17 junho 2025

Marta Pereira da Costa com Iván Melón Lewis: "Sem Palavras"


(in https://www.e-cultura.pt/)


«Por vezes imagino que não morrerei sem realizar e apresentar na rádio um programa de prosas leves e música exclusivamente instrumental. Mas a música instrumental é um corpo estranho na rádio, ignorada quase sempre, usada como alcatifa para nela palavras tantas vezes de circunstância limparem os pés. Pode ser que, entretanto, morra um instrumentista ou calhe uma data redonda sobre o nascimento de outro, ou que um virtuoso nosso ganhe fora de portas um prémio de gabarito, nesse caso ouviremos todo o santo dia o seu movimento perpétuo, mas isso não nos levará a mudar de vida.
Vem isto a propósito de um novo festival anunciado para o início de Julho na Póvoa de Lanhoso e exclusivamente dedicado à música instrumental. O cartaz tem nomes irrecusáveis? Se tem. Tem Tó Trips, tem Manuel de Oliveira (o formidável guitarrista de Guimarães que, desde os dias longínquos da banda Mediterrâneo, pisou os grandes palcos do mundo e ainda recentemente nos deu "Entre-Lugar", uma pérola em parceria com a violoncelista Sandra Martins e com o acordeonista João Frade), tem Marta Pereira da Costa, grupos locais de percussão, instrumentos da terra, vontade de conversa no palco comunitário. O festival não cobra entradas e afirma-se como um lugar privilegiado para o encontro entre compositores e instrumentistas consagrados e outros acabados de chegar, numa homenagem à música instrumental que se faz entre portas. Haverá concertos nas ruas e nas praças da vila, foi declarada a intenção de envolver a comunidade, eis uma mancheia de razões para daqui fazer vénia ao autarca Frederico Castro, apesar de ele ter usado, a propósito do festival, a palavra "disruptiva" que nestes pobres dias serve de calçadeira a torto e a direito, embora haja quem aprecie.
Diz-se com frequência, a propósito de uma qualquer iniciativa, de uma promessa de campanha, de uma declaração política ambiciosa, que se trata de algo meramente instrumental, visando uma dada estratégia ainda oculta. O que deve ser realçado sobre este festival de música instrumental é o facto de ele não ser instrumental, mas um fim em si mesmo, o da celebração dos instrumentos e dos instrumentistas. Eis uma razão maior para visitar Póvoa de Lanhoso, nos primeiros dias de Julho. Sendo razão maior não é a única. Por um lado, coincide com a instalação, lá na Póvoa de Lanhoso, de um pólo de formação na área da filigrana. E acresce o bacalhau do Victor, na rua do Laranjal, e o mais antigo carvalho alvarinho da Península Ibérica, o formidável carvalho de Calvos, cujo porte talvez inspire Tó Trips, como se reunisse os Fake Latinos na Rua Escura e, brilhasse um sol doido sobre quem estivesse por perto, como se Júlio Pereira voltasse a Escrever o Sol, agora já no tal programa que talvez anteceda a minha morte, ou António Pinho Vargas reiniciasse a Dança dos Pássaros, ou nos sentássemos na Pedra do Sol das Danças Ocultas ou uma luz sublime incidisse sobre as mãos de Bernardo Sassetti compondo e tocando para Alice, o filme de Marco Martins.
Caramba, fiquei mesmo contente.» [Fernando Alves, "Instrumental", in "Os Dias que Correm", 17 Jun. 2025]


Ao indicar os nomes de tantos e categorizados artistas e grupos cujo labor se inscreve no domínio da música instrumental, e ao dar-se, inclusive, ao cuidado de acrescentar os títulos de algumas peças por eles gravadas, Fernando Alves estava, tacitamente, a convidar quem estivesse hoje na condução do programa da manhã da Antena 1, no caso Ricardo Soares, a rematar a crónica com um espécime instrumental das respectivas discografias. Porém, o destinatário desse implícito convite, fiel à sua condenável conduta negligente e preguiçosa, fez de conta que nada era com ele, mas não se coibiu de tecer um comentário espúrio e ridículo ainda antes de Fernando Alves chegar ao fim: «e há muitos mais». Pois é: há mas é como se não houvesse, ignorados ou impiedosamente marginalizados que são pela rádio que tem a obrigação (legal) de acarinhá-los e de dar-lhes confortável guarida!
Focando-nos nos artistas que vão actuar no festival de música instrumental de Póvoa de Lanhoso, que foi o móbil da crónica de hoje, tomamos a liberdade de relevar Marta Pereira da Costa, a segunda mulher a enveredar pela execução profissional de guitarra portuguesa (a primeira foi Luísa Amaro), dando realce à sua peça "Sem Palavras" integrante do álbum homónimo publicado em Maio do ano transacto. Trata-se de um trecho muitíssimo belo em que Marta Pereira da Costa faz dialogar, de modo assaz cativante, a sua guitarra com o piano de Iván Melón Lewis, músico cubano com quem partilhou, aliás, a interpretação de todo o alinhamento do disco. Boa escuta!



Sem Palavras



Música: Marta Pereira da Costa
Intérpretes: Marta Pereira da Costa* com Iván Melón Lewis (in LP/CD "Sem Palavras", Marta Pereira da Costa, 2024)




(instrumental)


* Marta Pereira da Costa – guitarra portuguesa
Iván Melón Lewis – piano

Produção – Marta Pereira da Costa
Gravação, misturas e masterização – Javier Monteverde, nos Estudios Cezanne, Madrid
Texto sobre o disco em: Público
URL: https://www.martapereiradacosta.com/
https://www.facebook.com/martapereiradacosta/
https://www.instagram.com/martapereiradacosta/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/marta-pereira-da-costa
https://soundcloud.com/martapereiradacosta
https://www.youtube.com/user/martacosta82/videos
https://music.youtube.com/channel/UC8v-2wD08RjeOh6iLTC8RtA



Capa do LP/CD "Sem Palavras", de Marta Pereira da Costa (2024)
Fotografia – Marta Rita
Design – Dentsu Creative

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