10 julho 2012

"A Vida dos Sons": deseja-se menos cinzenta e mais multicolor (III)

A edição do programa "A Vida dos Sons" relativa ao ano de 1970 voltou a ser parca e mísera em assuntos de cariz cultural. Foram contemplados: a dissolução dos Beatles (com honras de abertura), a Exposição Universal de Osaka (Japão) e a conquista pela pianista Maria João Pires do Prémio Beethoven, em Bruxelas. Também foi passado o excerto de uma entrevista concedida por José Mário Branco a José Manuel Nunes que era para passar no programa "Página Um", mas que nunca foi para o ar, por interdição da direcção da Rádio Renascença. Desconhecia de todo a existência desta gravação, e aproveito para deixar aqui a minha nota de reconhecimento pelo oportuno resgate.
Foi ainda feita referência (brevíssima) aos seguintes discos: "Traz Outro Amigo Também", de José Afonso; "Cantaremos", de Adriano Correia de Oliveira; "Com Que Voz", de Amália Rodrigues; e "Amália-Vinicius", de Amália Rodrigues com Vinicius de Moraes e outros amigos. O que não pode deixar de se criticar é que edições tão relevantes da História da Música Portuguesa tenham recebido uma simples e fugidia citação, ou seja, sem o mínimo desenvolvimento e sem qualquer ilustração sonora. Quer dizer: os assuntos relacionados com a política e com a guerra são tratados com toda a dignidade, ao passo que os culturais recebem uma breve nota à margem. Não posso, de forma alguma, concordar com esta atitude de considerar a actividade cultural matéria de segunda ou terceira categoria, mais própria de regimes autocráticos e obscurantistas. Será que as Sras. Ana Aranha e Iolanda Ferreira – que eu tenho como pessoas sem laivos ditatoriais, lúcidas e inteligentes – já se deram conta de que ao adoptarem tal atitude estão a fazer o jogo do inimigo e, ironicamente, a darem concretização à "profecia" de José Freire Antunes «o futuro de Portugal será amassado por filhos duradouros da cultura salazarista»?

Aqui fica a lista (não exaustiva, naturalmente) de factos ocorridos em 1970 que não foram devidamente tratados ou, pura e simplesmente, ignorados:

1. Falecimento do escritor e artista plástico José de Almada Negreiros; artista multifacetado, foi um dos fundadores do modernismo português, colaborando na revista "Orpheu" (1915), com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro; nesta fase, ficou famoso o seu "Manifesto Anti-Dantas", muitos anos mais tarde gravado pelo próprio autor [>> YouTube] e depois, em 1978, por Mário Viegas [>> YouTube]; para além da literatura, em que merecem destaque o livro de poesia "A Invenção do Dia Claro" (1921) e o romance "Nome de Guerra" (escrito em 1925 e publicado em 1938), Almada Negreiros distinguiu-se sobretudo no domínio da pintura, desenho e artes decorativas; as suas realizações plásticas mais conhecidas são os vitrais da Igreja de Nossa Senhora de Fátima (à avenida de Berna), os frescos das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, o retrato de Fernando Pessoa (sentado a uma mesa com o n.º 2 da "Orpheu") e o painel "Começar" (no átrio da sede da Fundação Calouste Gulbenkian);
2. Falecimento do escritor Tomaz de Figueiredo; contribuiu para o ressurgimento da tradição romanesca camiliana, sendo a sua escrita caracterizada por um estilo onde o castiço se funde com o lirismo e por uma técnica narrativa singularmente moderna; da sua produção, destaca-se o romance "A Toca do Lobo" (1947), distinguido com o Prémio Eça de Queiroz;
3. Falecimento do matemático e filósofo britânico Bertrand Russell; notabilizou-se pelo seu trabalho na Lógica e na Teoria do Conhecimento; entre as suas obras contam-se "Principia Mathematica" (1910-13, em colaboração com Alfred North Whitehead), "O ABC da Relatividade" (1925) e "História da Filosofia Ocidental" (1945), que lhe valeu o Prémio Nobel da Literatura em 1950;
4. Falecimento do músico norte-americano Jimi Hendrix; o seu estilo experimental e heterodoxo de tocar a guitarra eléctrica, usando efeitos especiais como o "feedback" e a distorção, revolucionou o uso do instrumento no rock; radicado em Londres, a partir de 1966, formou com baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchell o grupo Jimi Hendrix Experience, no seio do qual gravou alguns dos seus maiores 'hits', como como "Hey Joe" [>> YouTube] [no Festival de Woodstock, 1969 >> YouTube], "Purple Haze" [>> YouTube] [no Royal Albert Hall >> YouTube] e "The Wind Cries, Mary" [>> YouTube] [no Festival de Monterrey, 1967 >> YouTube]; o tema "Voodoo Chile" [>> YouTube], inserto no álbum "Electric Ladyland" (1968), é considerado um dos espécimes mais esplendorosos da sua produção; morreu no auge da fama, aparentemente sufocado por vómitos resultantes de uma dose exagerada de soporíferos;
5. Falecimento da cantora norte-americana Janis Joplin; de espírito rebelde e insubmisso, era dona de uma voz extraordinariamente expressiva e enérgica com que reinventou os blues para a nova linguagem rock; o abuso do álcool e das drogas causou-lhe a morte aos 27 anos de idade; editado postumamente, o álbum "Pearl" (1971) alcançaria retumbante sucesso, especialmente pelos temas "Cry Baby" [>> YouTube] [ao vivo em Toronto >> YouTube], "Me & Bobby McGee" [>> YouTube] e "Mercedes Benz" [>> YouTube];
6. Atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao escritor russo Aleksandr Soljenityne; duas vezes condecorado por feitos militares na II Guerra Mundial, a crítica ao regime de Estaline fê-lo cair em desgraça; condenado a oito anos de trabalhos forçados, é deportado para a Sibéria, em 1945, vindo a ser reabilitado em 1957, já sob o consulado de Nikita Krushchev; essa dura e sofrida experiência estará na base dos livros "Um Dia na Vida de Ivan Desinovitch" (1962), "O Primeiro Círculo" (1968) e "O Pavilhão dos Cancerosos" (1968) que lhe valem o reconhecimento da Academia de Estocolmo; na sequência publicação do primeiro volume da obra "O Arquipélago de Gulag" no Ocidente (1973-1974), é-lhe retirada a cidadania russa e expulso da União Soviética; radica-se nos Estados Unidos da América, acabando por regressar à Rússia duas décadas mais tarde;
7. Estreia do filme "L'Enfant Sauvage" ("O Menino Selvagem"), de François Truffaut; baseado no caso verídico de uma criança que tendo sido abandonada numa floresta aí viveu, fora do contacto humano, até aos doze anos de idade, o filme tem o grande mérito de mostrar o quão indelevelmente marcante é para o ser humano o meio em que decorrem os primeiros anos de vida [>> YouTube];
8. Edição do álbum "Amália-Vinicius", de Amália Rodrigues com Vinicius de Moraes e outros amigos; gravado na casa de Amália, à rua de São Bento, na noite de 19 de Dezembro de 1968, no disco participam, além de Vinicius de Morais e dos músicos José Fontes Rocha (guitarra portuguesa) e Pedro Leal (viola), os poetas Ary dos Santos, Natália Correia e David Mourão-Ferreira; entre fados e poemas recitados, são dezanove os espécimes que integram o álbum (originalmente um duplo LP), cujo alinhamento abre, muito sugestivamente, com o "Retrato de Amália", de e por Ary dos Santos [>> YouTube];
9. Edição do álbum "Com Que Voz", de Amália Rodrigues; integralmente composto por composições de Alain Oulman para poemas de Cecília Meireles, David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre, Luís de Camões, António de Sousa, Alexandre O'Neill, Pedro Homem de Mello e Ary dos Santos, este disco é considerado por muitos o ponto culminante de toda a discografia de Amália; com acompanhamento de José Fontes Rocha (guitarra portuguesa) e Pedro Leal (viola), são doze os temas do alinhamento: "Naufrágio" [>> YouTube], "Maria Lisboa" [>> YouTube], "Trova do Vento que Passa" [>> YouTube], "Com que Voz" [>> YouTube], "Cravos de Papel" [>> YouTube] [na TV Alemã, 1972 >> YouTube], "As Mãos que Trago" [>> YouTube], "Gaivota" [>> YouTube], "Havemos de Ir a Viana" [>> YouTube], "Cuidei que Tinha Morrido" [>> YouTube], "Formiga Bossa Nossa" [>> YouTube], "Meu Limão de Amargura" [>> YouTube] e "Madrugada de Alfama" [>> YouTube];
10. Edição do álbum "Cantaremos", de Adriano Correia de Oliveira; é o primeiro disco de Adriano que conta com a colaboração de José Niza, que assina a música de três temas, um sobre poema da galega Rosalía de Castro ("Cantar de Emigração") [>> YouTube] [>> YouTube] e dois sobre poemas de António Gedeão ("Fala do Homem Nascido" [>> YouTube] e "Lágrima de Preta" [>> YouTube]); completam o alinhamento duas recriações do cancioneiro açoriano, com arranjos de Carlos Alberto Moniz ("O Sol Préguntou à Lua" [>> YouTube] e "Sapateia" [>> YouTube]), três canções sobre poemas de Manuel Alegre ("Saudade, Pedra e Espada" [>> YouTube], "Canção Para o Meu Amor Não se Perder no Mercado da Concorrência" [>> YouTube] e a sublime "Canção com Lágrimas" [>> YouTube]), e ainda "Cantar Para Um Pastor" (poema de Matilde Rosa Araújo) [>> YouTube], "Como Hei-de Amar Serenamente" (poema de Fernando Assis Pacheco) [>> YouTube] e "A Noite dos Poetas" (poema de António Barahona da Fonseca) [>> YouTube]; a voz cristalina e melodiosa de Adriano Correia de Oliveira cantando alguns dos mais belos espécimes da poesia portuguesa e o magistral acompanhamento da viola de Rui Pato fazem de "Cantaremos" um dos mais preciosos tesouros do nosso património discográfico;
11. Edição do álbum "Traz Outro Amigo Também", de José Afonso; gravado em Londres, nos Estúdios Pye, com Carlos Correia (Bóris), na viola, em substituição de Rui Pato (que estava impedido pela PIDE de sair do país), e Filipe Sousa Colaço, na segunda viola e pandeireta, o disco é, nas palavras de Viriato Teles, «um imenso poema de fraternidade a que não falta a raiva de quem se sabe cercado; uma raiva que tem a sua expressão mais evidente nas interpretações de "Os Eunucos" (cuidadosamente subintitulado "No Reino da Etiópia") [>> YouTube] e do soberbo e angustiante poema de Jorge de Sena, "Epígrafe para a Arte de Furtar"» [>> YouTube]; este é o registo de José Afonso em que surgem, pela primeira vez e de forma explícita, as referências a África, mais concretamente a Moçambique (onde leccionou durante três anos), em "Avenida de Angola" [>> YouTube] e "Carta a Miguel Djéje" [>> YouTube]; além do tema-título, "Traz Outro Amigo Também" [>> YouTube] [videoclip >> YouTube], e das belas recriações do cancioneiro tradicional "Maria Faia" [>> YouTube] e "Moda do Entrudo" [>> YouTube], merecem ainda destaque: "Canto Moço" [>> YouTube], "Canção do Desterro (Emigrantes)" [>> YouTube], "Verdes São os Campos" (a terceira visitação do cantor à lírica camoniana) [>> YouTube] e a belíssima "Cantiga do Monte" [>> YouTube].

Todos (ou quase todos) estes itens podiam ser devidamente ilustrados, ora com registos do arquivo da RDP (entrevistas, adaptações de peças de teatro e de obras romanescas, recitações de poemas, etc.) ora, no caso de repertório musical, com gravações discográficas.
Não cabia tudo em 50 minutos? Problema nada difícil de resolver: em vez de uma única edição (lacunar, espartilhada e cinzenta), façam duas – mais completas, desafogadas e variegadas.
Renova-se o pedido: deseja-se que "A Vida dos Sons" seja menos cinzenta e mais multicolor.

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