música: Franz Schubert (1827)
Intérprete: Maria João Pires* (in 2CD "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus": CD 1, Deutsche Grammophon, 1997)




(instrumental)


* Maria João Pires – piano



4 Impromptus, Op. 90, D. 899 - N.º 2 em mi bemol maior: Allegro



Música: Franz Schubert (1827)
Intérprete: Maria João Pires* (in 2CD "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus": CD 1, Deutsche Grammophon, 1997)




(instrumental)


* Maria João Pires – piano



4 Impromptus, Op. 90, D. 899 - N.º 3 em sol bemol maior: Andante



Música: Franz Schubert (1827)
Intérprete: Maria João Pires* (in 2CD "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus": CD 1, Deutsche Grammophon, 1997)




(instrumental)


* Maria João Pires – piano



4 Impromptus, Op. 90, D. 899 - N.º 4 em lá bemol maior: Allegretto - Trio



Música: Franz Schubert (1827)
Intérprete: Maria João Pires* (in 2CD "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus": CD 1, Deutsche Grammophon, 1997)




(instrumental)


* Maria João Pires – piano



Allegretto em dó menor, D. 915



Música: Franz Schubert (1827)
Intérprete: Maria João Pires* (in 2CD "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus": CD 1, Deutsche Grammophon, 1997)




(instrumental)


* Maria João Pires – piano

Produtor executivo – Christopher Alder
Produtor de gravação – Helmut Burk
Gravado no Concertgebouw, Haarlem (Holanda), em Julho de 1996 (D. 899), e no Palácio Nacional de Queluz (Portugal), em Setembro e Outubro de 1997
Engenheiros de som – Hans-Ulrich Bastin (D. 899) e Helmut Burk
Engenheiros de gravação – Jürgen Bulgrin (D. 899) e Wolf-Dieter Karwatky
Montagem – Mark Buecker
URL: https://www.mariajoaopires.com/
https://www.facebook.com/mariajoaopires/
https://music.youtube.com/channel/UCjiWhXDKT-ZwhK-OhRrUxHA



Capa do duplo CD "Le Voyage Magnifique: Schubert Impromptus", de Maria João Pires (Deutsche Grammophon, 1997)
Fotografia – Jerôme Latteur
Direcção de arte – Fred Münzmaier

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Outros artigos com repertório interpretado por Maria João Pires:
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)
Em memória de Vasco Graça Moura (1942-2014)
Em memória de Júlio Pomar (1926-2018)

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Outro artigo com música de Franz Schubert:
Franz Schubert: "An die Musik" (Franz von Schober)

[Reeditado em 24 Jul. 2024]

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