20 junho 2025

Maria Guinot: "Cartão-de-Visita"


(in https://eurovision-spain.com/)


A 7 de Março de 1984, no Cinema Europa, no bairro lisboeta de Campo de Ourique, Maria Guinot deu um grito. Chamava-se "Silêncio e Tanta Gente" e valeu-lhe não só a vitória no Festival RTP da Canção, e respectiva representação nacional no Festival da Eurovisão, como a perpetuidade na memória colectiva.
As canções não se escrevem apenas com letra e música. Têm gente dentro. «Às vezes é no meio de tanta gente/ Que descubro afinal aquilo que sou/ Sou um grito/ Ou sou uma pedra/ De um lugar onde não estou», preconizava na canção vitoriosa.
Nesse tempo em que a tendência maioritária era os letristas e os compositores escreverem e comporem para vozes alheias, Guinot escreveu e compôs a canção que interpretou. Sozinha, sentada ao piano, sem artifícios, directa ao coração. E essa interpretação ficou gravada na memória dos telespectadores portugueses: em solidariedade com os músicos em greve, devido a um diferendo com a RTP, Maria Guinot recusou o sistema 'playback' adoptado nessa edição e apresentou-se ao vivo, quando todos os outros nove concorrentes aceitaram as condições impostas pela estação pública de televisão.
O "Diário de Lisboa" brincava com o seu nome e titulava "Festival guinou para melhor". Era um concurso já na curva descendente, depois de ter contribuído para o país mudar para melhor graças a hinos cantados por Simone de Oliveira, Tonicha, Carlos Mendes, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Carlos do Carmo.
A 5 de Maio de 1984, no Luxemburgo, Maria Guinot acabou em 11.º lugar, com 38 pontos – uma classificação modesta, mas à frente de tradicionais candidatos à vitória final, como a Alemanha. Mais do que isso, deu-lhe a eternidade na memória colectiva de uma geração que se habitou a esperar, quer pelo Festival RTP da Canção quer pelo da Eurovisão, como por uma final futebolística. «E troco a minha vida por um dia de ilusão», já dizia a canção que a levou pela vida. «Às vezes sou o tempo que tarda em passar», antevia. Conscientemente ou não, Guinot suspeitava que as luzes se apagariam depressa.
Maria Adelaide Fernandes Guinot nasceu em Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa, a 20 de Junho de 1945, mas cresceu em Almada. Aprendeu piano desde os quatro anos, finalizou o curso no Conservatório Nacional em 1962 e ingressou no Coro Gulbenkian três anos mais tarde. Frequentou em simultâneo o curso liceal na área de Germânicas e iniciou os estudos de francês na Alliance Française, frequentando ainda os Institutos Britânico, Alemão e Italiano aperfeiçoando os seus conhecimentos de línguas estrangeiras. Ganha uma bolsa de estudo concedida pelo governo francês, e parte para Paris. A estadia em França influencia a sua visão da sociedade, e a sua música, reflectindo-se mais tarde nas suas composições e interpretações.
Em 1981, ficara em terceiro lugar no mesmo Festival RTP da Canção com "Um Adeus, Um Recomeço". Essa participação interrompera um primeiro período de silêncio entre a gravação de dois EP – "La Mére Sans Enfant", de 1968, e "Balada do Negro Só", de 1969 –, ambos editados pela Alvorada, que seguiam a linha dos baladeiros da época. O regresso só acontece quando a década de 80 ainda acorda para um país em reforma cultural e musical.
O país escuta-a com atenção a tocar e a cantar "Silêncio e Tanta Gente" mas, entre um sim alegre ou um triste não, Guinot escolhe não viver na ilusão. Não dá sequência ao mediatismo, grava mas discretamente e é próxima de figuras como Carlos Mendes, Manuel Freire e José Mário Branco. Este último produz o álbum homónimo de 1990 (ed. UPAV), que conta com a participação de músicos como a violoncelista Irene Lima, o contrabaixista Carlos Bica e o saxofonista Edgar Caramelo. Dos Trovante chegavam o percussionista João Nuno Represas e o teclista (e também produtor) Manuel Faria. O disco sucedia ao LP "Essa Palavra Mulher", uma edição de autor datada de 1988. A cumplicidade com o autor de "Ser Solidário" havia-se iniciado em 1986 quando Maria Guinot concebeu "Homenagem às Mães da Praça de Maio", nos dez anos do início da concentração das mulheres que, em Buenos Aires, exigiam saber dos filhos desaparecidos durante a ditadura militar argentina (1976-1983). A canção, integrante do duplo LP "Cem Anos de Maio", patrocinado pela CGTP, foi uma das bandeiras do programa "Deixem Passar a Música" da RTP, no qual era acompanhada por uma orquestra sob a regência de José Mário Branco.
Esporádicas aparições em programas de televisão durante a década de 90 resgatam-na de um silêncio que nunca lhe foi inóspito. O derradeiro álbum, "Tudo Passa", é editado em 2004, juntamente com o livro "Memórias de um Espermatozóide Irrequieto", o segundo saído da sua pena, depois de "Histórias do Fado" que fora escrito em colaboração com Ruben de Carvalho e José Manuel Osório, sob o tema "Um Século de Fado". Em 2010, sofre três acidentes vasculares cerebrais que a deixam impossibilitada de tocar piano. Acto contínuo, deixa os palcos que ainda frequentava esporadicamente. Já afastada da vida pública, uma infecção respiratória levou-a de vez. «E esta pedra/ E este grito/ São a história d'aquilo que sou» dão agora ainda mais sentido à canção que a acompanhou até ao fim.
[ligeiramente adaptado do obituário redigido por Davide Pinheiro para o semanário "Sol", 10 Nov. 2018]


Imaginemos que uma entidade idónea realizasse, hoje, um inquérito de rua, pedindo aos transeuntes de vários escalões etários que indicassem duas canções de Maria Guinot. O escrevente destas linhas era capaz de apostar que não chegaria aos 10 % a percentagem dos que referissem alguma além de "Silêncio e Tanta Gente" [>> YouTube], mesmo admitindo que entre as pessoas interpeladas houvesse muitas com mais de 50 anos de idade. Nesse desconhecimento/olvido da obra da cantautora Maria Guinot, que, apesar de não ser extensa (compreende três álbuns e seis discos de curta duração), contém canções de elevado quilate, a rádio, mormente a pública Antena 1, tem sobejas culpas no cartório. Uma dessas canções dignas de apreço e (re)descoberta tem por título "Cartão-de-Visita" e faz parte do CD "Tudo Passa" (Medilivro, 2004), o último e o melhor, a nosso ouvir, dos seus discos de longa duração. Aqui vo-la deixamos, no dia em que Maria Guinot completaria 80 anos de idade, se a má Fortuna, há quase sete anos, não lhe tivesse usurpado a vida. Boa escuta!



Cartão-de-Visita



Letra e música: Maria Guinot
Intérprete: Maria Guinot* (in CD "Tudo Passa", Medilivro, 2004)


Receosa me sinto,
nas cantigas me empenho:
faço da escrita uma arma
que manejo com engenho.

Finjo que digo o que sei,
esqueço o que finjo saber,
e sei que sempre cantei [bis]
esta maneira de ser.

Escrevi canções de amor e ternura,
mas outras canções foram pão-de-amargura.
[bis]

Sei que me falta o tempo
p'ra dizer tudo o que penso:
se calo chamam-me falsa,
se digo não tenho senso.

Não sou espelho de ninguém
nem engano no parecer,
e sei que sempre cantei [bis]
esta maneira de ser.

Escrevi canções de amor e ternura,
mas outras canções foram pão-de-amargura.
[bis]

[instrumental / vocalizos]

Receosa me sinto,
nas cantigas me empenho:
faço da escrita uma arma
que manejo com engenho.

Finjo que digo o que sei,
esqueço o que finjo saber,
e sei que sempre cantei [bis]
esta maneira de ser.

[vocalizos / instrumental]

Escrevi canções de amor e ternura,
mas outras canções foram pão-de-amargura.
[bis]


* Maria Guinot – voz e coros
Paulo Gaio Lima – violoncelo
Rita Guerra – coros

Produção, arranjos e direcção musical – Pedro Osório
Mistura – Pedro Vaz
URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Guinot
https://www.youtube.com/@PortugalVinil/videos?query=maria+guinot



Capa do CD "Tudo Passa", de Maria Guinot (Medilivro, 2004).

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