13 fevereiro 2006

Agostinho da Silva: centenário do nascimento

Me fiz gente se é que sou
em Barca d'Alva do Douro
para cima tudo celta
para baixo tudo mouro

o pior é que Alentejo
e Algarve tendo nas veias
como vou eu libertar-me
de tão apertadas teias

decerto não escapava
se fosse intelectual
como esses que tem havido
mais simples que Portugal

quem não for um mais o outro
mesmo que em contradição
será vencido na vida
lhe desfeito o coração

menos nadar que boiar
é que é a sabedoria
deixe a vida demonstrar
que é a verdadeira guia

e que é só ela quem sabe
o bom rumo da nação
e o porto a que vai chegar
quer ela queira quer não.


Agostinho da Silva (in "Uns Poemas de Agostinho")


Filho de pai algarvio e mãe alentejana, George Agostinho Baptista da Silva nasceu no Porto, no dia 13 de Fevereiro de 1906, faz hoje exactamente 100 anos. Passou a infância em Barca de Alva, Alto Douro, posto fronteiriço onde o pai exerceu as funções de inspector alfandegário. Licenciou-se em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras do Porto, onde teve como professor Leonardo Coimbra, paladino do movimento filosófico conhecido como Renascença Portuguesa. Doutorou-se na Sorbonne, em Paris, com uma tese sobre Montaigne. Demitido do ensino oficial português, em 1935, por se recusar a assinar, por convicções pessoais, uma declaração «jurando não ter pertencido ou vir a pertencer a qualquer associação secreta», passou a leccionar no ensino particular, tendo-se contado entre os seus alunos Mário Soares e Lagoa Henriques. Colaborou em publicações de referência como a revista "Seara Nova" e, no âmbito da sua actividade pedagógica, redigiu biografias de grandes figuras da História da Humanidade (Moisés, São Francisco de Assis, Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Émile Zola, Lincoln, Pasteur, etc.) e os Cadernos de Informação Cultural "Iniciação". Um deles, "O Cristianismo" (1942), pela visão heterodoxa nele expressa, veio a gerar violenta reacção de alguns clérigos e autores católicos, e a consequente perseguição pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que chegou a encarcerá-lo na prisão do Aljube durante algumas semanas. Em 1944, exilou-se no Brasil onde fundou e fomentou a criação de várias universidades (Paraíba, Santa Catarina e Brasília) e o Centro de Estudos Africanos e Orientais da Universidade Federal da Baía, a par de uma intensa actividade académica e científica nos mais diversos campos do saber (Literatura, Filosofia, História, Teatro, Geografia, Sociologia, Antropologia e também em áreas da Biologia como a Botânica, a Entomologia, a Histologia e a Parasitologia). Regressou a Portugal em 1969, vindo a criar um fundo para a atribuição do Prémio D. Dinis. Mesmo sem o estímulo da vida académica, sempre se caracterizou por uma renovada curiosidade científica bem patente na aprendizagem de línguas como o malaio e o esperanto e nas viagens demoradas que fez por diversos países designadamente o Japão.

Fui soldado no Brasil
marinheiro em Portugal
dos meses prefiro Abril
aurora primaveril
de liberdade ideal
das festas vou por Natal
em que inocência infantil
triunfante vence o mal
e sempre em sonhos de anil
sempre em vagas de real
fui soldado no Brasil
marinheiro em Portugal.

ibidem


Na sua vida adoptou um franciscanismo simultaneamente laico e paraclético que, segundo o Prof. Jesué Pinharanda Gomes, constitui «um singular testemunho propedêutico do messianismo português». O seu desapego das coisas materiais e sobretudo as suas ideias heterodoxas, designadamente a sua visão neo-vieiriana sobre o papel de Portugal no mundo, suscitaram o desdém de alguns intelectuais da nossa praça mas transformam-no numa espécie de guru para muitos jovens. Em 1990, a série "Conversas Vadias", que manteve na RTP-1 com treze figuras conhecidas dos media, fazem-no chegar ao grande público. Vem a falecer em Lisboa, a 03 de Abril de 1994, domingo de Páscoa. A sua vasta e heterogénea obra bibliográfica, que se encontrava dispersa por várias editoras (Ulmeiro, Relógio d'Água, Assírio & Alvim, etc.), foi sistematizada numa edição lançada pela Âncora e pelo Círculo de Leitores.
Perguntar-me-ão: a que propósito vem a evocação do Prof. Agostinho da Silva num blogue sobre rádio. A explicação é muito simples: é que foi justamente na rádio que eu o descobri pela mão do radialista Fernando Alves. E de imediato me impressionou a sabedoria com que falava das coisas mais profundas utilizando uma linguagem simples e coloquial, bem diferente do jargão académico muito comum em boa parte dos seus pares. A partir daí procurei conhecer melhor o seu pensamento através dos livros, mas não deixo de ficar sempre deliciado e fascinado quando me é dada a oportunidade de o ouvir na rádio. Foi o que aconteceu na manhã de ontem, quando Germano Campos, no programa "
Café Plaza", recuperou do arquivo histórico da RDP uma conversa havida com Graça Vasconcelos em que o professor falou da dicotomia liberdade versus destino. E teve o condão de me por a reflectir até que ponto muitas das coisas que fazemos supostamente no exercício do nosso livre-arbítrio não são no fundo ditadas pela nossa própria essência bio-psico-fisiológica. Será que somos verdadeiramente livres, ainda que sem grilhetas sociais, quando não nos podemos subtrair da nossa natureza corpórea, do burro albardado como lhe chamou Agostinho? O homem, ser que aspira à liberdade, está condenado a cumprir o seu destino enquanto homem porque lhe não é possível ser outra coisa.
Além de Fernando Alves e de Graça Vasconcelos, outros profissionais da nossa rádio entre os quais José Nuno Martins fizeram entrevistas ao grande pensador. Cumpre-me aproveitar esta ocasião para chamar a atenção para o interesse da inventariação, tratamento e salvaguarda desses registos avulsos e dispersos antes que se deteriorem ou levem sumiço. Longe de serem documentos de valor desprezível, as conversas que Agostinho da Silva fez na rádio não deixam de ter importância no conjunto do seu legado. Por isso, lanço daqui um repto à Associação Agostinho da Silva no sentido desse espólio fonográfico ser coligido, digitalizado e colocado numa página da internet de modo a que todos os interessados – estudiosos e público em geral – a ele tenham acesso. Do mesmo modo que um livro tem de ser lido para existir, também uma voz que não se ouve é como se não existisse. Fazer com que o pensamento de Agostinho continue vivo também passa por aí.

Nota: A
Antena 1 associou-se (e muito bem) às comemorações do centenário com a transmissão de um programa evocativo realizado por António Jorge.
A TSF dedicou um fórum subordinado ao tema "a portugalidade e o papel de Portugal no mundo" e vem transmitindo apontamentos evocativos realizados por Fernando Alves.
O
canal 2 da RTP assinala a efeméride com a reposição durante a semana (logo a seguir ao "Magazine", por volta da 1h da manhã) de quatro das "Conversas Vadias", mais precisamente as que tiveram como interlocutores Adelino Gomes, Miguel Esteves Cardoso, Herman José e Maria Elisa Domingues. A não perder, enquanto não sai a colecção completa em DVD!


Adenda (em 17-Fevereiro-2006):

A RTP-2 transmite, hoje às 22:30, o documentário "Agostinho da Silva: Um Pensamento Vivo", realizado por João Rodrigo Mattos, seu neto.
Aos domingos, já a partir do próximo, dia 19, estará à venda nas bancas, com o jornal "Público", uma colecção de 5 DVDs que inclui a totalidade das "Conversas Vadias" e o documentário atrás citado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Concordo em absoluto com aquilo que foi dito. Quando as "conversas vadias" tiveram o seu inicio eu teria uns 15 anos e perdi muito da sua profundidade de pensamento. Naturalmente gostava de ouvir e ver o grande mestre de novo, nem que para isso tivesse de pagar. Contudo, de uma forma ou de outra a voz e a presença do Prof não pode ser apagada. Gostaria ainda se fosse possível que me disses quais os livros que estão no círculo de leitores e na outra editora. Um abraço e parabéns pelo texto. anteropinheiro@gmail.com.