20 julho 2012

"A Vida dos Sons": deseja-se menos cinzenta e mais multicolor (IV)

A edição do programa "A Vida dos Sons" relativa ao ano de 1971 foi menos pobre – há que reconhecê-lo – no que à vertente cultural diz respeito.
Tivemos:

1. Transmissão de um excerto de "Monangambé", poema do angolano António Jacinto cantado pelo compatriota Rui Mingas [>>
YouTube]; faltou a identificação da canção pois os ouvintes, designadamente os mais jovens, não são obrigados a conhecer músicas e artistas que hoje é praticamente impossível de ouvir na rádio;
2. Transmissão, a propósito da referência ao julgamento de Charles Manson, líder de uma seita de delinquentes que, em Agosto de 1969, assassinou a actriz Sharon Tate (mulher do realizador Roman Polanski) e amigos, de um excerto do tema "Helter Skelter", dos Beatles [>>
YouTube], que faz parte do duplo LP homónimo editado em 1968 e comummente conhecido por "White Album" ("Álbum Branco") [completo >> YouTube];
3. Referência aos concertos de ajuda ao Bangladesh, organizados por iniciativa do ex-beatle George Harrison, em Nova Iorque (Madison Square Garden) e em Londres (The Oval Cricket Ground), tendo sido mencionados alguns dos artistas que neles participaram: George Harrison, Ravi Shakar, Ringo Starr, Billy Preston e Bob Dylan (em Nova Iorque); The Who, Lindisfarne, The Faces e outros (em Londres); transmissão do tema "Bangladesh", de George Harrison [>>
YouTube]; não teria sido também nada despropositada, sendo o país alvo da ajuda vizinho da Índia, a passagem da belíssima música "Bangla Dhun" que Ravi Shankar tocou no Madison Square Garden [>> YouTube];
4. Transmissão de um excerto da canção "Imagine", de John Lennon, que como muito bem foi referido se transformou numa espécie de hino à utopia [>>
YouTube] [>> YouTube] [>> YouTube];
5. Referência à 1.ª edição do Festival de Vilar de Mouros, realizado por iniciativa de António Augusto Barge (faltou a justa homenagem a este homem) nas imediações daquela aldeia do concelho de Caminha, de 31 de Julho a 15 de Agosto, e citação de alguns dos nomes que aí actuaram: Elton John, Manfred Man, Amália Rodrigues, Duo Ouro Negro, Celos, Banda da Guarda Nacional Republicana, Beatnicks, Coral Polifónico de Viana do Castelo, Psico, Jorge Palma, Rão Kyao, companhia de bailado Verde Gaio, Quarteto 1111; para ilustrar o evento foi passado, sem identificação, um excerto do tema "Ode to the Beatles", do Quarteto 1111 [>>
YouTube];
6. Transmissão de um excerto de uma peça de teatro de revista não identificada, com o actor José Viana e outros;
7. Referência à atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao poeta chileno Pablo Neruda; transmissão de um breve excerto de um depoimento que o próprio Pablo Neruda deu a propósito da distinção; ficou a faltar a desejável passagem de um dos poemas do autor de "Canto Geral", por exemplo, a (bem actual, por sinal) "Ode ao Pão" recitada por Mário Viegas [>>
YouTube];
8. Menção de algumas obras de autores portugueses editadas em 1971 e proibidas pela PIDE: "Nítido Nulo", de Vergílio Ferreira; "Obscuro Domínio", de Eugénio de Andrade; "Memória", de Álvaro Guerra; "O Irreal Quotidiano", de José Gomes Ferreira; "Entre Duas Memórias", de Carlos de Oliveira; "Minha Senhora de Mim", de Maria Teresa Horta; "Um Barco para Ítaca", de Manuel Alegre; "O Cancioneiro da Esperança", de Maria Teresa Horta e José Carlos Ary dos Santos; e "O Dilema da Política Portuguesa", de Mário Sottomayor Cardia; ficou a faltar a desejável ilustração sonora de duas ou três destas obras, o que no caso de livros de poesia não seria nada difícil de fazer; por exemplo, de "Minha Senhora de Mim" bastaria transmitir um dos quatro poemas musicados por Nuno Filipe e cantados por Teresa Paula Brito, que integram o EP homónimo, editado nesse mesmo ano de 1971 e mais recentemente (2000) incluídos numa compilação da cantora editada pela Movieplay: "Existem Pedras" [>>
YouTube], "Poema sobre a Recusa" [>> YouTube]; "Meu Aceso Lume" - "Meu Amor" [>> YouTube]; não havendo vontade ou interesse em passar um destes espécimes cantados, julgo que não seria nada complicado de encontrar no arquivo da RDP poemas publicados em 1971 (de Maria Teresa Horta ou de qualquer outro autor) ditos por Paulo Rato, António Cardoso Pinto ou outros;
9. Referência ao início da publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian da revista Colóquio Artes, sob a direcção de José Augusto França; teria sido oportuna a inclusão de uma entrevista, caso exista, do insigne historiador e crítico de arte falando do assunto;
10. Transmissão de um excerto de uma entrevista de Erskine Caldwell concedida a Maria Leonor, aquando da visita (a terceira) do escritor norte-americano a Portugal, antecedida de uma breve nota bibliográfica; ficou a faltar um excerto da adaptação radiofónica, caso exista, de uma das obras do autor de "A Estrada do Tabaco" ("Tobacco Road", 1932), romance que foi adaptado ao cinema por John Ford, em 1941 [momentos musicais >>
YouTube], "Nós, os Vivos" ("We Are the Living", 1933), "A Jeira de Deus" ("God's Little Acre", 1933), "O Pregador" ("Journeyman", 1935), "Um Rapaz da Geórgia" ("Georgia Boy", 1943) e "A Terra Trágica" ("Tragic Ground", 1944);
11. Transmissão de um excerto de uma entrevista de Rosa Ramalho concedida a Maria Leonor, complementada com uma oportuna e louvável resenha biográfica da grande barrista de Barcelos, falecida em 1977, aos 89 anos de idade; nunca tinha ouvido a voz de Rosa Ramalho [cuja arte tem sido prosseguida pela neta Júlia Ramalho >>
YouTube] e, por isso, não posso deixar de manifestar o meu agrado pelo resgate da gravação; aproveito para dizer que a rádio pública devia ser mais ambiciosa e criar um espaço destinado à transmissão integral de todas as entrevistas concedidas por eminentes figuras da Cultura (portuguesas e estrangeiras) que estão a apodrecer no arquivo histórico, sem que ninguém as possa ouvir e aprender com elas; bem sei que esta é uma questão que ultrapassa as competências das Sras. Ana Aranha e Iolanda Ferreira, pelo que a dirijo às estâncias superiores da RDP.

Ficaram de fora outros acontecimentos de cariz cultural dignos de nota:


1. Falecimento do jornalista e escritor Augusto de Castro; formado em Direito, exerceu funções diplomáticas em Londres, Paris, Bruxelas e Roma; foi, a partir de 1919 e durante largos períodos, director do "Diário de Notícias"; a sua produção literária inclui, entre outras obras, as peças de teatro "Caminho Perdido" (1906), "Chá das Cinco" (1909), "Vertigem" (1910), "A Culpa" (1918) e "Amor" (1934), o livro de contos "O Amor e o Tempo" (1929) e os ensaios "A Crise Internacional e a Política Externa Portuguesa" (1949) e "Garrett e o Teatro Português" (1954); foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, em 1945, ocupando a cadeira n.º 5 deixada vaga pelo poeta Eugénio de Castro (1869-1944);
2. Falecimento do actor António Silva; de origem humilde, começou a trabalhar com marçano (numa retrosaria e numa drogaria) ao mesmo tempo que fazia o Curso Geral do Comércio; atraído pelo teatro, integrou vários grupos amadores até se estrear como profissional (1910) na Companhia Alves da Silva desempenhando um pequeno papel na peça "O Novo Cristo", de Leon Tolstoi, levada à cena no Teatro da Rua dos Condes; com a Companhia António de Sousa fez uma prolongada digressão ao Brasil onde participou em três filmes, hoje perdidos – "Ubirajara" (1919), "Convém Martelar" (1920) e "Coração de Gaúcho" (1920); de regresso a Portugal é contratado pela Companhia Satanella-Amarante e transforma-se numa das mais populares vedetas do teatro ligeiro, fazendo rir multidões no Parque Mayer; aí o vai buscar Cottinelli Telmo para fazer de alfaiate Caetano (pai da costureirinha Beatriz Costa) em "A Canção de Lisboa" (1933) [>> YouTube], filme que estabelece as bases da chamada "comédia à portuguesa"; o seu talento para encarnar, com inimitável sentido histriónico, figuras arquetípicas da pequena burguesia lisboeta está bem patente em vários filmes ainda hoje muito populares, como: "O Pátio das Cantigas" (1942) [>> YouTube], "O Costa do Castelo" (1943) [>> YouTube], "A Menina da Rádio" (1944) [>> YouTube], "A Vizinha do Lado" (1945) [>> YouTube], "O Leão da Estrela" (1947) [>> YouTube], "Fado, História d'uma Cantadeira" (1947) [>> YouTube] e "O Grande Elias" (1950) [>> YouTube];
3. Falecimento do actor francês Fernandel; de seu verdadeiro nome Fernand Joseph Désiré Contandin, foi um dos comediantes mais famosos do século XX; a notoriedade alcançada com o filme "Le Blanc et le Noir (1931), de Robert Florey, catapulta-o para uma longa carreira de sucesso só interrompida com a morte, tendo participado em mais de cem filmes, entre os quais "Angèle" (1934), de Marcel Pagnol, "Carnet de Bal" (1937) e "Ma Vache et Moi" (1962), ambos de Julien Duvivier; a sua fama internacional deveu-se sobretudo à encarnação cinematográfica de Don Camillo [>> YouTube], personagem criada pelo escritor italiano Giovanni Guareschi (1908-1968); foi dos actores que melhor soube conjugar o cómico com o dramático [entrevista >> YouTube];
4. Falecimento do compositor russo Igor Stravinski; discípulo de Rimski-Korsakov, foi um dos compositores mais inovadores e revolucionários das primeiras décadas do século XX, com as suites de bailado, compostas, por encomenda do seu compatriota Sergei Diaghilev, para os Ballets Russes – "L'Oiseau de Feu" ("O Pássaro de Fogo", 1910) [>>
YouTube] [suite final >> YouTube] [ao vivo em Londres, 1965, New Philharmonia Orchestra, dir. Igor Stravinski >> YouTube] [coreografia de Maurice Béjart, por Michaël Denard >> YouTube], "Petrushka" (1911) [Bolshoi Ballet Company / Bolshoi State Academic Theatre Orchestra, dir. Andrey Chistiakov – cena I >> YouTube, cena II >> YouTube, cena III >> YouTube, cena IV >> YouTube], e sobretudo "Le Sacre du Printemps" ("A Sagração da Primavera", 1913) [Orchestre de Paris, dir. Pierre Boulez, 2002 >> YouTube] [coreografia de Maurice Béjart >> YouTube] que causou grande tumulto na assistência aquando da estreia, a 29 de Maio de 1913, no Théâtre des Champs-Élysées, sob a batuta do prestigiado maestro Pierre Monteux; a sua vasta e prolífica produção posterior inclui os bailados "Chant du Rossignol" ("O Canto do Rouxinol", 1917) [Berlin Radio Symphony Orchestra, dir. Lorin Maazel >> YouTube], "L'Histoire du Soldat" ("A História do Soldado", 1918) [The Prince William Symphony Players, dir. David Montgomery >> YouTube], "Pulcinella" ("Pulchinela", 1920) [Columbia Symphony Orchestra, dir. Igor Stravinski >> YouTube], "Les Noces" ("As Bodas", 1923) [Mariinsky Ballet, coreografia de Bronislava Nijinska, dir. Valery Gergiev >> YouTube], "Apollon Musagète" ("Apolo Musageta", 1928) [Opéra de Paris, coreografia de George Balanchine >> YouTube], as óperas "Oedipus Rex" ("Édipo Rei", 1927) [encenação de Julie Taymor, 1993 – parte 1 >> YouTube, parte 2 >> YouTube, parte 3 >> YouTube, parte 4 >> YouTube] e "The Rake's Progress" ("A Carreira do Libertino", 1951) [Prelúdio, dir. Sylvain Cambreling, encenação de Peter Mussbach >> YouTube] e a "Symphonie de Psaumes" ("Sinfonia dos Salmos", para coro e orquestra, 1930) [London Symphony Orchestra & English Bach Festival Chorus, dir. Leonard Bernstein >> YouTube], estreada em Bruxelas sob a direcção de Ernest Ansermet; faleceu em Nova Iorque, aos 88 anos de idade, e foi sepultado, em cumprimento do desejo que deixara expresso, no cemitério da ilha de San Michele, em Veneza, onde jaz próximo do amigo Diaghilev [>> YouTube];
5. Falecimento do músico norte-americano Louis Armstrong; nascido com o século no seio de uma família muito humilde de Nova Orleães, é geralmente considerado um dos maiores vultos (se não mesmo o maior) da História do Jazz; começou a notabilizar-se nos anos 20, como tocador de corneta, passando depois para a trompete, de que se tornou um exímio executante; como cantor, é-lhe atribuída a invenção do "scat singing" (sílabas improvisadas em vez de palavras verdadeiras); da sua vasta discografia merece destaque o histórico álbum que gravou com Ella Fitzgerald para a etiqueta Verve, "Ella & Louis" (1956), um extraordinário alforbe de pérolas do jazz cantado a dois, abrilhantadas com os solos da sua maravilhosa trompete: "Can't We Be Friends?" [>>
YouTube], "Isn't This a Lovely Day?" [>> YouTube], "Moonlight in Vermont" [>> YouTube], "They Can't Take That Away from Me" [>> YouTube], "Under a Blanket of Blue" [>> YouTube], "Tenderly" [>> YouTube], "A Foggy Day" [>> YouTube], "Stars Fell on Alabama [>> YouTube], "Cheek to Cheek" [>> YouTube], "The Nearness of You" [>> YouTube] e "April in Paris" [>> YouTube]; a canção "What a Wonderful World" [>> YouTube] [>> YouTube], que editou em 1968 no álbum homónimo catapultou-o muito para além das fronteiras do jazz e granjeou-lhe fama mundial; participou em dezenas filmes, entre os quais "Jam Session" (1944), "Alta Sociedade" ("High Society", 1956) [>> YouTube] e "Hello, Dolly" (1969) [>> YouTube]; contou a fase inicial da sua vida na autobiografia "Satchmo, My Life in New Orleans" (1954);
6. Falecimento do cantor norte-americano Jim Morrison; vocalista e figura central do lendário grupo californiano The Doors – com Ray Manzarek (teclados), Robbie Krugger (guitarra) e John Densmore (bateria) –, James Douglas Morrison era um cultor de poesia (admirava William Blake e Arthur Rimbaud) e levou-a para o rock (não por acaso o nome do grupo foi inspirado no título de um livro de Aldous Huxley, "The Doors of Perception", por sua vez extraído de um verso de William Blake, "If the doors of perception were cleansed"); o consumo excessivo do álcool e de drogas duras acabaria por ceifar-lhe a vida, aos 27 anos de idade – a 3 de Julho de 1971 é encontrado inanimado na banheira do apartamento onde se encontrava hospedado em Paris; foi sepultado no cemitério Père Lachaise, sendo a sua campa ainda hoje alvo de romagens [>> YouTube]; do repertório que integra os sete álbuns que gravou no seio dos Doors – "The Doors" (1967), "Strange Days" (1967), "Waiting For The Sun" (1968), "The Soft Parade" (1969), "Morrison Hotel" (1970), "Absolutely Live" (1970) e "L.A. Woman" (1971) – são de referência obrigatória os temas "Light My Fire" [>> YouTube] [ao vivo no Hollywood Bowl, 1968 >> YouTube], "Alabama Song" [>> YouTube] [ao vivo no Hollywood Bowl, 1968 >> YouTube], "Roadhouse Blues" [>>
YouTube] [ao vivo no Hollywood Bowl, 1970 >> YouTube] [ao vivo em Nova Iorque, 1970 >> YouTube], "Riders on the Storm" [>> YouTube] [>> YouTube] e o profético "The End" [>> YouTube] [ao vivo no Hollywood Bowl, 1968 >> YouTube], que Francis Ford Coppola viria a incluir na banda sonora do filme "Apocalipse Now" (1979) [>> YouTube] [Redux End Theme >> YouTube]; vários dos poemas recitados que deixou gravados numa maquete foram publicados em 1978 num álbum intitulado "An American Prayer" [poema "A Feast of Friends" >> YouTube] [álbum completo >> YouTube]; o actor Val Kilmer personificou-o no cinema, sob a direcção de Oliver Stone, em "The Doors – O Mito de Uma Geração" (1991) [>> YouTube] ["The End" >> YouTube];
7. Falecimento da estilista francesa Coco Chanel; começou a ser conhecida durante a I Guerra Mundial, com os fatos de trabalho que desenhou para as mulheres que nas fábricas substituíam os homens ausentes em combate; revolucionou a moda feminina nos anos 20 e 30, com o "vestidinho preto", saias e casacos de recorte clássico; «estilo simples, mas com classe» era o seu lema; também se dedicou aos perfumes, tendo ficado famoso o "Chanel N.º 5", criado a seu pedido por Ernest Beaux, em 1921, e que era o preferido de Marilyn Monroe; a relação amorosa que manteve com o compositor Igor Stravinski esteve na base do filme de Jan Kounen, "Coco Chanel & Igor Stravinsky" (2009) [>> YouTube]; 
8. Estreia do filme "Morte em Veneza", de Luchino Visconti; adaptado do romance homónimo de Thomas Mann, publicado em 1912, o filme tem como cenário a Veneza dos inícios do século XX, onde um solitário compositor de meia-idade (Dirk Bogarde) avista um adolescente, arquétipo da beleza andrógina, e fica intensamente atraído por ele; obra de extraordinário apuro plástico, "Morte em Veneza" [>> YouTube] começa e termina com as notas nostálgicas do "Adagietto", da 5.ª Sinfonia, de Gustav Mahler [>> YouTube] [versão de Bruno Walter, 1938 >> YouTube], muito tendo contribuído para a divulgação desta magistral peça musical junto do grande público;
9. Estreia do filme "Laranja Mecânica" ("A Clockwork Orange"), de Stanley Kubrick; baseado no romance homónimo de Anthony Burgess (1962), e protagonizado por Malcolm McDowell, não é uma obra apologética da violência, antes um magistral exercício de antevisão do que poderá acontecer nas sociedades em que os pais e educadores abdiquem do seu dever de transmitir aos seus educandos os valores da civilidade e do respeito pelo outro; esta notável obra cinematográfica tem ainda o mérito, por um lado, de mostrar que os actos de extrema violência (assassínios e violações), longe de edificarem, conduzem à sua marginalização/destruição de quem os pratica, e, por outro lado, de desmascarar o poder político e o sistema de saúde de países supostamente democráticos (a acção passa-se na insuspeita Inglaterra) na violação dos mais elementares direitos humanos com o pretexto do "tratamento" de perigosos delinquentes; refira-se, a título de curiosidade, que "Laranja Mecânica" [>> YouTube] foi o primeiro filme produzido em sistema Dolby; na banda sonora pontifica a canção "Singin' in the Rain", originalmente cantada e dançada por Gene Kelly no filme "Serenata à Chuva" (1952) [>> YouTube] e, em lugar de grande destaque, o maravilhoso e arrebatador scherzo molto vivace (segundo andamento) da 9.ª Sinfonia, de Beethoven [>> YouTube] [Hungarian Philharmonic Orchestra, dir. Janos Ferencsik >> YouTube];
10. Estreia do filme "Vilarinho das Furnas", de António Campos; notável documentário sobre a aldeia comunitária de Vilarinho das Furnas, situada na margem direita do rio Homem (afluente do Cávado), no concelho de Terras de Bouro, antes de ser abandonada pelos cerca de 250 habitantes (57 famílias) para desaparecer sob as águas de uma barragem hidroeléctrica; é o Portugal ancestral que soçobra ante o progresso (ou uma certa ideia de progresso) [>> YouTube]
11. Estreia em cena da ópera-rock "Jesus Christ Superstar", de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber; foi o sucesso alcançado com o duplo LP "Jesus Christ Superstar" (1970) que deu a Andrew Lloyd Webber a ideia transpor a obra para o palco; estreada a 12 de Outubro de 1971, no Mark Hellinger Theatre, de Nova Iorque, "Jesus Christ Superstar" tornou-se um dos musicais mais vistos da Broadway e – como não podia deixar de ser – veio a ter também uma versão cinematográfica realizada, em 1973, por Norman Jewison [>> YouTube]; a versão portuguesa do musical seria levada à cena por Filipe La Féria, pela primeira vez a 16 de Junho de 2007, no Teatro Rivoli (Porto), com o fadista Gonçalo Salgueiro no papel de Cristo [>>
YouTube]; à parte alguns aspectos algo datados, "Jesus Christ Superstar" vale sobretudo pela ousadia de pôr em confronto as ideias inconciliáveis de dois homens – Jesus Cristo e Judas Iscariotes –, contribuindo assim para a necessária reflexão, de crentes e não crentes, acerca dos verdadeiros motivos (não necessariamente concordantes com os Evangelhos) que terão levado Pôncio Pilatos, homem ponderado e astuto, a mandar executar, como um vulgar criminoso, um homem pacífico e aparentemente inofensivo para o domínio romano na Judeia;
12. Edição do álbum "Cantigas do Maio", de José Afonso; «O mais histórico e o mais referencial de todos os discos da música popular portuguesa. Gravado no Strawberry Studio, de Michel Magne, em Herouville (França), entre 11 de Outubro e 4 de Novembro de 1971, com arranjos e direcção musical a cargo de José Mário Branco, este disco assinala a primeira viragem de fundo na revolução musical iniciada por Zeca uma dúzia de anos antes. O tratamento instrumental de cada tema, a beleza poética e a subversão temática atingem aqui um nível nunca anteriormente possível. E, uma vez mais, Zeca recusa a facilidade, incluindo canções onde o surreal é já assumido na sua totalidade (para desespero da direita e de uma certa esquerda, que insistia na necessidade de uma "definição clara" de Zeca, à luz do "socialismo científico") como "Ronda das Mafarricas" [>> YouTube] ou "Senhor Arcanjo" [>> YouTube], a par de belíssimos temas de inspiração popular, como "Maio, Maduro Maio" [>> YouTube], "Milho Verde" [>> YouTube], "A Mulher da Erva" [>> YouTube] ou "Cantigas do Maio" [>> YouTube] e de óbvios cantos de resistência, como o "Cantar Alentejano" [>> YouTube], dedicado a Catarina Eufémia, camponesa assassinada pela GNR, ou "Coro da Primavera" [>>
YouTube]. Gravado num tempo recorde e contando apenas com as participações de meia-dúzia de músicos (Carlos Correia, Michel Delaporte, Christian Padovan, Tony Branis, Jacques Granier e Francisco Fanhais, além de, naturalmente, José Mário Branco e Zeca), este disco seria considerado, em 1978, como o melhor de sempre da música popular portuguesa, numa votação organizada pelo "Sete" que contou com a participação de 25 críticos e jornalistas. Um tema, no entanto, bastaria para fazer de "Cantigas do Maio" um marco da história portuguesa: "Grândola, Vila Morena" [>> YouTube] [>> YouTube] [>> YouTube], escolhida em 1974 como senha para o arranque do Movimento dos Capitães, que em 25 de Abril derrubou a ditadura fascista.» (Viriato Teles);
13. Edição do álbum "Gente de Aqui e de Agora", de Adriano Correia de Oliveira; é outro disco fundamental para a emancipação da música popular portuguesa relativamente à balada com simples acompanhamento à viola, pela maior sofisticação dos arranjos com o recurso a múltiplos instrumentos e, por vezes, a orquestra; os arranjos foram repartidos por Rui Ressureição, Thilo Krasmann, José Calvário e José Niza, que assina a totalidade das composições para os dez poemas do alinhamento: dois do galego Manuel Curros Enríquez ("Emigração" [>>
YouTube] e "Para Rosalía"), dois de Manuel Alegre ("E Alegre se Fez Triste" [>> YouTube] e "Canção Tão Simples" [>> YouTube]), um do Conde de Monsaraz ("O Senhor Morgado" [>> YouTube]), um de Fernando Miguel Bernardes ("Cana Verde" [>> YouTube]), um de Raul de Carvalho ("A Vila de Alvito"), um de Luís de Andrade Pignatelli ("Cantiga de Amigo" [>> YouTube]), um de António Ferreira Guedes ("Roseira Brava" [>> YouTube]) e um de António Aleixo ("História do Quadrilheiro Manuel Domingos Louzeiro" [>> YouTube]);
14. Edição do álbum "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco; é o primeiro disco de grande fôlego de José Mário Branco (antes editara apenas dois EP) e um trabalho de capital importância para a afirmação da música popular portuguesa, sedimentando o caminho aberto por José Afonso e Adriano Correia de Oliveira; gravado no Strawberry Studio, em Herouville (arredores de Paris), e contando com a colaboração de músicos sobretudo estrangeiros, José Mário Branco é o autor dos arranjos, bem como de todas as músicas, com excepção da que dá título ao disco (que é de Jean Sommer); quanto à poesia, temos a de Sérgio Godinho ("Cantiga para Pedir Dois Tostões" [>> YouTube], "Cantiga do Fogo e da Guerra" [>> YouTube], "O Charlatão" [ao vivo com Sérgio Godinho >> YouTube] e "Casa Comigo, Marta" [>> YouTube]), a de Natália Correia ("Queixa das Almas Jovens Censuradas" [>> YouTube]), a de Alexandre O'Neill ("Perfilados de Medo" [>> YouTube]), a de Luís de Camões ("Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" [>> YouTube]) e a do próprio José Mário Branco ("Nevoeiro" [>> YouTube] e "Mariazinha" [>> YouTube]);
15. Edição do álbum "Movimento Perpétuo", de Carlos Paredes; sequência lógica do LP "Guitarra Portuguesa" (1967), neste álbum o músico apresenta-se ainda mais inspirado e arrebatador; como escreveu Mário Correia, «é um Carlos Paredes demolidor das nossas veias, revolvendo-nos as entranhas de povo colectivo emergindo das cordas da guitarra, aquele que anima este "Movimento Perpétuo"»; o acompanhamento é na viola de Fernando Alvim, surgindo em "Mudar de Vida" (Tema [>> YouTube] e Música de Fundo [>> YouTube] do filme homónimo realizado por Paulo Rocha) a flauta de Tiago Velez; aos outros temas todos da autoria de Carlos Paredes – "Movimento Perpétuo" [>> YouTube], "Variações em Ré menor" [>> YouTube], "Danças Portuguesas N.º 2" [>> YouTube], "Variações em Mi menor" [>> YouTube], "Fantasia N.º 2" [>> YouTube], "Variações sobre uma Dança Popular", "António Marinheiro" (tema da peça de Bernardo Santareno) [>> YouTube] e "Canção" [>> YouTube] –, o guitarrista adicionou "Valsa" [>> YouTube] composta pelo seu avô paterno, Gonçalo Paredes;
16. Edição do álbum "Cantigas de Amigos", de Natália Correia, Amália Rodrigues e Ary dos Santos; o mais desconhecido (a edição em CD só aconteceu em finais de 2011) e, no entanto, um dos títulos mais encantadores da discografia de Amália; tudo teve origem na publicação em 1970, pela Editorial Estampa, do livro "Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses", apresentando para cada espécime o texto original e a respectiva versão em português moderno da lavra da poetisa Natália Correia, grande amiga de Amália Rodrigues; a elas se juntou outro dilecto amigo, Ary dos Santos, e assim ficou completa a trindade de vozes que, suportadas pelas guitarras portuguesas de José Fontes Rocha e Carlos Gonçalves, a viola de Pedro Leal e a viola baixo de Joel Pina, deram nova vida a um punhado de 14 trovas medievais (maioritariamente cantigas de amigo e de escárnio e maldizer): "Vim Esperar o Meu Amigo" [>>
YouTube], "Vem Comigo, Irmã", "Perigosas Elas São", "Ah, Quisesse Deus" [>> YouTube], "Senhora que Bem Pareceis", "E Pede-Me Agora o que Não Devia" [>> YouTube], "O Rapinante", "Uma Pastora Delgada", "Lá Vão as Flores" [>> YouTube], "Nem por Rei ou Infante Eu me Trocaria", "Sejamos como Toda a Gente", "Ai, Dona Feia, Foste-vos Queixar", "Amores Eu Tenho" [>> YouTube] e "Alegre Eu Ando"; o ramalhete ficou completo com a "Ermida de São Simeão" que Amália gravara em 1964; a belíssima capa do álbum tem a assinatura de outra conviva dos serões amalianos, a pintora Maluda.

Todos (ou quase todos) estes itens podiam ser devidamente ilustrados, ora com registos do arquivo da RDP (entrevistas, adaptações de peças de teatro e de obras romanescas, recitações de poemas, etc.) ora, no caso de repertório musical, com gravações discográficas. Não cabia tudo em 50 minutos? Problema nada difícil de resolver: em vez de uma única edição (lacunar, espartilhada e cinzenta), façam duas – mais completas, desafogadas e variegadas.
Renova-se o pedido: deseja-se que "A Vida dos Sons" seja menos cinzenta e mais multicolor.


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