27 março 2021

Dia Mundial do Teatro: mensagem de Carlos Celdrán (2019)


© Monik Molinet/La Pistola de Monik, 2017


INSTITUTO INTERNACIONAL DO TEATRO
DIA MUNDIAL DO TEATRO – 27 DE MARÇO DE 2019
MENSAGEM INTERNACIONAL DE CARLOS CELDRÁN

Antes do meu despertar no teatro, os meus mestres já lá estavam. Tinham construído as suas casas e as suas poéticas sobre os restos das suas próprias vidas. Muitos deles não são conhecidos ou sequer lembrados: trabalharam a partir do silêncio, a partir da humildade das suas salas de ensaio e das suas salas cheias de espectadores e, lentamente, após anos de trabalho e conquistas extraordinários, foram deixando o seu sítio e desapareceram. Quando percebi que o meu ofício e o meu destino pessoal seria seguir os seus passos, percebi também que herdava deles essa tradição apaixonada e única de viver o presente sem outra expectativa que a de alcançar a transparência de um momento irrepetível. Um momento de encontro com o outro no escuro de um teatro, sem mais protecção do que a verdade de um gesto, de uma palavra reveladora.
O meu país teatral são esses momentos de encontro com os espectadores que cada noite chegam à nossa sala, vindos dos mais variados recantos da minha cidade, para nos acompanhar e partilhar umas horas, uns minutos. Com esses momentos únicos construo a minha vida, deixo de ser eu, de sofrer por mim mesmo e renasço e percebo o significado do ofício de fazer teatro: viver instantes de pura verdade efémera, onde sabemos que o que dizemos e fazemos, ali, sob a luz da cena, é verdade e reflecte o mais profundo e o mais pessoal de nós. O meu país teatral, o meu e o dos meus actores, é um país tecido por estes momentos em que deixamos para trás as máscaras, a retórica, o medo de ser quem somos, e damos as mãos no escuro.
A tradição do teatro é horizontal. Não há quem possa afirmar que o teatro está nalgum centro do mundo, nalguma cidade ou edifício privilegiado. O teatro, como eu o recebi, estende-se por uma geografia invisível que mistura as vidas de quem o faz e o ofício teatral num mesmo gesto unificador. Todos os mestres de teatro morrem com os seus momentos de lucidez e de beleza irrepetíveis, todos desaparecem do mesmo modo sem deixar outra transcendência que os ampare e os torne ilustres. Os mestres de teatro sabem-no, não vale nenhum reconhecimento perante esta certeza que é a raiz do nosso trabalho: criar momentos de verdade, de ambiguidade, de força, de liberdade na maior das precariedades. Deles não sobreviverão senão dados ou registos dos seus trabalhos em vídeos e fotos que apenas recolherão uma pálida ideia daquilo que fizeram. Mas sempre faltará nesses registos a resposta silenciosa do público que percebe num instante que o que ali se passa não pode ser traduzido nem encontrado fora, que a verdade que ali se partilha é uma experiência de vida, por segundos mais diáfana que a própria vida.
Quando percebi que o teatro é um país em si mesmo, um grande território onde cabe o mundo inteiro, nasceu em mim uma decisão que é também uma liberdade: não tens de afastar-te nem sair do lugar onde estás, não tens de correr nem deslocares-te. Aí onde existes está o público. Aí estão os companheiros que precisas a teu lado. Ali, fora da tua casa, tens toda a realidade diária, opaca e impenetrável. Trabalhas então a partir da imobilidade aparente para construir a maior das viagens, para repetir a Odisseia, a viagem dos argonautas: és um viajante imóvel que não pára de acelerar a densidade e a rigidez do teu mundo real. A tua viagem é um instante, rumo ao momento, em direcção ao encontro irrepetível perante os teus semelhantes. A tua viagem é até eles, até ao seu coração, até à sua subjectividade. Viajas por dentro deles, das suas emoções, das suas recordações que despertas e agitas. A tua viagem é vertiginosa e ninguém pode medir ou contar isso. Também ninguém o poderá reconhecer na sua justa medida, é uma viagem através do imaginário da tua gente, uma semente que germina na mais remota das terras: a consciência cívica, ética e humana dos teus espectadores. Por tudo isto, não me mexo, continuo em minha casa, junto dos meus próximos, em aparente quietude, trabalhando dia e noite, porque tenho o segredo da velocidade.

                 CARLOS CELDRÁN (trad. Tiago Fernandes / Teatro
                          do Noroeste - Centro Dramático de Viana)


Parafraseando o distinto encenador, dramaturgo e professor cubano Carlos Celdrán, o teatro é uma viagem dos autores/encenadores/actores através do imaginário da sua gente, uma semente que germina na mais remota das terras: a consciência cívica, ética e humana dos seus espectadores/ouvintes.
Devido à pandemia de COVID-19, as salas em Portugal (e em muitos outros países) viram-se na contingência de fechar portas durante meses a fio, pelo que deixou de ser possível a experiência única e irrepetível de assistir a espectáculos de teatro ao vivo. Por parte daqueles, claro está, que têm a sorte de viver em localidades ou próximo de localidades onde há companhias residentes, pois os espectáculos itinerantes, que no passado eram frequentes, praticamente deixaram de se realizar. Na verdade, uma parte muito significativa da população portuguesa só pode fruir teatro se lhe chegar pelos meios de difusão à distância – rádio, televisão, internet. Muitas companhias têm usado a internet para disponibilizar vídeos de espectáculos que levaram à cena, havendo mesmo actuações em directo, o que saudamos. A televisão, sobretudo via RTP-2 e RTP-Memória, também transmitiu, durante o último ano, algumas peças. A maior miséria tem-se verificado na rádio: das três antenas nacionais da estação pública, apenas a Antena 2 tem emitido, de vez em quando, no programa "Ecos da Ribalta" [>> RTP-Play], pela mão de João Pereira Bastos, uma peça resgatada do arquivo histórico, surgindo também, a intervalos de meses, no espaço "Teatro sem Fios" [>> RTP-Play], uma nova produçãozita de teatro. E escrevemos "produçãozita de teatro" porque aquilo que geralmente aparece em antena está longe de ser cativante para quem quer que seja, causando irreprimível rejeição aos ouvidos que se habituaram ao bom e verdadeiro teatro radiofónico que ao longo de décadas, até 2005, ano em que o saudoso Eduardo Street se aposentou, era uma marca de excelência do serviço público de radiodifusão. Umas boas centenas dessas memoráveis produções (não todas, infelizmente) foram guardadas no arquivo histórico da RDP, tendo-nos sido grato constatar que vem sendo disponibilizadas na plataforma RTP-Arquivos. O que não se consegue compreender é a não existência em antena de um espaço regular, que podia muito bem ser semanal, consagrado justamente à divulgação desse precioso acervo de teatro. Tal lacuna, sendo grave em tempos normais, por assim dizer, revela-se ainda mais clamorosa numa situação de confinamento como a que vivemos.
A RTP-Memória, embora sem a frequência desejável, tem resgatado produções televisivas de teatro. Não havendo um canal de rádio hertziano de cobertura nacional especificamente reservado ao arquivo radiofónico, compete aos três canais existentes, em especial a Antena 2, atendendo ao seu perfil marcadamente cultural, assegurar esse serviço: pela valorização do património da rádio e pela promoção cultural dos ouvintes, mormente daqueles que moram em zonas onde não existem companhias de teatro e igualmente – muito importante! – dos que, independentemente do ponto do país onde residam, nasceram sem o sentido da visão ou perderam-no mais tarde! O teatro radiofónico é a única modalidade da arte de Talma que os cegos e amblíopes podem fruir plenamente. Como se explica então que estes cidadãos, a quem a lei portuguesa reconhece direitos iguais aos dos que vêem, sejam não esquecidos e desconsiderados pela rádio para a qual também contribuem financeiramente?

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