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"A Vida dos Sons": deseja-se menos cinzenta e mais multicolor
Graças à
gravação pré-programada, posso dar-me ao luxo de ouvir os programas de rádio e
televisão do meu interesse nos horários que mais me convêm. As minhas manhãs se
sábado são por regra consagradas à audição de rádio, começando, cerca das 09:00,
com o imperdível "Lugar ao Sul",
seguindo-se "A Vida dos Sons", magazine histórico realizado por Ana Aranha e Iolanda
Ferreira com base no arquivo sonoro da RDP (escrevo RDP porque faço questão de
não deixar cair esta prestigiada marca no âmbito do casamento forçado e
desigual com a RTP). Tenho acompanhado "A Vida dos Sons" desde o
início (se bem me lembro, a primeira edição foi consagrada aos alvores da gravação sonora com a invenção do fonógrafo por Thomas Edison, em 1877) e
com muito interesse e proveito, devo acrescentar, em reconhecimento do trabalho
realizado pelas autoras. No entanto, a edição de sábado passado (respeitante a
1968) e as seis ou sete precedentes tiveram o condão de me deixar com a
sensação de alguma monotonia e enfado. E porquê? Porque os acontecimentos de
natureza política e militar passaram a preencher, quase em exclusivo, cada
edição, ficando a componente cultural reduzida a praticamente nada. Não
acredito que tal esteja a acontecer devido a uma hipotética míngua de
actividade cultural na década de 60. Em todos os anos desse decénio houve
certamente muitos eventos culturais dignos de referência: lançamento de livros
e discos, estreias de filmes e peças de teatro, exposições, actuação em
Portugal de nomes míticos da música (erudita e popular), falecimento de figuras
importantes das artes, letras e ciências, etc.
A menos que
tenham sido entretanto destruídos, existem no arquivo da RDP muitos registos de
peças de teatro radiofónico, de obras de ficção adaptadas para rádio (que eram
transmitidas em episódios) e de poesia, sem esquecer as centenas de entrevistas
realizadas por Igrejas
Caeiro e outros. Seria de todo o interesse que esses registos fossem
resgatados, em tributo a tantos homens e mulheres que marcaram o seu tempo e
que, em muitos casos, deixaram obra relevante para a posteridade. E nem sequer se
pede que as gravações sejam exactamente coetâneas ao evento a assinalar. Um
exemplo: em 1968 (apenas para citar o ano respeitante à edição de sábado
passado), saiu o romance "O Delfim", de José Cardoso Pires. Seria perfeitamente
lógico que se resgatasse o excerto de uma entrevista (ainda que gravada muito mais tarde) em que o escritor tivesse
falado do livro e, em complemento, caso
exista, uma passagem da adaptação radiofónica da obra, mesmo que tendo sido feita
nos anos 80 ou 90. E assim ficava devidamente assinalada a edição de um dos mais
notáveis frescos literários do Portugal marialva que esteava o salazarismo.
Outro exemplo, também relativo a 1968: a edição do belíssimo álbum
"Cantares do Andarilho", de José Afonso. Para a assinalar, bastaria
transmitir o excerto de uma entrevista feita ao cantautor em que ele se tivesse
referido ao disco, seguida de uma das respectivas canções (talvez "Vejam
Bem" [>> YouTube], visto ter-se tornado uma espécie de hino de resistência à ditadura).
As autoras
do programa poderão alegar que nos 50 minutos que têm à sua disposição não dá
para meter muito mais do que a vertente política e militar. Nesse caso, que se
faça duas edições para cada ano. A exemplo, aliás, do que chegou a ser feito –
e bem – no ano de 1961 e também em determinados anos das décadas de 30, 40 e
50. É que havendo um fabuloso acervo de fonogramas de cariz cultural no arquivo
da RDP, penso que constitui uma falha grave eles não serem contemplados num
programa que visa – presumivelmente – dar uma panorâmica abrangente do que
aconteceu no país e no mundo desde que há registo áudio e que, por acaso, se
chama "A Vida dos Sons". Afinal de contas, tais sons também têm vida:
bem mais, aliás, do que boa parte dos discursos e declarações de políticos e
chefes militares... Entre um inócuo discurso de Américo Thomaz ou um qualquer
apontamento de reportagem laudatório de Oliveira Salazar ou apologético da
Guerra Colonial e uma peça de Bernardo Santareno, uma adaptação de um conto de
José Rodrigues Miguéis, ou um poema dito por João Villaret, Mário Viegas ou
Carmen Dolores, eu não tenho a mais pequena dúvida acerca de quais mais
satisfação e enriquecimento espiritual me proporcionam.
Em suma:
deseja-se que "A Vida dos Sons" seja menos cinzenta e mais multicolor.
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