
(in https://media.istockphoto.com/)
«David Molina, do jornal "La Vanguardia", fala-nos da ascensão e triunfo dos chefs robots na Coreia do Sul. A praga atingiu até os restaurantes de estrada.
O repórter conta que, ao visitar pela primeira vez um restaurante robotizado na Coreia do Sul, acreditou ter mergulhado "numa distopia da animação japonesa". Uma voz sintética saída de uma pantalha desejou-lhe "bom proveito", enquanto "uma bandeja transportada por um carrinho com olhos LED" lhe trazia a comida. Esta mudança está generalizada.
Por cada dez mil trabalhadores da indústria hoteleira sul-coreana há mil robots, instalados com recurso a uma subvenção governamental que pode chegar aos 70 por cento. Cozinheiros e empregados de mesa, adeus, até ao meu regresso. Escreve o repórter: "A eficiência é irresistível. A solidão também".
Milhares de postos de trabalho ameaçados e adeus hospitalidade, viva senhor Manuel, então que me diz das bombas largadas pelo tipo do boné? Bom dia, dona Rosalina, o que é que recomenda hoje? Essa vitela assada tem muito bom aspecto, só tenho medo que me faça bem.
Reparo que a palavra espanhola 'hosteleria' acolhe simultaneamente a ideia de hotelaria, a de hospedagem e, talvez mais importante, a ideia de hospitalidade. É bom sublinhar o facto antes de pedir ao robot se me arranja um babete, sou uma desgraça à mesa, o oposto do carrinho com luzes e apitos que transporta 30 quilos de comida a várias mesas sem tocar em ninguém e sem se enganar nos pedidos.
O repórter conta o caso de um restaurante de estrada, frequentado por muitos camionistas. O dono do restaurante instalou 3 robots em substituição da cozinheira. Os robots despachavam 150 pratos por hora, o dobro do que conseguia a trabalhadora, talvez deva dizer colaboradora, que saudades de um abraço ao amigo António da Pensão Borges. Os camionistas começaram a procurar outra ementa, fartos de serem atendidos por criaturas de aço e chips.
Outro dado da reportagem de "La Vanguardia": em muitas escolas públicas da Coreia do Sul os robots substituíram 50 % do pessoal dos refeitórios. Alguém comenta, a dado passo: "Não quero que o meu filho cresça pensando que comer é pressionar um botão e receber algo sem alma".
David Molina lembra, entretanto, o caso de um restaurante mexicano onde um robot atende os clientes e memoriza as suas preferências, ao mesmo tempo que conta piadas programadas. O repórter conta que sentiu um calafrio ao tomar conhecimento da inovação. "Um humano rindo sozinho diante de uma máquina treinada para imitar o humor", anota David Molina. Não me ocorre maior pobreza.
Nada paga a alegria da conversa com o senhor Miranda que todos os dias, ao pousar na mesa um pratinho de tremoços, me dá informação nova e preciosa sobre peixes que eu creio só existirem nos seus pensamentos.
Os peixes voadores das conversas nos restaurantes em que nos sentimos em casa são tão apetecíveis como pescadinhas de rabo na boca.
Há boas cerejas hoje, senhor Manuel?» [Fernando Alves, "Há boas cerejas hoje, senhor Manuel?", in "Os Dias que Correm", 23 Jun. 2025]
Os robots cozinheiros e empregados de mesa também envelhecem? Não há a mais pequena dúvida de que sim. Embora não sejam seres viventes (por enquanto – desejavelmente nunca) estas máquinas 'inteligentes' não são imunes ao natural desgaste das peças e dos materiais de que são feitos, nem tampouco são incólumes à obsolescência em que inevitavelmente cairão com o passar do tempo e os avanços tecnológicos. Esta pequena magicação foi-nos suscitada quando, ao ouvirmos esta inquietante crónica de Fernando Alves, nos veio à lembrança o poema "O Robot Que Envelhece", de João Pedro Grabato Dias (pseudónimo poético do pintor/ceramista António Quadros, 1933-1994), que Amélia Muge musicou e gravou, com arranjo de José Mário Branco, para o álbum "Taco a Taco", editado em 1998 pela Polygram Discos sob o selo Mercury.
Os ouvintes que escutaram a crónica aquando da transmissão pela Antena 1, hoje de manhã, teriam, se não todos uma boa parte, certamente gostado que este belo poema musicado/interpretado pela mais categorizada cantautora portuguesa servisse de epílogo ilustrativo às palavras de Fernando Alves. E o eminente cronista não deixaria também de se sentir confortado e sensibilizado por, com tal gesto, quem está aos comandos do canal generalista da rádio pública manifestar publicamente o quanto reconhece e valoriza o seu magistral trabalho.
O Robot Que Envelhece
Poema: João Pedro Grabato Dias
Música: Amélia Muge
Arranjo: José Mário Branco
Intérprete: Amélia Muge* (in CD "Taco a Taco", Mercury/Polygram, 1998)
Sou o robot que envelhece
Contrariando o programa
Vou com prazer para a cama
Com prazer espero a benesse
Duma pausa, duma prece
De novo um regaço de ama
Sou o robot pilha gasta
Com a energia da inércia
Desalinhado da sércia
Pré-registada e infasta
Tive por mãe a madrasta
Dos medos magos da Pérsia
E vou passando a madraço
De outros serviços isento
Pois que riso é siso em tempo
E o siso é o riso no espaço
Deixo aos outros o embaraço
De ficarem para exemplo
[instrumental]
Sinto o metal perder o gume
Destemperando o matiz
Da renda em que era feliz
Sem que me soubesse imune
A acordar sem azedume
E sem mais pais que País
A morte é igual a tudo
Tem seu preparo e amanho
É um espera que eu já venho
Dito em vésperas de Entrudo
No que me morro me estudo
Já nem terei outro empenho
E vou passando a madraço
De outros serviços isento
Pois que riso é siso em tempo
E o siso é o riso no espaço
Deixo aos outros o embaraço
De ficarem para exemplo
[instrumental]
Sou o robot que envelhece
Estou em mudança total
Ai pobre de quem padece
Deste mal do vil metal
Sou o robot pilha gasta
Tão velho e ainda binário
Quero ser octogenário
Deste programa madrasta
* Amélia Muge – voz
Vasco Broco e António José Miranda – violinos
Alexandra Mendes – viola de arco
Catarina Anacleto – violoncelo
António José Martins – percussões várias
Produção – António José Martins, com a colaboração de José Mário Branco
Produtores executivos – Paulo Salgado e António José Martins
Gravado e misturado no estúdio Noites Longas, em Dezembro de 1997
Técnicos de som – António Pinheiro da Silva e Maria João Castanheira
Misturas – António Pinheiro da Silva e António José Martins
Masterização – António Pinheiro da Silva e Rui Neves
Texto sobre o disco em: Grandes discos da música portuguesa: efemérides em 2008
URL: https://www.facebook.com/ameliamuge
https://www.facebook.com/Am%C3%A9lia-Muge-Michales-Loukovikas-315928531775833/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Am%C3%A9lia_Muge
https://www.uguru.net/artista/amelia-muge/
https://www.youtube.com/channel/UC9pldcsocJWRX6mIP5w2viw
https://www.youtube.com/@macajm51
https://www.youtube.com/@UGURUMusica/videos?query=amelia+muge
https://music.youtube.com/channel/UCEWggHi4NJVs7BYz1VmaOfg

Capa do CD "Taco a Taco", de Amélia Muge (Mercury/Polygram, 1998)
Ilustrações – Amélia Muge
Concepção gráfica – Cristiana Serejo
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Outros artigos com repertório de Amélia Muge:
A infância e a música portuguesa
Camões recitado e cantado
Celebrando Natália Correia
Em memória de António Ramos Rosa (1924-2013)
Celebrando Sophia de Mello Breyner Andresen
Em memória de Fernando Alvim (1934-2015)
Amélia Muge: "Os Novos Anjos" (ao Zeca Afonso)
Amélia Muge: "Dia em Dia"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
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Outros artigos relacionados com a crónica de Fernando Alves na Antena 1:
Galandum Galundaina: "Chin Glin Din"
"Sons d'Outrora" em viola da terra, por Miguel Pimentel
Vitorino: "Moças de Bencatel" (Conde de Monsaraz)
Teresa Silva Carvalho: "Barca Bela" (Almeida Garrett)
António Borges Coelho: "Sou Barco"
Celeste Rodrigues: "Chapéu Preto"
Sérgio Godinho: "Tem Ratos"
Ruy Belo: "E Tudo Era Possível", por Nicolau Santos
Jacques Brel: "J'Arrive"
A tristeza lusitana
Segréis de Lisboa: "Ay flores do verde pino" (D. Dinis)
Manuel D'Oliveira: "O Momento Azul"
Aldina Duarte: "Flor do Cardo" (João Monge)
José Mário Branco: "Inquietação"
Chico Buarque: "Bom Conselho"
Teresa Paula Brito: "Meu Aceso Lume - Meu Amor" (Maria Teresa Horta)
Adriano Correia de Oliveira: "Pensamento" (Manuel Alegre)
Fausto Bordalo Dias: "Comboio Malandro" (António Jacinto)
Grupo Coral "Os Ganhões de Castro Verde" com Luiz Avellar: "As Nuvens Que Andam no Ar"
Amélia Muge: "Ai, Flores"
Afonso Dias: "Os Amigos" (Camilo Castelo Branco)
Pedro Barroso: "Barca em Chão de Lama"
António Gedeão: "Poema do Coração"
Reinaldo Ferreira: "Quero um cavalo de várias cores"
Chico Buarque: "Construção"
João Afonso: "Tangerina dos Algarves"
Joan Manuel Serrat: "Cantares" (Antonio Machado e Joan Manuel Serrat)
Belaurora: "Lamento do Camponês" (Popular e Onésimo Teotónio Almeida)
Manuel Freire: "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (José Saramago)
João Afonso: "O Som dos Sapatos"
Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas"
Carlos Mendes: "Alcácer Que Vier" (Joaquim Pessoa)
Janita Salomé: "Cerejeira das cerejas pretas miúdas" (Carlos Mota de Oliveira)
Mário Moita: "Senhora Cegonha"
Políbio Gomes dos Santos: "Poema da Voz Que Escuta", por Maria Barroso
Pedro Barroso: "Nasce Afrodite, amor, nasce o teu corpo" (José Saramago)
Bugalhos: "Carvalho Grande"
Eugénio de Andrade: "As Mães"
Cana rachada d'Azambuja
Janita Salomé: "Na Palestina"
Natália Correia: "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
José Afonso: "Ali Está o Rio"
Jorge Palma: "A Escola"
Alexandre O'Neill: "Periclitam os grilos", por Mário Viegas
Chico Buarque com Milton Nascimento: "Cálice"
Irene Lisboa: "Pequeno Poema Mental", por José Rodrigues Miguéis
João Afonso: "Lagarto" (José Eduardo Agualusa)
Carlos Garcia com Luís Represas: "Noite Perdida" (António Feijó)
Mísia: "Sou de Vidro" (Lídia Jorge)
Teresa Rita Lopes: "Casa de Cacela"
Marta Pereira da Costa com Iván Melón Lewis: "Sem Palavras"
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