08 março 2020

Carlos Mendes: "Calçada de Carriche" (António Gedeão)


Paula Rego, "Amor", 1995, pastel sobre papel montado em alumínio, 120 x 160 cm, Casa das Histórias Paula Rego, Cascais (Inv. P44 DEP)


Mulheres que além das lides domésticas exerciam actividades manuais remuneradas para proverem ao seu sustento e ao da família sempre existiram. Refira-se, a título de exemplo, as trabalhadoras rurais (nos trabalhos de sementeiras, mondas, ceifas, colheitas, vindimas, apanha da azeitona), as tecedeiras, as costureiras, as lavadeiras, as varinas, as carvoeiras. O fenómeno do operariado fabril feminino, porém, e exceptuando as duas conflagrações bélicas mundiais pois os maridos estavam a combater e as fábricas não podiam parar, só se incrementou após a Segunda Grande Guerra. Aconteceu sobretudo no chamado primeiro mundo – Europa, América do Norte e Japão –, e Portugal não foi excepção, porque havia que aproveitar os dinheiros do Plano Marshall, apesar de Salazar ser avesso à industrialização do país. Assim, e principalmente nos subúrbios de Lisboa, Porto e Setúbal, surgiu um novo tipo de mulher trabalhadora: a que labora nas fábricas ou em trabalhos indiferenciados do sector terciário, mas que continua a arcar com todo o serviço doméstico e as obrigações próprias de uma esposa e mãe. Dessa lufa-lufa quotidiana, rotineira, mecânica e desgastante, que não deixa tempo para o ócio indispensável ao equilíbrio emocional e à fruição cultural, trata o poema "Calçada de Carriche" saído do punho de António Gedeão, pseudónimo literário do professor de Ciências Físico-Químicas Rómulo de Carvalho, e publicado primeiramente em 1958, no livro "Teatro do Mundo", e republicado nas posteriores edições da poesia reunida que dão pelos títulos de "Poesias Completas" (Portugália Editora), "Poesia Completa" (Edições João Sá da Costa) e "Obra Completa" (Relógio d'Água), bem como no volume "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor" (Edições João Sá da Costa, 1997). Foi de uma edição das "Poesias Completas", com chancela da Portugália Editora, que José Niza retirou aquele e os demais dez poemas que achou por bem musicar para serem cantados por Carlos Mendes, Duarte Mendes, Samuel e Tonicha, com orquestração de José Calvário, e constituírem o álbum "Fala do Homem Nascido", editado em 1972.
É pois com o poema musicado "Calçada de Carriche", magnificamente interpretado por Carlos Mendes, que neste Dia Internacional da Mulher homenageamos essas mulheres sobrecarregadas de trabalho, quase escravas, que são autênticas heroínas anónimas, pois, quais robustas cariátides, suportam na cabeça a arquitrave económica familiar e, por extensão, a nacional.

E o que fez a rádio pública neste dia dedicado à mulher? Nada nos constou, analisando a programação nas páginas 'online' das Antenas 1 e 3 e andando a fazer 'zapping' entre aqueles dois canais (mau grado o incómodo e fugindo logo para Antena 2 ou para a nossa fonoteca). E não se está a pedir algo dispendioso nem que requeira muito trabalho: bastaria que a oferta musical ao longo do dia fosse ora interpretada por artistas femininas ora de homenagem à mulher, independentemente do sexo do intérprete. Nada fazer é puro desleixo e só serve para dar argumentos àqueles que contestam o financiamento público de canais de rádio que se comportam como os privados (e até pior, nalguns aspectos).



Calçada de Carriche



Poema: António Gedeão (excerto) [texto integral >> abaixo]
Música: José Niza
Arranjo: José Calvário
Intérprete: Carlos Mendes* (in LP "Fala do Homem Nascido", Orfeu, 1972, reed. Movieplay, 1998)




[instrumental]

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa...


* Arranjos e direcção de orquestra – José Calvário
Produção – José Niza
Gravação de orquestra nos Estúdios Celada, Madrid, por Pepe Fernandez, Enrique Rielo e Vinader, em Novembro de 1972
Gravação de vozes nos Estúdios Polysom, Lisboa, por Moreno Pinto



CALÇADA DE CARRICHE

(António Gedeão, in "Teatro do Mundo", Coimbra: Edição do autor, 1958; "Poesias Completas", Portugália Editora, 1964, 5.ª edição, 1975 – p. 115-120; "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997 – p. 34-37)


Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.



Capa do LP "Fala do Homem Nascido", com poemas de António Gedeão musicados por José Niza e cantados por Carlos Mendes, Duarte Mendes, Samuel e Tonicha, com orquestração de José Calvário (Orfeu, 1972).
Arranjo gráfico – Beatriz Morais Alçada

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Outro artigo de homenagem à mulher:
João Lóio: "Cicatriz de Ser Mulher"

1 comentário:

SOL da Esteva disse...

Delícia de trabalho. Bons tempos e boas recordações.
Grato, por mim, pela "mostra". Parabéns.

Abraço
SOL da Esteva vs Santos Oliveira