21 fevereiro 2006

"O Ouvido de Maxwell": pare, escute, sinta


Sem a música a vida seria um erro.
                       Nietzsche

Quando escrevi sobre
a nova grelha da Antena 2, fiz uma breve referência a este extraordinário programa, da autoria de António Almeida. Na verdade trata-se das melhores coisas que actualmente se podem ouvir na nossa rádio e, como tal, é de toda a justiça lhe seja dado maior realce. "O Ouvido de Maxwell" faz parte daquela categoria de programas cada vez mais raros na rádio portuguesa, capazes de proporcionar uma inusitada fruição auditiva. Como tal, a palavra 'ouvido' não podia ter sido escolhida com mais propriedade. Então e a que propósito aparece o antropónimo Maxwell? O nome não é muito conhecido do grande público, mas na verdade trata-se de uma das grandes figuras da Física do séc. XIX, sobretudo pelo contributo que deu nas áreas da termodinâmica e do electromagnetismo. De facto, foi o escocês James Maxwell (na foto) que definiu a natureza ondulatória da luz através de equações matemáticas e que predisse a existência de ondas electromagnéticas não visíveis (em 1864), cuja confirmação experimental viria a ser feita por Hertz alguns anos mais tarde. Assim, a invocação de Maxwell num programa de rádio é pertinente.
Para mim, ouvir do programa "O Ouvido de Maxwell" constitui uma espécie de ritual litúrgico, uma experiência única só possível com o sentido da audição o que talvez se explique por o ouvido ser, como já alguém disse, "a porta daquilo que não é deste mundo". Por alguma razão, o ouvido na altura do adormecer é o último sentido que capitula perante a passividade inconsciente que chega, antes de se entrar na antecâmara da morte, como Shakespeare chamou ao sono. Durante a vigília os ouvidos são de todos os órgãos sensoriais os que têm um funcionamento mais imediatista e incontrolável: "as orelhas não têm pálpebras", como se dizia no programa inaugural. Por isso, não lhes é possível evitar e ignorar a informação sonora envolvente seja o som ou a ausência dele – o silêncio. «O silêncio é para as orelhas o que a noite é para os olhos. Quando a música soa, uma porta abre-se e nós entramos». Durante muito tempo, dado que a música era rara a sua sedução era vertiginosa e a sua fruição constituía uma experiência de comunhão com o inefável, com o intangível. Mas no mundo moderno em que estamos rodeados de ruídos e de música por todos os lados tornou-se inevitável a banalização, perdeu-se o fascínio primordial, o carácter ritualizado que ela teve até ao advento e proliferação dos meios de reprodução sonora, primeiro o gramofone e depois a rádio, a televisão, os auto-rádios com leitores de cassetes/CDs, os leitores portáteis de áudio digital. A música foi transformada num produto de consumo como qualquer outro.
"O Ouvido de Maxwell" dá-nos justamente o contraponto entre os múltiplos e incessantes ruídos que caracterizam a nossa civilização e a música que se ouvia desde a remota Idade Média até à Revolução Industrial. E como na poesia em que há um mote a que têm de obedecer as estrofes seguintes também cada emissão de "O Ouvido de Maxwell" é subordinada a um tema diferente. O sábio encadeamento entre os textos lidos, a música alusiva criteriosamente escolhida e os sons da actualidade (um ruído captado na rua, um excerto da banda sonora de um filme, etc.) tornam o programa um obra conceptual de rara beleza e sublime contemplação auditiva.
Dos programas até agora emitidos, não posso deixar de fazer uma referência muito especial ao programa "La commedia è finita", dedicado à morte, um tema propositadamente evitado na actual sociedade de consumo. Mas a morte, sobretudo antes da descoberta da penicilina e da democratização dos cuidados de saúde, era uma realidade quotidiana que não era possível iludir. Também nós, por muito que nos custe, seremos um dia confrontados com ela. Neste contexto, permito-me transcrever, e com a devida vénia ao seu autor, alguns excertos do citado programa que me pareceram mais eloquentes. Porque a reflexão sobre a morte pode ajudar-nos a apreciar e a valorizar melhor a vida.


_____________________________________________


La commedia è finita
É aqui que as pessoas vêm para viver?
Sou antes tentado a crer que se morre aqui.
Rilke

Hoje mais do que fugir, ignora-se a morte. Tratamo-la como um hóspede indesejado que se arruma num quarto esconso, do qual se deita a chave fora. Vive-se como se se vivesse para sempre. Não estamos cientes que a qualquer instante a comédia pode acabar. Ignora-se o que mais valoriza o único de cada momento. É também pela convivência diária com a morte que se constrói uma vida genuína.

Acabar é o verbo que menos gosto. Morrer já me diz mais. Prefiro-o aos sinónimos: expirar, apagar, passar, trespassar, perecer, desaparecer, sucumbir, falecer. Uns porque asseguram que há qualquer coisa depois, outros porque afirmam que não há nada. Só morrer rende o facto e o enigma, a solidão de se ser tomado em qualquer coisa que não tem sentido.

Porquê a morte? É perguntar-se: porquê as palavras? Pois o que resta a deixar, a perder? Palavras; muitas vezes nada mais que um mero: Rosebud. Conhece-se esse guião que tem a beleza dos desvios e a abertura das coisas simples. Um moribundo pronuncia essas sílabas indecifráveis. Pensa-se num nome de palácio, de livro, de mulher, de empresa. Mais tarde descobre-se que era um nome de nada, um nome gravado sobre um trenó de criança.
Restam também frases como "agora e na hora da nossa morte". Em criança, pronunciava essas palavras sem as compreender. Não vivia senão à hora presente, e acreditava que a outra hora jamais soaria. Não sabia que só as orações diziam a mesma coisa nos dois extremos do tempo, que as palavras envelhecem como as peles, que se carregam de rugas, de vazios, e de gorduras. Mas algumas permanecem intactas, jovens, crianças quase. Parecem vir de uma voz que ignora o tempo. Falaremos nós mais alto, mais certo, quando essa hora chega? Porque é que será assim? As nossas palavras serão elas ainda articuladas, ou meros gemidos e balbuciamentos? Faremos nós a besta quando o anjo desliza sobre nós a sua asa?

E agora? Deixaste de habitar o mundo dos vivos. O mundo dos mortos adiados. A tua hora soou. Deixaram de te conceder o adiamento. Deves servir. E servirás tanto melhor quanto melhor tiveres aproveitado o tempo em que esperavas ordeiramente na fila a tua vez. Servir para quê? Perguntas. Da poeira de estrela vieste e a ela voltarás: "das cinzas às cinzas".
Enquanto estiveste por aqui o que é fizeste? O que é não fizeste? O que é que devias ter feito? O que é querias fazer e não fizeste por cobardia, por preguiça, por ignorância de que esta hora ia chegar.
Era só uma questão de tempo. Tudo é uma questão de tempo. Tu desapareceste. E um dia também o sítio onde exististe desaparecerá, e o planeta girante onde esse sítio existiu, e o sistema onde esse planeta girou, e a galáxia onde esse sistema existiu. Tudo será tragado num vórtice que algures por aí aguarda também a sua vez. Serás átomos, electrões, neutrões, protões, e outras partículas sub-atómicas. Cada um livre de ir onde o vórtice na sua voracidade o projectar.
E nessa sopa de partículas o que resta de ti? Da tua vida?
O que habitará nelas do que tu foste?

_____________________________________________

Nota: O programa é emitido às quintas-feiras, pelas 10 horas da manhã ou meia-noite, alternadamente. A próxima emissão será no dia 23 à meia-noite e nela se fala daqueles que não prestam para nada mas que fazem o grande 'sacrifício' de 'servir' na política. Feliz e oportuna a inclusão do romance falado por João César Monteiro ao som de sanfona, peça de antologia do filme "Vai-e-Vem".

Sem comentários: