27 maio 2011
Prémio José Afonso: uma tragicomédia grega
Joaquim Raposo & António Moreira, respectivamente, presidente da C.M. da Amadora e vereador do pelouro da Cultura
Com mais de dois anos de atraso, a Câmara Municipal da Amadora anunciou finalmente qual o disco distinguido com o Premio José Afonso referente à colheita discográfica de 2008. E o escolhido foi... "Chão", da Mafalda Veiga. Confrontada com a notícia, a cantora mostrou-se surpreendida (vide artigo do Hardmúsica). O escrevente destas linhas comunga inteiramente de tal surpresa. Mais que surpresa: estupefacção e perplexidade. E porquê? Porque "Chão" está muito longe de ser um disco «cujos temas tenham como referência a Cultura e a História portuguesas, tal como a obra do autor de "Grândola, Vila Morena"» (nos termos do regulamento instituidor). Na verdade, o mais recente registo de Mafalda Veiga navega em águas muito diferentes – quase antagónicas – do legado estético de José Afonso e, se quisermos, da música popular portuguesa de raiz/inspiração tradicional, de que o autor de "Cantares do Andarilho" foi o grande percursor e impulsionador em Portugal. Mas mesmo que nos abstraíssemos deste requisito (coisa que não me parece razoável por deturpar o espírito e os objectivos de quem instituiu o Prémio), e quiséssemos considerar todos os discos de música portuguesa (fora da área erudita) lançados em 2008, ainda assim o CD "Chão" ficaria a perder para muitos outros álbuns. Tive oportunidade de dar realce a algumas dezenas no artigo "Grandes discos da música portuguesa: editados em 2008". O registo da Mafalda Veiga não figura nessa galeria de destaques e se tal aconteceu foi porque não encontrei nele suficientes motivos para o considerar um trabalho notável. Digo mais: "Chão" não acrescenta nada ao que Mafalda Veiga fez antes: no respeitante às letras, é mais do mesmo; relativamente à linguagem musical, nada de original, pecando inclusive por ser acentuadamente tributária do pop/rock anglo-americano (de toda a discografia da Mafalda Veiga, ressalvo dois títulos: "Pássaros do Sul", de 1987, com produção de Manuel Faria, e "A Cor da Fogueira", de 1996, com produção de José Sarmento).
Como se explica então que em face de tantas edições de qualidade superior, "Chão" tenha sido o seleccionado para receber os cinco mil euros do Prémio José Afonso? Só encontro uma explicação: a composição do júri. Dos cinco elementos inicialmente indigitados – António Moreira (vereador da Cultura da C.M. da Amadora), Vanda Santos (chefe de divisão da Cultura da mesma entidade), Olga Prats (pianista e professora de música), António Victorino d’Almeida (compositor e pianista) e Carlos Pinto Coelho (jornalista cultural) – apenas os três primeiros votaram. Carlos Pinto Coelho não se encontra entre nós – infelizmente – desde meados de Dezembro de 2010, e o maestro António Victorino d’Almeida tem decerto coisas mais importantes para fazer do que perder tempo com as negligências e incompetências de quem tem conduzido o processo do PJA. Dos três jurados votantes, dois – a maioria, portanto – são da Câmara Municipal da Amadora, o mesmo é dizer da entidade promotora do prémio. Que crédito pode ter um júri com tal composição? Nenhum, escusado será dizê-lo. Não tenho o (des)prazer de conhecer, pessoalmente, o sr. António Moreira nem a sra. Vanda Santos, mas quando, por sua obra e graça, o Prémio José Afonso serve para galardoar um disco como "Chão", tenho forçosamente de deduzir que a sua formação/gosto musical e os conhecimentos de música popular portuguesa não primam pela distinção, situando-se ao nível do vulgar e do corriqueiro. Será que aquelas duas criaturas conhecem e/ou apreciam a obra de José Afonso? Não me parece, sinceramente. É mais que provável que o grosso do repertório do imortal cantautor seja ignorado por tais orelhas. Devem, quanto muito, conhecer a "Grândola, Vila Morena" e mais uma meia-dúzia de temas, mas de os ouvirem na rádio e/ou na televisão...
Quanto a Olga Prats, uma Senhora que tenho na mais elevada estima e admiração, custa-me muito a crer que o seu disco preferido de 2008 (que não de música clássica) seja o "Chão", da Mafalda Veiga (o título é enganador pois o CD nada tem de telúrico, como facilmente poderá ser comprovado por quem o ouviu ou vier a ouvir). A ter Olga Prats votado nele, de facto, foi porque não ouviu, com certeza, nenhum dos discos destacados no artigo "Grandes discos da música portuguesa: editados em 2008". Se calhar, ouviu apenas uns quantos títulos menores que a C.M. da Amadora lhe forneceu e de entre esses, o da Mafalda Veiga era o menos medíocre. Bem, isto sou eu a conjecturar. Gostaria mais de acreditar que a eminente pianista votou, vencida, noutro álbum, esse sim mais conforme e consentâneo com a obra de José Afonso.
Em qualquer dos casos, pode afirmar-se com toda a legitimidade que o Prémio José Afonso sofreu, com esta recente decisão, um rude e violento golpe no seu prestígio e credibilidade. E os autores do crime chamam-se Joaquim Moreira Raposo (presidente da C.M. da Amadora) e António José da Silva Moreira (vereador do pelouro da Cultura). Não se tratasse de um problema suficientemente grave para a música e cultura portuguesas e não estivéssemos em presença do soez achincalhamento da memória de José Afonso, a coisa até daria para rir, de tão grotesca e caricata que é. Uma tragicomédia grega...
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3 comentários:
Antigamente ainda tínhamos a lista dos outros nomes candidatos.
Não lembra ao diabo divulgar o premiado com tanto tempo de atraso.
De tanta coisa que disse, não li a parte em que diz que ouviu o álbum. tragicomédia de facto. se por alguma eventualidade ouviu o album perceberá que nao é "mais do mesmo". Nem letras nem composiçao musical. Quer-me parecer que isso é preconceito especificamente dirigido à Mafalda Veiga e só lhe dá valor quando a ela está associado a algum nome que aprecia.
Para que não fique com dúvidas ou já esteja a esticar o indicador, sim, gosto de Zeca Afonso e, sim, percebo de música e tenho conhecimento especializado na área - não deixo o meu gosto, preconceito ou coisas que leio algures me ditem o que é bom ou mau.
Os gregos, ao menos, não têm prémios. Por outro lado, têm o Theodorakis...
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