01 outubro 2025

Gaiteiros de Lisboa: "Talvez Que Sonhando" (Sérgio Godinho)


(in https://commons.wikimedia.org/)
Henri Rousseau, "Le Rêve" ("O Sonho"), 1910, óleo sobre tela, 204,5 × 298,5 cm, Museum of Modern Art, Nova Iorque
[Para ver a imagem em ecrã inteiro, noutra janela, é favor clicar aqui]


«Numa primeira audição, esta "invasão" provoca algum desconforto. Não é um disco fácil. Os Gaiteiros de Lisboa confundem e incomodam. Preferem arriscar a petiscar. Lutadores, empunham uma espada do mesmo calibre da que em vida empunhou José Afonso. Desbravar o que ainda não existe e, com o impossível, fazer obra.
[...]
Disco pretensioso, sem dúvida, no modo como escapa a qualquer catalogação e se distancia com orgulhos dos caminhos mais fáceis e mil vezes trilhados de fazer "música de raiz tradicional". Disco experimental, também. Os Gaiteiros, mais do que usar, abusam do legado tradicional, entregando-se a cirurgias de parto capazes de originar os mutantes de uma nova tradição ou, em termos gráficos, a instrumentos como a "besta-de-foles" da capa. E se temas como "Talvez que sonhando" ou "Décimas" surgem marcados pela influência, respectivamente, de José Mário Branco e Fausto, outros, verdadeiramente de antologia, como "O menino está na neve", erguem a nossa música popular a patamares nunca antes atingidos. Música "bárbara", sem dúvida, pela heresia formal que a enforma, e porque fremente e virgem dos maneirismos que deitam tudo a perder e fazem nascer o preconceito.»
Foi com estas palavras que o reputado e saudoso crítico musical Fernando Magalhães recenseou o álbum "Invasões Bárbaras", disco de estreia dos Gaiteiros de Lisboa, nas páginas do suplemento "Pop Rock" do jornal "Público", de 18 de Outubro de 1995 [texto completo em "Poeira Cósmica"]. Fernando Magalhães foi lúcido e cortês na apreciação da proposta arrojada e algo desconcertante que os novos Gaiteiros apresentavam, mas houve alguma gente respeitável que não lhes perdoou a ousadia e não se coibiu de 'mimá-los' com censuras malévolas, atitude que daria azo à escolha da expressão "Bocas do Inferno" para título do segundo álbum, publicado dois anos mais tarde. Mas não foi só na recriação heterodoxa da nossa herança etnomusical que os Gaiteiros de Lisboa se diferenciaram dos projectos mais canónicos e reconhecidos da música tradicional lusitana; foi também na aposta de gravarem repertório original, concebido, claro está, segundo os inovadores e distintivos padrões estético-estilísticos que adoptaram. Um magnífico exemplo disso é a canção "Talvez Que Sonhando", que Sérgio Godinho escreveu e compôs expressamente para eles, e que o esmerado arranjo de José Mário Branco (atente-se na magistral construção harmónica das vozes) elevou à categoria de pérola superlativamente fascinante no universo do nosso património musical, genericamente considerado. Ora, considerando a efeméride do trinténio do lançamento do álbum "Invasões Bárbaras", e uma vez que a letra gizada por Sérgio Godinho versa sobre quem labuta e não desiste de sonhar com ou em prol da música, consciente que está do quão essencial ela é à vida («Ter sempre a certeza da música / Por via da música tocar e cantar»), afigurou-se-nos inteiramente apropriado dar destaque a "Talvez Que Sonhando" neste dia em que se celebra a arte dos sons. Boa escuta!

O vil ostracismo a que a música portuguesa de raiz/matriz tradicional tem sido votada por quem superintende/administra a 'playlist' da Antena 1 tem como efeito que nos larguíssimos períodos da emissão de continuidade seja impossível apanhar o quer que seja da produção dos Gaiteiros de Lisboa. Tal atitude, além de representar um criminoso acto de sonegação cultural aos ouvintes de um canal que eles pagam, traduz-se em clamorosa injustiça a um grupo que se afirmou, nas últimas três décadas, como de absoluta referência no meio musical português. Haja decência e sentido de serviço público!



Talvez Que Sonhando



Letra e música: Sérgio Godinho
Intérprete: Gaiteiros de Lisboa* [in CD "Invasões Bárbaras", Farol Música, 1995; CD "A História" (compilação), Uguru, 2017]




[instrumental]

Ser ou não ser gente
Ter ou não ter sonhos
Mais exactamente – vir
À tona dos sonhos
Ter sempre a certeza das dúvidas
Por via das dúvidas saber o que achar

Dobradores do ferro
Sopradores do vidro
Na margem do erro – ser
Claro como o vidro
Ter sempre a destreza da prática
Por via da prática saber o que achar

Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
mas então
Que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo,
Talvez que sonhando...
Ter sempre a certeza da música
Por via da música tocar e cantar

Sedutores da musa
Amadores da alma
Mesmo que difusa – ser
A imagem da alma
Ter sempre a clareza da fábula
Por via da fábula saber o que achar

Dedos semelhantes
Às velozes aves
Mesmo que distante – ouvir
O chamar das aves
Ter sempre a afoiteza do pássaro
Por via do pássaro subir e pousar

Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
Mas então
Que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo,
Talvez que sonhando...
Ter sempre a certeza da música
Por via da música tocar e cantar

Ser ou não ser gente
Ter ou não ter sonhos
Mais exactamente – vir
À tona dos sonhos
Ter sempre a certeza das dúvidas
Por via das dúvidas saber o que achar

Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
Mas então
Que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo,
Talvez que sonhando...
Ter sempre a certeza da música

[instrumental]


* Gaiteiros de Lisboa:
Carlos Guerreiro – sanfona, voz solo, coro
José Manuel David – trompa, flauta, coro
José Salgueiro – percussão
Rui Vaz – voz solo, coro
Músico convidado:
José Mário Branco – percussão, coro

Produção, arranjos e direcção musical – Gaiteiros de Lisboa e José Mário Branco
Gravado no Teatro Municipal de São Luiz e Registúdio, Lisboa, de Fevereiro a Junho de 1995
Captação de som – José Manuel Fortes
Assistentes – Tiago Lopes, Calé, Maria João Castanheira
Misturas – José Manuel Fortes
URL: https://www.facebook.com/gaiteirosdelisboa
https://www.dorfeu.pt/gaiteirosdelisboa
https://www.uguru.net/artista/gaiteiros-de-lisboa/
https://music.youtube.com/channel/UCETAvlzPNPdP0x5sLNEfWNg/videos
https://www.youtube.com/user/DoTempoDosSonhos/videos?query=gaiteiros+de+lisboa
https://www.youtube.com/user/dOrfeuAC/videos?query=gaiteiros+de+lisboa



Capa do CD "Invasões Bárbaras", dos Gaiteiros de Lisboa (Farol Música, 1995)
Desenho – Carlos Guerreiro
Design e direcção gráfica – Fátima Rolo Duarte
Arte-final – Luís Miguel (Euphoria Comunicação)



Capa da compilação em CD "A História", dos Gaiteiros de Lisboa (Uguru, 2017)
Desenho – Carlos Guerreiro.

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