Exmo. Senhor Primeiro-Ministro de Portugal,
Exmo. Senhor Presidente do Conselho de Administração da Rádio e Televisão de Portugal,
Exmo. Senhor Provedor do Ouvinte,
Sempre defendi que a rádio pública deve ter como preocupação primeira a qualidade do serviço e nunca enveredar por estratégias de programação tendo como mira, a qualquer custo, o aumento das audiências. Este é um ponto assente, o que não significa que não haja a preocupação de que o serviço prestado, na observância de rigorosos critérios de qualidade e bom gosto, agrade ao maior número possível de ouvintes. Porque, como alguém dizia, "não há serviço público sem público". Nesta ordem de ideias, o valor de audiências – 0,4 % – que a Antena 2 registou no segundo trimestre de 2008, a mais baixa da sua História, desde que há audiometrias, deve merecer uma atenta reflexão da parte de quem tem por responsabilidade avaliar o serviço público de rádio. Aliás, os resultados obtidos nos trimestres anteriores mostram, sem margem para dúvidas, um contínuo decrescendo das audiências do canal. Ora a estratégia que vem sendo seguida, desde meados de 2005, pela direcção Rui Pêgo/João Almeida, visava justamente o contrário, isto é, alargar os públicos e consequentemente subir o nível de audiências. Convém lembrar que no segundo trimestre de 2005, imediatamente antes da grelha ter sido reformulada de acordo com a nova estratégia, a audiência da Antena 2 era de 0,6 % e com uma programação alegadamente mais elitista. E foi precisamente por a administração de então (na pessoa de Luís Marques) considerar que 0,6 % era um valor muito modesto para a Antena 2 que foi decidida a exoneração de João Pereira Bastos e a nomeação da dupla Rui Pêgo/João Almeida. Como se explica então o rotundo falhanço? Torna-se evidente que a orientação (ou desorientação) que foi dada à antena nos últimos três anos não só provocou a debandada de uma parte muito significativa dos ouvintes que lhe estavam fidelizados como não conseguiu captar e fidelizar novos ouvintes em número suficiente para compensar as perdas. Esta é uma conclusão irrefutável, por mais manigâncias que se tentem fazer. Fica também provado que em Portugal, a exemplo da generalidade dos países europeus, o público da música erudita europeia (ou de tradição europeia) suplanta em muito o conjunto dos públicos dos géneros musicais que passaram a ter grande destaque na Antena 2 – jazz, música étnica, música electrónica de ambientes e outras linguagens afins à pop. Muitas pessoas ficaram sem uma rádio para ouvir e às mais afortunadas não lhes restou outra alternativa que socorrerem-se da sua discoteca particular ou, então, optarem pela audição de rádios clássicas via internet.
Mas há ainda outras razões para o acentuado declínio das audiências da Antena 2 e que passo a esmiuçar. Em primeiro lugar, uma muito perceptível degradação da qualidade da locução – vozes não apropriadas para a rádio (em timbre e em colocação), erros de dicção e pronúncia quer de palavras portuguesas quer de estrangeiras (a colocação de tónica esdrúxula em palavras graves, por influência do inglês, é frequentíssima), erros de sintaxe e frases mal construídas, coloquialidade de trazer por casa em contextos que requeriam alguma formalidade, etc. E tudo isto agravado por um excesso de loquacidade repetindo-se inclusive coisas já anteriormente ditas, enfim, palavreado prolixo e inútil para quem está em sintonia. Não quero com isto dizer que não deva haver lugar na grelha para programas falados ou com uma forte componente de palavra ainda que de conteúdo predominantemente musical. No meu conceito de serviço público cultural, portanto não exclusivamente musical, esse tipo de programas deve existir. Digo mais: devem ter primazia relativamente aos longos alinhamentos do tipo 'jukebox', actualmente dominantes. Agora, o que não pode deixar de se ter em atenção é, logo à partida, a qualidade da oralidade, não devendo cair-se na leviandade de considerar que toda e qualquer voz serve para a rádio e – muito importante – evitar-se o improviso e ter-se como regra a preparação prévia dos textos que são lidos aos microfones, não se devendo descartar ainda assim as indispensáveis lições de dicção e prosódia em quem delas necessite. E por que razão o uso da língua portuguesa na rádio deve merecer uma atenção muito especial? Em primeiro lugar, para não defraudar as legítimas expectativas de quem frui o serviço; em segundo lugar, pela enorme influência que a rádio assim como a televisão exercem sobre a generalidade das pessoas, o que faz com a linguagem defeituosa usada nesses meios acabe por ser assimilada, tanto em maior grau quanto menor for o domínio da língua e o nível cultural do receptor. E sabendo-se da iliteracia que existe em Portugal, com largos estratos da população que não lêem livros (e que já perderam a rica cultura tradicional de transmissão oral) e que têm na rádio e na televisão os únicos meios de informação e de lazer, maior a pertinência da questão. O próprio Ministro da Cultura, Dr. José António Pinto Ribeiro, já se pronunciou várias vezes a respeito da atenção que deverá ser dada, nos média, à língua portuguesa. Foi o que fez, por exemplo, no programa televisivo Câmara Clara (20.07.2008), ao afirmar peremptoriamente que «não há política da língua sem a televisão, sem a rádio e sem os jornais». No caso concreto da emissora do Estado, que é o que nos interessa agora, a política que vem sendo seguida na área da língua portuguesa não podia estar mais em contradição com as palavras do ministro. Fará sentido que, sob a alçada do mesmo Governo, haja duas orientações diametralmente opostas? Em face deste facto, terá de se pedir ao Sr. Primeiro-Ministro que tome uma posição clara: ou manda calar o seu Ministro da Cultura ou então terá de pôr ordem na estação de rádio que está sob a sua tutela. Caso contrário, é a autoridade e a credibilidade do Governo, e por extensão do Estado Português, que ficam em causa.
Outro ponto de primordial importância para a melhoria do serviço prestado pela Antena 2 é o horário de transmissão dos programas de autor, sendo que todos eles devem passar no mínimo duas vezes, e em horários distintos, de modo a que pessoas com disponibilidades de escuta diferentes tenham possibilidade de ouvir (ou mesmo reouvir) os da sua preferência e com proveito para o seu enriquecimento cultural (caso contrário, é dinheiro que se está a deitar à rua). Já disse várias vezes, e lembro uma vez mais, que, sem prejuízo de continuarem a passar ao fim-de-semana, é imperioso que os programas de autor (na sua totalidade, reafirmo) sejam também transmitidos de segunda a sexta-feira, de dia (pensando nas pessoas que ouvem rádio enquanto trabalham) ou à noite (pensando nas pessoas que procuram na rádio uma alternativa à televisão). Os períodos sobrantes seriam então preenchidos com alinhamentos estritamente musicais, mas dedicados, isto é, com uma coerência editorial bem definida: instrumentos solistas, música de câmara, música concertante e orquestral, obras corais-sinfónicas, música vocal não religiosa (lied, ópera), música sacra (canto gregoriano, polifonia, oratória), música de dança, música de cena, perfil de um autor, intérprete da semana, intérpretes portugueses, etc. O público da música erudita não é uma massa amorfa que gosta de tudo: há gostos diferenciados e específicos que importa ter em conta. Foi esta a filosofia que vigorou durante o consulado de João Pereira Bastos e com resultados bem acima dos actuais. E já que falei do anterior director de programas, é justo que refira também a atenção que ele dava (e que deixou de ser dada) a programas culturais não musicais, designadamente nas áreas da História, da Literatura e da Ciência. Já disse, e volto a insistir, que o tratamento da cultura (não musical) numa rádio de serviço público não se pode restringir – como tem acontecido durante o último triénio – a noticiar os eventos culturais que acontecem no país. Escusado será dizer que as rubricas dando conta dos livros que estão nos escaparates, dos filmes em estreia, das peças em cena, das exposições, etc., têm o seu lugar mas é preciso ir mais além: a rádio tem um potencial cultural que deve ser aproveitado. No caso da História e da Literatura, a lacuna agora existente até pode ser colmatada a custo zero. E como? Basta ir ao riquíssimo arquivo histórico e aproveitar o que de melhor lá existe e sem risco de desactualização pois o que há dez ou quinze anos se disse sobre Gil Vicente, o Padre António Vieira, o Marquês de Pombal ou Eça de Queiroz, por exemplo, mantém-se perfeitamente válido. A propósito, uma pergunta pertinente: no ano em que se comemora o quadricentenário do nascimento daquele a quem Fernando Pessoa chamou o "imperador da língua portuguesa", por que razão não foi feita a reposição do ciclo realizado em 1997, aquando do tricentenário da morte? Bem, o ano vieirino ainda está a decorrer e eu assim como muitos outros ouvintes apreciaríamos imenso que nos fosse ainda dada a oportunidade de redescobrir, através do éter, a vida e o pensamento dessa grande figura da Cultura e da História de Portugal. Em Junho de 2006, no blogue A Nossa Rádio, tive ocasião de inventariar um rol programas de inegável valor cultural que seria de todo o interesse resgatar às teias de aranha, mas permito-me agora destacar dois deles. Começando pela História, aponto a série "Na Maquina do Tempo", da autoria de Maria João Martins, um trabalho admirável, a todos os títulos (qualidade dos textos, diversidade de temas tratados, locução, etc.), e com uma assinalável componente informativa e formativa, quer para o vulgar ouvinte quer para docentes e alunos do ensino básico e secundário. No campo da Literatura, cito o programa "Reflexos", de António Cardoso Pinto, sobre a divulgação de escritores e poetas (portugueses e estrangeiros), igualmente um trabalho de qualidade superior. Porque é que tesouros deste quilate não são desenterrados lá do cemitério onde não servem a ninguém?
Outra questão que terá de merecer atenção na Antena 2 é o controlo de qualidade na realização, produção e pós-produção dos programas, área em que se tem registado um notório desleixo. Começando pela parte mais técnica da pós-produção vários tem sido os erros de palmatória que se têm verificado desde que a nova direcção entrou em funções (e que anteriormente eram raríssimos), seja registos totalmente inaudíveis ou em péssimas condições de audição, seja montagens feitas com elementos trocados (partes faladas que não correspondem às obras musicais), como já ocorreu, por exemplo, em edições de "Páginas de Português" e de "Os Sons Férteis". E já nem falo daquele caso vergonhoso ocorrido com a série "Divina Proporção", em que puseram no ar um programa por montar, incluindo todas as passagens em que Ana Mântua se enganava e repetia a leitura de um texto, situação que deve ter sido deveras confrangedora para a autora. Já no que respeita à fase da produção, urge que seja adoptada uma atitude mais profissional e responsável dos assistentes de realização/produtores no apoio logístico aos autores/realizadores, designadamente em coisas tão elementares e prosaicas como a procura das interpretações indicadas para cada programa, evitando-se o facilitismo de as substituir por outras que estejam mais à mão.
Não se deverá também esquecer a reformulação dos espaços do início da manhã e do fim da tarde. No programa da manhã, uma das medidas inevitáveis a tomar é substituir o loquaz e insuportável Paulo Alves Guerra por uma dupla mista de apresentadores, fixa ou variável (ainda melhor), recuperando-se assim a boa experiência que foi o "Acordar a 2" (que saudades dos belíssimos discos que a Gabriela Canavilhas nos dava a ouvir em primeira mão!). A outra medida é a reformulação do programa: apenas dois blocos noticiosos (8:00 e 9:00), com o máximo de sete minutos cada um, sendo o primeiro generalista e o segundo cultural (podendo integrar sugestões de eventos culturais); introdução de uma crónica de autor (8:30 e 9:30), no mesmo modelo das que já foram feitas por Isabel da Nóbrega, Maximiano Gonçalves e Jorge Guimarães (nada a ver, portanto, com os comentários saloios e entediantes do Sr. Pedro Malaquias a notícias da imprensa). O resto do tempo seria ocupado com música, preferencialmente barroca, a meu ver, a mais adequada para começar o dia com boa disposição. De evitar, a todo o custo, a música contemporânea e o repertório operático, sobretudo o mais pesado (Wagner, Richard Strauss, etc.). Para o fim da tarde, a melhor opção seria mesmo o regresso de Jorge Rodrigues com o seu "Ritornello". E sendo Jorge Rodrigues um entendido em ópera e música vocal, aproveitava-se o seu saber para lhe entregar a realização de um programa dedicado ao canto lírico (História da Ópera, vida e obra dos cantores), uma área do agrado de muitos ouvintes mas muito maltratada pela direcção Rui Pêgo/João Almeida.
E para reconquistar a relação de cumplicidade do auditório com a sua rádio, deverá voltar a figurar na grelha um espaço destinado a obras/interpretações pedidas pelos ouvintes. O espaço anterior chamava-se "Que Quer Ouvir?" mas o título é o que menos interessa. O importante é que a Antena 2 consiga reatar os laços de fidelidade com o seu auditório natural e trazer de volta os ouvintes tresmalhados. Ainda nesta linha, a introdução de pequenos passatempos em que através de uma pergunta se dá oportunidade aos ouvintes de se habilitarem a discos e livros, também deverá ser ponderada.
Por último, cumpre-me referir outro aspecto que contribuiu de sobremaneira para o afastamento de muitos ouvintes da audição regular da Antena 2: o uso e abuso de 'jingles' e 'spots'. Sobre esta praga que se tornou endémica, e para não ser redundante, remeto V. Exas. para os três textos que já dediquei ao assunto (todos eles dados a conhecer à direcção de programas mas sem qualquer efeito):
Formas de poluição sonora na rádio pública,
Antena 2: quando os spots promocionais se tornam um flagelo e
Bach achincalhado na Antena 2.
O exercício da crítica não se resume a apontar o dedo ao que está mal; pressupõe também a apresentação de medidas para a erradicação dos problemas existentes e a indicação de caminhos a seguir para inverter o descalabro. Foi o que acabei de fazer, enquanto contribuinte/ouvinte e por dever de cidadania. Para que o segundo canal da rádio pública não corra o risco de cair nos 0,2 % de audiência e aí ser necessário mudar o slogan para "Antena 0,2: a arte que destoca".
Com os mais respeitosos cumprimentos,
Álvaro José Ferreira
29 julho 2008
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2 comentários:
só um pequeno reparo: os seus textos são muito longos. Já vi em alguns blogs uma pequena parte do texto e se quisermos podemos ler tudo. Penso que é possível formatar o blog nesse sentido mas não sei como.
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:)
Concordo com tudo o que escreveu e tenho pena de só agora o meu descontentamento com a nova Antena 2 ter sido espelhado por outros - por culpa minha,só agora descobri o blog.Já agora se em face disto alguém fizer mudanças na A. 2 não me mexam no Luís Caetano, já bastou o que fizeram ao Jorge Rodrigues. Patricia Sales Luís
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