Até finais de Dezembro de 2012, sempre que nas ondas da Antena 2 surgia a secção instrumental da ária "Così potessi anch'io" (*), de Vivaldi, era sinal quase certo de que começara ou estava a acabar uma emissão do "Questões de Moral" [>> RTP-Play]. Infelizmente, o programa desapareceu da grelha, porque a direcção de programas não quis que ele continuasse, mesmo na modalidade de reposição, já que as emissões originais haviam cessado dois meses antes (ao ser negado a Joel Costa o exercício do direito previsto nos números 2 e 3 do artigo 78.º do Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, na redacção que lhe dada pelo Decreto-Lei n.º 179/2005, de 2 de Novembro).
Mas ao contrário dos altos (ir)responsáveis da Antena 2 e da Rádio e Televisão de Portugal, nada ralados com o prejuízo advindo para o auditório, Joel Costa sempre teve em boa conta e consideração os seus ouvintes, e entendeu por bem continuar a presenteá-los com as suas lúcidas, pertinentes e desassombradas reflexões sobre as mais variadas temáticas. Não oralmente e via rádio (pelo menos, enquanto não houver uma estação interessada em recuperar o programa) mas sob a forma escrita, e visual, através do blogue "Questões de Moral" (http://questoes-de-moral.blogspot.pt/). Aqui se deixa a lista dos artigos publicados até ao momento, com os links de acesso directo.
O salutar exercício do pensamento sem peias como profiláctico do marasmo e da torpeza mental!
(*) "Così potessi anch'io" (ária de Alcina), do II Acto da ópera "Orlando Furioso", RV 728, de Antonio Vivaldi, estreada no Teatro Sant'Angelo, de Veneza, em Novembro de 1727. O libreto tem a assinatura de Grazio Braccioli e baseia-se no poema épico homónimo de Ludovico Aristo, publicado (na versão completa) em 1532.
A gravação que Joel Costa utilizou no indicativo/genérico do "Questões de Moral" é de I Solisti Veneti, sob a direcção de Claudio Scimone, com o meio-soprano Lucia Valentini Terrani no papel de Alcina (grav. Jul. 1977 – ed. Erato, 1978, reed. Erato, 1992, Apex/Warner Classics, 2005).
Aqui se apresenta o vídeo dessa gravação e também o de outra mais recente, muito aclamada, pelo Ensemble Matheus, dirigido por Jean-Christophe Spinosi, com Jennifer Larmore (grav. Théâtre des Champs-Élysées, Paris, Mar. 2011 – ed. Naïve, 2011 – DVD).
Antonio Vivaldi: "Così potessi anch'io", por I Solisti Veneti, dir. Claudio Scimone, com Lucia Valentini Terrani (grav. Jul. 1977).
Antonio Vivaldi: "Così potessi anch'io", por Ensemble Matheus, dir. Jean-Christophe Spinosi, com Jennifer Larmore (grav. Mar. 2011).
QUESTÕES DE MORAL
(por ordem cronológica da publicação)
O conceito do programa "Vozes da Lusofonia", subjacente ao nome que enverga e ao que está expresso no próprio texto de apresentação (cf. http://www.rtp.pt/play/p276/e124201/vozes-de-lusofonia), designadamente na frase «Um ponto comum une os convidados de "Vozes da Lusofonia": a língua portuguesa!» voltou a ser impiedosamente violentado com o destaque dado a um disco cantado em inglês – "Sight of Truth", de Syana.
Será que o rol de Edgar Canelas relativo a álbuns cantados em português ou instrumentais, editados no último ano e meio, se esgotou, a ponto de sentir necessidade de deitar mão a um CD não lusófono?
Cingindo-me à produção nacional (que é a que conheço melhor), não tive dificuldade em referenciar uma mão-cheia de bons discos, lançados desde Janeiro de 2012, que ainda não marcaram presença no programa "Vozes da Lusofonia".
Ei-los, por ordem alfabética dos nomes dos intérpretes:
- Afonso Dias & A Sopa dos Pobres: "Fado Aleixo" (CD, Bons Ofícios - Associação Cultural, 2012)
- Anafaia: "ComTradições" (CD, 2012)
- António Crespo: "Coimbra em Balada" (CD, Public-art, 2012)
- Artesãos da Música: "Puleando" (CD, Artesãos da Música/ARMA, 2012)
- Assobio: "Fado 2.0" (CD, Teatro Municipal da Guarda, 2012)
- Bandarra: "Bicho do Diabo" (CD, Bandarra, 2012)
- Cantigas do Baú: "Cantigas do Baú" (CD, Cantigas do Baú, 2012)
- Canto D'Aqui: "Tributo a Zeca Afonso" (CD, Açor/Emiliano Toste, 2012)
- Capagrilos: "São Bassáridas" (CD, Capagrilos, 2012)
- Estudantina Universitária de Coimbra: "25 Anos de Sonho e Tradição" (2CD, Public-art, 2012)
- Frei Fado: "Se o Meu Coração Não Erra" (CD, Bartilotti, 2012)
- Miguel Calhaz: "Estas Palavras" (CD, Miguel Calhaz, 2012)
- Mísia: "Senhora da Noite" (CD, Silene, 2012)
- Mosca Tosca: "Assimetria" (CD, Tradballs, 2013)
- Mu: "Folhas Que Ardem" (CD, Mu, 2012)
- Musicalbi: "Adufando: Sinais da Beira Baixa" (CD, Musicalbi, 2012)
- O Baú: "Achega-te" (CD, O Baú, 2012)
- Pensão Flor: "O Caso da Pensão Flor" (CD, Brandit Music, 2013)
- Pedro Barroso: "Cantos da Paixão e da Revolta" (CD, Ovação, 2012)
- Pedro Barroso: "Palavras Mal Ditas" (Livro/CD, Lua de Marfim/Ovação, 2013)
- Stockholm Lisboa Project: "Aurora" (CD, Nomis Musik/Westpark Music, 2012)
- Strella do Dia: "Equinox" (CD, 2012)
- Teresa Salgueiro: "O Mistério" (CD, Clepsidra Música, 2012)
- Trasga: "Al Absedo..." (CD, Centro de Música Tradicional Sons da Terra, 2012)
- Urze de Lume: "Ibéria Oculta" (CD, 2012)
- Xarabanda: "Quem Anda na Roda" (CD, Associação de Música e Cultura Xarabanda, 2013)
Edgar Canelas não tomou conhecimento da existência daqueles álbuns? Não creio. Não lhes reconhece qualidade bastante? Também não quero acreditar. Então como se explica que os tenha ignorado? Os respectivos artistas, agentes ou editoras não o contactaram? Se foi essa a razão, é caso para dizer que procedeu muito mal.
A rádio pública não deve ficar parada e quietinha (qual "Maria tão te rales!") à espera que os artistas ou os seus representantes lhe batam à porta a pedir encarecidamente que os discos que levam na mão sejam divulgados. Tem a obrigação ela mesma, logo que tome conhecimento de determinado trabalho com notória qualidade, de tomar a iniciativa de convidar o artista em questão, qualquer que seja o local onde resida, ainda que muito longe da capital. Acaso se torne oneroso ao artista a deslocação a Lisboa para a realização da entrevista, que se faça uso dos estúdios regionais. Sendo financiada pelos cidadãos e empresas de Portugal inteiro (continental e insular), a Antena 1 não pode nem deve comportar-se como se fosse uma rádio local da grande Lisboa...
Jornalista, escritor e poeta português, GUILHERME José DE MELO nasceu na cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo), a 20 de Janeiro de 1931, e faleceu em Lisboa, a 29 de Junho de 2013. Fez os estudos liceais na cidade natal, ingressando no funcionalismo público que abandonou, aos vinte anos de idade, para iniciar a actividade de jornalista, primeiro no "Notícias da Tarde" (1952) e depois no "Notícias", de Lourenço Marques (1952-1974), onde atinge o lugar de director-adjunto. Os seus primeiros poemas saíram, em 1949, no jornal laurentino "Itinerário", continuando a colaborar com poesia e contos em diversos suplementos literários e revistas, tais como "Capricórnio", de Lourenço Marques, "Paralelo 20", da cidade da Beira, e "Colóquio/Letras", de Lisboa. Entre 1956 a 1959, colaborou num programa de teatro radiofónico dirigido por Reinaldo Ferreira, no Rádio Clube de Moçambique, quer escrevendo peças originais, quer adaptando obras de outros autores, designadamente de Henrik Ibsen e de Federico Garcia Lorca. Foi como ficcionista que publicou os primeiros livros: "A Menina Elisa e Outros Contos" (1960), "A Estranha Aventura" (contos, 1961) e "As Raízes do Ódio" (romance, 1965). Neste último, a abordagem feita ao racismo gerou acesa polémica, acabando a PIDE por apreender a edição. Em 1969, publicou um trabalho de reportagem sobre a Guerra Colonial, que então decorria, sob o título de "Moçambique, Norte – Guerra e Paz", que lhe valeu o Prémio Pêro Vaz de Caminha. Em Outubro de 1974, perante a convulsão em que Moçambique entrou, resolveu radicar-se em Lisboa, trabalhando no gabinete de imprensa do IARN - Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais e, a partir de Janeiro de 1976, como redactor do "Diário de Notícias", onde se manteve até 31 de Dezembro de 1996, altura em que se aposentou. «O Almeida Santos telefona-me e dá-me duas hipóteses de emprego: ou chefe de redacção da ANOP ou redactor do "Diário de Notícias". Escolhi ser redactor do "Diário de Notícias" e ele ficou muito admirado por eu ter decidido recomeçar por baixo.», confessou em 1998 numa entrevista concedida ao seu DN. O regresso à vida literária aconteceu com a publicação, em 1981, do romance "A Sombra dos Dias", «uma autobiografia escrita na terceira pessoa», distinguida pelo júri do Prémio Literário Círculo de Leitores para obras inéditas, em que tratou com frontalidade a homossexualidade, temática continuada nos romances "Ainda Havia Sol" (1984) e "O Que Houver de Morrer" (1989). O regresso à temática africana deu-se com "Os Leões Não Dormem Esta Noite" (1989), biografia romanceada de Gungunhana, que lhe fora sugerida por Samora Machel, já presidente da República Popular de Moçambique, quando se voltaram a encontrar em 1984 (haviam-se conhecido em 1961, quando o escritor, na sequência de um acidente de viação, esteve internado num hospital onde Samora era um anónimo ajudante de enfermeiro). Da sua produção romanesca posterior sobressaem "Como Um Rio sem Pontes" (1992) e "As Vidas de Elisa Antunes" (1997), olhar cúmplice e irónico sobre uma Lisboa corroída pela desumanização. Embora os primeiros textos literários que publicou fossem poemas, foi já perto do fim da vida que Guilherme de Melo se decidiu a publicar o seu primeiro e único livro de poesia, "A Raiz da Pele" (2011).
Bibliografia:
- A Menina Elisa e Outros Contos (contos), col. Textos Moçambicanos, Lourenço Marques: Associação dos Naturais de Moçambique, 1960
- A Estranha Aventura (contos), ilustrações de Jorge Garizo do Carmo, col. Prosadores de Moçambique, vol. 3, Beira, 1961
- As Raízes do Ódio (romance), Lisboa: Arcádia, 1965; Lisboa: Editorial Notícias, 1990
- Moçambique, Norte – Guerra e Paz (reportagem), Lourenço Marques: Minerva Central, 1969
- Menino Candulo, Senhor Comandante... (conto), Lourenço Marques: Emp. Moderna, 1974
- A Sombra dos Dias (romance), Lisboa: Bertrand, 1981; Lisboa: Notícias, 1985
- Ser Homossexual em Portugal (reportagem), col. Cadernos de Reportagem, vol. 1, Lisboa: Relógio d'Água Editores, 1982
- Ainda Havia Sol (romance), Lisboa: Editorial Notícias, 1984
- Moçambique: Dez Anos Depois (reportagem), Lisboa: Editorial Notícias, 1985
- O Que Houver de Morrer (romance), Lisboa: Editorial Notícias, 1989
- Os Leões Não Dormem Esta Noite (romance), Lisboa: Editorial Notícias, 1989
- Como Um Rio sem Pontes (romance), Lisboa: Editorial Notícias, 1992
- As Vidas de Elisa Antunes (romance), Lisboa: Editorial Notícias, 1997
- O Homem que Odiava a Chuva e Outras Estórias Perversas (contos), Lisboa: Editorial Notícias, 1999
- A Porta ao Lado (romance), Lisboa: Editorial Notícias, 2001
- Gayvota: Um Olhar (por Dentro) sobre a Homossexualidade (ensaios), Lisboa: Editorial Notícias, 2002
- Crónicas de Bons Costumes (contos), Lisboa: Editorial Notícias, 2004
- A Raiz da Pele (poesia), Montijo: Humanity's Friends Books, 2011
Paralelamente à edição do livro "A Raiz da Pele", o actor Vítor de Sousa gravou metade (vinte e sete) desses poemas num CD homónimo. Desse disco seleccionei uns quantos para aqui apresentar, em homenagem a Guilherme de Melo. É serviço público que o blogue "A Nossa Rádio" se orgulha de prestar aos seus leitores, mormente aos ouvintes da rádio pública, pois a Antena 1 (pelo menos) voltou a pecar, por omissão, na homenagem que lhe cabe render aos artistas e autores quando nos deixam. Carlos Pinto Coelho, se cá estivesse, não teria certamente deixado de honrar a memória de Guilherme de Melo, com quem, aliás, esteve duas vezes à conversa no programa "Agora... Acontece!". Portanto, afigura-se de toda a oportunidade trazer esses fonogramas à luz do dia, ademais não sendo de somenos o proveito cultural que deles poderá tirar quem se der ao cuidado de ouvi-los.
"Agora... Acontece!" N.º 82, de 22 Mai. 2000
Guilherme de Melo entrevistado por Carlos Pinto Coelho [a partir de 13':30'']
"Agora... Acontece!" N.º 334, de 04 Jul. 2005
Eugénio Lisboa e Guilherme de Melo conversam com Carlos Pinto Coelho sobre o poeta Reinaldo Ferreira
Capa do CD "A Raiz da Pele", de Vítor de Sousa (Ovação, 2011)
As receitas dos direitos de autor revertem a favor da Associação Sol, por vontade expressa de Guilherme de Melo.
LEGENDA
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Venho de um país que nenhum de vós conhece.
Tenho um destino que nenhum de vós entende.
Moro onde mora o dia que amanhece.
Guardo na alma um temporal desfeito
e cobre-me a nudez espuma em novelo.
Brame o mar, represo, no meu peito.
Escuto búzios em longas sinfonias.
Trago agarrados ao sal do meu cabelo
algas, conchas, limos e corais
ali deixados pela mão das ventanias.
COLONIZAÇÃO
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Sinto-te, África.
Sinto-te em cada músculo
de cada negro do cais.
Sinto-te em cada fulgor
do sol de Verão nas enxadas.
Sinto-te em cada soluço
das Marias-qualquer-coisa
sobre a esteira desfloradas.
Sinto-te, África, em meu sangue,
na alma, no coração,
e queria poder soltar
esta febre, esta paixão,
esta revolta incontida
de te sentir, minha terra,
nos olhos de quem me olha,
nas mãos presas às enxadas,
nos braços de quem trabalha
no manobrar das lingadas,
nos ventres prenhes de vidas
que não foram desejadas
nem o amor fez gerar.
De te sentir, minha África,
e não ganhar a coragem
do teu grito em mim gritar.
TAMBOR
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Estenderam meu corpo,
esticaram-me a pele.
Tambor me fizeram,
tambor me tangeram,
tambor me tocaram.
Tão longos os gritos,
tão longe gritaram.
Falou-me no sangue
a terra calcada
pelos negros curvados
perdidos no nada,
o ódio escondido
ao branco e senhor
– o milho perdido,
a seca mordendo,
o gado caindo,
meninos morrendo,
os choros, a dor,
na noite subindo
num longo crescendo.
Estenderam meu corpo,
esticaram-me a pele.
Tambor me fizeram,
tambor me tangeram,
tambor me tocaram.
E agora assombrados,
que longos os gritos
tão longe gritaram,
e agora aterrados,
que longos os sons
de mim se soltaram,
a pele me romperam,
enfim me calaram.
FRATERNIDADE
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Se um dia tiver um filho hei-de ensinar-lhe,
antes mesmo que diga Pai e Mãe,
a maravilhosa palavra que é Irmão.
Hei-de repetir-lha,
letra a letra,
de lábios a tocar-lhe o coração
para que entenda e se aperceba, assim,
que amar a vida
é amar em cada homem um Irmão.
ORGULHO
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Pouco ou nada me importa que vós outros
vos choqueis com a forma como eu amo.
Amo a quem amo como entendo e quero amar.
Amo a quem amo porque os nervos tensos
e toda a carne e sangue do meu corpo
impõem e me gritam que assim ame.
E o que se passa aqui, dentro de mim,
somente a mim pertence porque é meu.
Ficai sabendo, pois, que força alguma
pode mudar o que nasceu quando eu nasci
e que, nem sei porquê, aconteceu.
Sabei então, para sempre e de uma vez,
que aí fora, na rua, mandais vós
– mas aqui, dentro de mim, só mando eu.
DUALIDADE
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Metade do meu corpo é Marco António,
outra metade – mistério! – é Cleópatra.
Eu sou, ao mesmo tempo, o torvo Otelo
e Desdémona que a tremer se entrega
na fronteira da noite que amanhece.
Dentro de mim há sempre o que domina,
ao lado da metade que se oferece.
GIRASSOL
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Havia a imensidão que há nas paisagens lunares.
Havia o longo silêncio que escorre dos glaciares.
Havia a desolação que há sobre a terra queimada.
Havia o tenso mistério de uma freira emparedada.
Havia a aspereza salgada que há num longínquo recife.
Havia o cinzento frio que tem o céu em Cardiff.
Havia o pávido assombro duma descida ao inferno.
Havia a tristeza imensa de Veneza no inverno.
Havia um grito sem voz suspenso no ar parado.
Havia a face terrosa dum cigano esfaqueado.
Havia a nudez marmórea duma Acrópole derruída.
Havia o baço fulgor duma pupila sem vida.
Havia o que tendo havido nunca mais voltara a haver.
Havia a premonição das coisas por acontecer.
E foi então que vieste, assim num esplendor, num clarão,
como um girassol de fogo que irrompe, rasgando o chão.
DORIAN GRAY
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Sou eu,
inteiro, eu mesmo
– ou o retrato?
As rugas que não tenho e ele contém,
a ironia amarga nos meus lábios
feita cansaço fundo em sua boca,
o engelhado dos meus dedos lisos,
fio por fio nas suas mãos traçado,
tudo afinal sou eu nele retratado.
E olho no retrato do que sonhei.
E vejo nele o mundo que vivi.
O muito que odiei.
Os corpos que abracei, tive e perdi.
Olho o desejo, a raiva e o prazer,
a lama, o céu, o nada,
a volúpia a que, rindo, me entreguei.
Olho-me olhando o tudo que assim fiz,
tudo o que fui e quis,
lucidamente frio nesse meu querer.
Remorsos? E de quê? De ter vivido? Remorsos? Para quê – se o proibido é afinal estar vivo e não viver.
LISBOA
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Quando vim de África
faltava-me a lonjura,
o som e o silêncio, o espaço.
Quando vim de África
faltava-me a distância
onde o olhar se perde
e vai e vem e volta
e passeia sem peias,
receio ou embaraço.
Tudo é diferente
na Lisboa que adoptei e me adoptou.
Diferente o céu, o cheiro, a cor do mar,
diferente o chão que piso, a chuva, a gente.
Não há nas suas ruas
o clarão das acácias a florir.
Só pouco a pouco, lento, devagar,
a fui de manso
aprendendo a amar.
Hoje sinto que a Lisboa que adoptei e me adoptou
tem mais a ver com Cesário do que Eça.
Nela mergulho o rosto
como quem esconde a face que o sol esquenta
entre os seios doces, maternais,
da ama que a sorrir nos acalenta.
A RAIZ DA PELE
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Guardo na raiz da pele
os gritos, as emoções,
os desesperos, os medos,
a raiva, o ódio, a perfídia,
os sonhos, as frustrações,
as cicatrizes das feridas
que a vida em mim foi abrindo,
os mistérios, os segredos.
Guardo na raiz da pele
a verdade do que sou.
Deixo que à flor da pele
emerja a máscara, o sorriso,
o jogo do gato-e-rato
onde, estando, nunca estou.
O QUARTO FECHADO
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Pintei de verde o teu barco,
pus-lhe um mastro e uma vela.
Soltei-o por sobre as águas,
fiquei a vê-lo na margem.
Desenhei nuvens, bonecos,
nas paredes do teu quarto.
Enchi de sol a janela,
fiquei olhando, entre a porta.
Cobri de relva os canteiros
que tracei em frente à casa.
Trouxe-te um cachorro branco,
fiquei sentado a afagá-lo.
Peguei num livro de histórias
quando a tarde foi caindo.
Debruçado para o teu berço
fiquei a lê-lo calado.
Nada faltou ou esqueci,
em tudo pensei e trouxe:
brinquedos, livros, canções,
o riso que alegre riste;
apenas faltaste tu,
o filho que não existe.
VELHICE
Poema de Guilherme de Melo (in "A Raiz da Pele", Humanity's Friends Books, 2011)
Recitado por Vítor de Sousa* (in CD "A Raiz da Pele", Ovação, 2011)
Velhice, agora os dias são imensos,
são longos e vazios.
Agora os dias são pesados, arrastam-se, são frios.
Quieto, em meu lugar.
Passeio por entre as cruzes
dos mortos que guardo em mim.
Falo com eles em silêncio.
Esquecido, à espera do fim.
Outubro de 2008
* Vítor de Sousa – voz
Luísa Amaro – guitarra portuguesa
Marta Ribeiro – percussão