
© Alfredo
(in https://telemarinas.com/)
«Izan, um menino galego de oito anos, tem a cabeça povoada de pensamentos marinheiros mais vastos que a ria de Bayona.
Certa vez, conta a repórter Mónica Torres, correspondente d' "A Voz da Galiza" em Nigrán, o tio de Izan perguntou-lhe se queria que lhe construíssem "um Titanic gigante". Izan ficou muito feliz, mais feliz do que o rio Miñor quando corre para as águas mais vastas, traçando uma linha de vertigem entre dois municípios de Pontevedra.
Na cabeça de um menino marinheiro, os Titanics nunca afundam. Muito menos este Titanic que o tio Fernando replicou, imponente nos seus seis metros e vinte de comprimento e dois metros de altura, com as quatro chaminés listradas a amarelo e negro, as tantas escotilhas, os mastros, o casco, os invisíveis pedais. O Titanic a pedais flutua e sulca o oceano ali deitado, tão manso, aos pés do menino vestido de marinheiro.
Cabem dois tripulantes dentro deste Titanic. Sentados aos pedais, como os antigos remadores, arreda Neptuno! Foi este Titanic a obsessão feliz de muitas horas a ver passar navios no YouTube e a tomar notas para a aventura de um estaleiro familiar. Izan, oito anos, desenhou estruturas, estudou materiais, orientou a maratona que, desde o Natal, permitiu erguer, sobre um kayak, a réplica perfeita do transatlântico que, em 1912, abraçou tragicamente um iceberg no Atlântico Norte.
Izan é um dos miúdos que sorri na fotografia d' "A Voz da Galiza". Miúdo dado à arte de marear por pensamentos, e agora por pedais, parece ter um destino marujo traçado nas estrelas e nas entrelinhas do nome. Reparai no apelido de Izan: Rios Garcia. Vive na embocadura de um rio, passa horas fitando as águas mais vastas da ria de Bayona, faz-me lembrar o menino de um poema de Afonso Lopes Vieira dedicado ao marinheiro da minha estima maior, um tal Bartolomeu Dias. Quando ainda menino, tal como Izan, (estou já pedalando o poema) o menino Bartolomeu "ia para o pé do mar (...) E Bartolomeu cismava / Ó que lindo, ó que lindo, / o mar, / e a sua voz profunda e bela!".
Foi este poema escrito no ano em que o Titanic naufragou, 1912. Não quero puxar para a crónica a nuvem da desgraça. Mas, na verdade, o marinheiro e engenheiro naval Izan Rios Garcia, nos seus oito anos de menino a olhar o mar, tem o plano de fazer naufragar o seu navio de brincar a sério. Talvez no final do Verão.
Eu chegara a pensar que esta era a história de um menino que aprende a ser marinheiro com um Titanic que nunca iria ao fundo porque é pura poesia feita navio. Mas não.
Num arrepio breve, como se tivesse sido tocado por um vento frio no convés da manhã, ocorrem-me os versos de Cecília Meireles: "Pus o meu sonho num navio / e o navio em cima do mar; / depois, abri o mar com as mãos, / para o meu sonho naufragar".» [Fernando Alves, "Um Titanic a pedais", in "Os Dias que Correm", 27 Jun. 2025]
Sendo certo que Fernando Alves grava a sua crónica com razoável tempo de antecedência em relação ao horário previsto para a radiodifusão, pouco antes das 09h:00, Miguel Freitas, que ultimamente tem assegurado a condução programa da manhã da Antena 1, tem acaso o cuidado, antes de pôr a crónica no ar, de ouvir o áudio ou, ao menos, de ler o texto? Hoje, procedeu assim? Em caso afirmativo, por que razão não antecipou a crónica em cerca de três minutos para rematá-la com o poema de Cecília Meireles evocado por Fernando Alves, na interpretação de Amália com música de Alain Oulman, que abre o alinhamento do primoroso álbum "Com Que Voz" (1970)? Não quis dar-se a esse eventual incómodo ou será que está terminantemente proibido por Nuno Galopim de Carvalho de aditar um epílogo (poético, poético-musical ou simplesmente musical) à crónica de Fernando Alves? Qualquer que seja o motivo, ele merece a veemente reprovação dos ouvintes, designadamente daqueles que ouviam os "Sinais" na TSF-Rádio Jornal e eram aí presenteados com um registo extraído de edição discográfica tematicamente relacionado com o teor geral da crónica ou com uma determinada referência intertextual. Se esse louvável procedimento se verificava numa rádio privada, não há justificação atendível para que não seja regra na Antena 1, a qual, em razão do financiamento público, tem a obrigação de fazer melhor do que as estações que vivem da publicidade.
Eis, pois, o sublime fado "Naufrágio", superlativamente cantado por Amália, com música de Alain Oulman sobre versos do poema "Canção" da autoria da ilustre poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964). Boa escuta!
Naufrágio
Poema: Cecília Meireles (excerto ligeiramente adaptado do poema "Canção") [texto original >> abaixo]
Música: Alain Oulman
Intérprete: Amália Rodrigues* [in LP "Com Que Voz", Columbia/VC, 1970, reed. EMI-VC, 1987; 2CD "Com Que Voz" (nova edição): CD 1, Edições Valentim de Carvalho/iPlay, 2010; CD "Com Que Voz (Remastered)", Edições Valentim de Carvalho, 2019]
[instrumental]
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
com as mãos, para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul, do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, vai morrendo dentro do navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer, para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
[instrumental]
* Amália Rodrigues – voz
José Fontes Rocha – guitarra portuguesa
Pedro Leal – viola
Gravado por Hugo Ribeiro, nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos, em Janeiro de 1969
Remasterizado por Jorge Barata (edição de 2019)
URL: https://amaliarodrigues.pt/pt/amalia/
https://www.museudofado.pt/index.php/fado/personalidade/amalia-rodrigues
https://centenarioamaliarodrigues.pt/
https://www.youtube.com/c/amaliarodriguesofficial
https://music.youtube.com/channel/UCF_E888KGi1ko8nk9Pus_2g
CANÇÃO
(Cecília Meireles, in "Viagem", Lisboa: Editorial Império, 1939; "Obra Poética", Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958)
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro do navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Capa da 1.ª edição do livro "Viagem", de Cecília Meireles (Lisboa: Editorial Império, 1939)

Capa na nova edição brasileira do livro "Viagem", de Cecília Meireles (São Paulo: Global Editora, 2012)

Frontispício do volume "Obra Poética", de Cecília Meireles; introdução geral de Darcy Damasceno; apreciações de Mário de Andrade e de outros; epílogo de João Gaspar Simões; xilogravuras de Graciela Fuensalida (Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958)

Capa do LP "Com Que Voz", de Amália Rodrigues (Columbia/VC, 1970)
Executada no Atelier Conceição e Silva.
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Outros artigos com repertório de Amália em voz própria:
Ser Poeta
Celebrando Vinicius de Moraes
Camões recitado e cantado (II)
Amália Rodrigues: "Primavera" (David Mourão-Ferreira)
Amália Rodrigues: "Abril" (Manuel Alegre)
Poesia trovadoresca adaptada por Natália Correia
Luís de Camões: "Perdigão perdeu a pena"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
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Cana rachada d'Azambuja
Janita Salomé: "Na Palestina"
Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
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